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Desperdiçando a crise do Lehman Brothers: o que não foi salvo foi a economia

Ao invés de perguntar como os bancos devem ser salvos “da próxima vez”, a questão deveria ser: qual é a melhor maneira de deixá-los vir a baixo?
por Michael Hudson | CounterPunch – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: sachab)

O mal-estar financeiro de hoje para os fundos de pensão, os orçamentos estaduais e locais e o subemprego são, em grande parte, resultado do resgate dos bancos na crise de 2008 e não de seu crash. O que foi salvo não foram apenas os bancos – ou mais especificamente, como Sheila Bair apontou, seus detentores de títulos –, mas a sobrecarga financeira que continua a pressionar a economia atual.

Também foi salva a ideia de que a economia precisa manter o setor financeiro solvente por um crescimento exponencial de novas dívidas – e, quando isso não basta, pela compra de ações e títulos pelo governo para apoiar os balanços patrimoniais da camada mais rica da sociedade. A contradição interna dessa política é que a deflação da dívida se tornou tão autoritária e disfuncional que impede que a economia cresça e carregue sua dívida.

Tentar salvar o supercrescimento financeiro do serviço da dívida tomando emprestada a dívida, ou por meio de Quantitative Easing monetário, reinflacionando os preços de imóveis, ações e títulos, permite que os credores Um Por Cento – isto é, o grupo de 1% dos mais ricos da sociedade – ganhem, não os 99% endividados da economia como um todo. Portanto, do ponto de vista econômico, Ao invés de perguntar como os bancos devem ser salvos “da próxima vez”, a questão deveria ser: qual é a melhor maneira de deixá-los vir a baixo? – juntamente com seus acionistas, detentores de títulos e depositantes não-segurados cuja arrogância imaginava que seus empréstimos (dívidas de outras pessoas) poderiam continuar aumentando sem empobrecer a sociedade e impedindo a cobrança dos credores em qualquer circunstância – exceto do governo, controlando-o.

Um princípio básico deve ser o ponto de partida de qualquer análise macro: o volume de dívida com juros tende a ultrapassar a capacidade de pagamento da economia. Essa tendência é inerente à “mágica dos juros compostos”. O crescimento exponencial da dívida se expande por seu próprio impulso puramente matemático, independentemente da capacidade de pagamento da economia – e mais rápido do que a economia não-financeira cresce.

Quanto mais alta a proporção dívida/PIB, mais juros, pagamentos de amortização e multas por atraso são extraídos da economia. O endividamento resultante retarda a economia, causando inadimplência. Foi o que aconteceu em 2008 e está se acelerando hoje, à medida que os índices de endividamento estão subindo para dívidas corporativas, dívida estadual e local e dívida estudantil.

Nem os legisladores, nem os acadêmicos, nem o público em geral reconhecem um corolário do Segundo princípio seguinte ao primeiro: uma economia sobre-endividada não pode ser salva a menos que os bancos falhem. Isso significa subescrever as reivindicações financeiras do Um ao Dez por cento – em outras palavras, as dívidas líquidas devidas pelos 99 a 90 por cento. Eliminar as dívidas incobráveis ​​envolve subescrever as “más poupanças” que são a contrapartida dessas dívidas no balanço patrimonial. Caso contrário, a economia sofrerá a deflação da dívida e a austeridade.

“Recuperação” desde 2008 tem sido muito mais lenta do que as recuperações anteriores porque a deflação da dívida está extraindo mais e mais renda pessoal e corporativa. Para piorar a situação, a política de alívio quantitativo para re-inflacionar preços de ativos reduziu as taxas de retorno dos fundos de pensão, companhias de seguro e poupança para aposentadoria. Isso significa que mais renda dos governos estaduais e locais deve ser desviada para atender aos compromissos com as aposentadorias.

Alguém tem que contribuir, e não é provável que seja a classe do topo da pirâmide econômica. Como resultado, a economia em geral está ameaçada por uma erosão exponencialmente crescente do rendimento disponível e do patrimônio líquido para a maioria das pessoas e empresas. Os gerentes de investimento estão alertando para uma crise financeira, dados os índices historicamente altos de preço / lucro das ações e também para as propriedades alugadas.

O que não é reconhecido é que tal crise é uma condição prévia para que a economia atual se recupere dos índices crescentes de dívida/renda e dívida/PIB que estão onerando os Estados Unidos, a Europa e outras regiões. Pelo menos, os Estados Unidos conseguiram monetizar seus déficits orçamentários e subsidiar os bancos para apoiarem sua dívida crescente com novas dívidas. A zona do Euro proibiu déficits orçamentários de mais de 3% do PIB, impondo uma austeridade que deixa como única resposta ao superendividamento uma austeridade ao estilo grego: despovoamento, redução dos padrões de vida, redução da aposentadoria e pensões, inadimplência de hipotecas, redução do tempo de vida, e a venda em massa de infraestrