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A Itália na era do liberalismo autoritário: como o capitalismo italiano foi moldado por populistas e tecnocratas

por Ernesto Gallo | Brave New Europe – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: ell brown)

A Itália não está só dividida, como as últimas eleições mais uma vez demonstraram[1], mas também divisiva, como de costume. Os otimistas apontam para sua recente recuperação econômica e o 9º lugar no ranking mundial do PIB (à frente de gigantes ascendentes como a Rússia ou a Indonésia)[2]. Os pessimistas destacam que, desde o fim da Guerra Fria, o crescimento econômico médio anual do país tem sido quase imperceptível, de 0,6-0,7%[3]. Tal ilustração vem em cima de uma série de outros rankings embaraçosos sobre questões como corrupção, boa governança, Estado de Direito, competitividade e muito mais.

Os números costumam ser enganosos, mas há motivos para preocupação. Alguns dos problemas da Itália cresceram na era do capitalismo neoliberal e autoritário. Muitos estudiosos propuseram interpretações interessantes e fascinantes, variando de hipóteses sobre o Estado disfuncional da Itália[4] a explicações centradas em ideias de patronalismo e fraqueza institucional, enquanto outras abordagens socioeconômicas enfocam os limites de um capitalismo de “baixa tecnologia” e, especialmente, familiar.

Primeiramente, proponho aqui buscar explicações na longue durée e então redefinir a visão para fenômenos mais recentes. Estruturas e instituições (e suas fraquezas) têm uma resiliência que parece confirmar mais uma vez as observações de Gramsci sobre a fragilidade do capitalismo e do Estado pós-unificação da Itália. A longue durée sugere que a história da Itália pós-unificação é uma das fraturas profundas e duradouras, que sempre atrapalharam o surgimento de uma burguesia nacional e um Estado centralizado forte. O historiador Paolo Pezzino explorou a divisão de lealdades de cidadãos[5], que sentiram por décadas lealdade à Igreja Católica Romana, autoridades locais ou regionais, partidos políticos (fascistas, comunistas, democratas cristãos), mas dificilmente ao Estado e suas instituições. Isso ficou particularmente claro durante a Guerra Fria, quando – para lembrar o estudioso marxista Franco de Felice – a política italiana foi dividida em dois “campos”, um ocidental e um oriental/comunista, e os italianos estavam acostumados a um “estado dual” e uma “dupla lealdade”, uma para o país e outra para a constelação militar OTAN-EUA. Contudo, apesar desses problemas, a economia da Itália continuou crescendo, ainda que de uma forma bastante confusa e, muitas vezes, não-planejada.

O que aconteceu desde a queda do Muro de Berlim e do nascimento da União Europeia após o Tratado de Maastricht? As privatizações e a financeirização do Estado[6] já estavam em andamento quando os parâmetros de Maastricht e a União Monetária Europeia (UEM) acolheram o país altamente endividado na era do capital neoliberal e do liberalismo autoritário, especialmente em uma UE cada vez mais “ordoliberal”. Nesse estágio, duas novas “faces do capitalismo” fizeram sua primeira aparição importante: por um lado, os populistas; do outro, os tecnocratas. Os primeiros foram incorporados principalmente pelo magnata da mídia, Silvio Berlusconi, e seu aliado regional, a Liga do Norte; este último pelos economistas e juristas profissionais – Amato, Ciampi, Dini, Romano Prodi – que, geralmente em aliança com uma nova e liberal centro-esquerda, parcialmente desmantelaram o inchado setor público da Itália para cumprir as metas da UEM e se unir ao Euro no final da década de 1990.

A coalizão de Berlusconi, no poder nos anos 2001-06 e 2008-11 (depois de um período inicial em 1994), antecipou algumas das características da economia cultural e política que são agora atribuídas à política de Trump. O berlusconismo não era apenas um estilo de comunicação demagógico qu,e muitas vezes, atraía grande parte do público italiano, mas também um bloco social com características bem definidas, composto principalmente por uma série de pequenas e médias empresas do norte da Itália (muitas vezes, privadas e não listadas), partes do vasto setor estatal (especialmente nas indústrias de energia e manufatura) e partes da classe média que Berlusconi havia prometido defender dos ventos competitivos da globalização e da Europa. O berlusconismo era, principalmente, uma defesa do status quo com claras tendências protecionistas, como foi testemunhado pelas ideias idiossincráticas do ministro da Economia favorito de Berlusconi, Giulio Tremonti[7], um dos primeiros a propor tarifas sobre produtos chineses e um banco de desenvolvimento para regenerar a economia do sul da Itália.

Tremonti é um jurista, mas nem uma resposta “tecnocrata” nem a “Europile” de Bruxelas demorariam muito e chegaram em 5 de agosto de 2011, sob a forma de uma carta muito debatida do Banco Central Europeu pedindo para que a Itália tomasse urgentemente medidas econômicas significativas[8]. Colocando de volta os tecnocratas, desta vez da porta principal. Na esteira da crise da dívida, em 16 de novembro de 2011, o economista educado em Yale, Mario Monti, tornou-se primeiro-ministro. Um liberal comprometido, Monti promulgou duras medidas de austeridade que deprimiram ainda mais a economia lenta da Itália. E ainda, mesmo sob seus sucessores de centro-esquerda como primeiro-ministro – Letta, Renzi e Gentiloni – o papel-chave do ministro de Economia e Finanças foi ocupado por um economista profissional não-eleito, Pier Carlo Padoan, ex-diretor do FMI entre 2001 e 2005. Os resultados de mais de meia década de austeridade ditada pela UE foram o desemprego em massa, uma recuperação pouco visível e o retorno do populismo nacionalista.

Este último é agora representado por Matteo Salvini, da Liga, cujas posições sobre migração, islamismo e Europa são muito mais duras do que as de Berlusconi há alguns anos[9]. A recente façanha eleitoral da Liga demonstra que o nacionalismo na Itália é uma força a ser reconhecida. Até economistas anti-Euro radicais, como Alberto Bagnai, conseguiram assentos em parlamentares. Resta saber se a ameaça de deixar o euro pode ser tomada pelo valor nominal ou se é uma arma tática para renegociar as principais condições da UME. No rescaldo da crise da dívida, o investimento estrangeiro direto no país cresceu, e não apenas por causa de aquisições francesas (especialmente em luxo) ou fundos dos EUA em instituições financeiras (por exemplo, 5,01% da Blackrock na gigante bancária Intesa San Paolo). As empresas estatais chinesas e os bancos compraram 2% de participação em todas as empresas estratégicas da Itália (Generali, ENEL, ENI, Telecom, Fiat Chrysler Automobiles), além da aquisição da Pirelli pela ChemChina e outros investimentos em marcas de futebol de prestígio[10]. A marca da Itália é forte, mas os investidores internacionais continuam cautelosos, especialmente à luz de sua crônica instabilidade política. As principais empresas de setores como siderurgia ou processamento de alimentos permaneceram privadas e provavelmente pedirão mais proteção. O risco para o país é ficar preso em um “jogo de perder/perder”, no qual os investidores internacionais e as principais empresas nacionais obtêm vantagens em detrimento do trabalho, dos migrantes e do desempenho econômico geral do país. Tanto os tecnocratas quanto os populistas nacionalistas provavelmente continuarão desempenhando um papel nos próximos meses e anos, mesmo em um governo de coalizão entre a Liga e o ainda não-descoberto Movimento Cinco Estrelas.

Espera-se que os italianos encontrem forças para recorrer à sua forte tradição de civilidade local (muitas vezes, popular) e resistam à tentação de uma terceira face do capitalismo autoritário, que o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, rotularia de “democracia não-liberal”. É difícil esquecer que o primeiro secretário de Economia do fascismo (1922-25) foi Alberto De Stefani, um economista liberal autoritário, que, segundo suas recém-publicadas “Memórias”, percebeu as consequências de suas escolhas tarde demais: no verão de 1943, um ano quente para os italianos e, de fato, para o mundo inteiro[11].

Fontes:

[1] – http://speri.dept.shef.ac.uk/2018/02/14/the-italian-election-old-faces-new-parties-familiar-uncertainty/

[2] – https://bit.ly/2J73s79

[3] – https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG?locations=IT

[4] – https://bit.ly/2MKWiaS

[5] – https://bit.ly/2P35s3M

[6] – http://speri.dept.shef.ac.uk/2016/05/17/financialization-of-the-italian-state-at-what-cost/

[7] – https://www.theguardian.com/business/2008/may/14/globaleconomy.europe

[8] – https://www.corriere.it/economia/11_settembre_29/trichet_draghi_italiano_405e2be2-ea59-11e0-ae06-4da866778017.shtml

[9] – https://www.theguardian.com/world/2018/mar/01/matteo-salvini-extends-his-far-right-appeal-as-far-as-sicily

[10] – https://www.webuildvalue.com/en/thought-leaders-interviews/milan-the-port-of-entry-for-chinese-investors.html

[11] – http://www.ilsole24ore.com/art/cultura/2013-07-28/decidemmo-irreparabile-083858.shtml?uuid=AbPcY8HI

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Entre 1954 e 1975, as forças armadas dos Estados Unidos lançaram 7,5 milhões de toneladas de bombas sobre o Vietnã, o Laos e o Camboja, mais do que as 2 milhões de toneladas de bombas lançadas durante a Segunda Guerra Mundial em todos os campos de batalha. No Vietnã, os EUA lançaram 4,6 milhões de toneladas de bombas, inclusive durante campanhas de bombardeios indiscriminados e violentos, como a Operação Rolling Thunder (1965-1968) e a Operação Linebacker (1972). (Foto: Thuan Pham / Pexels)
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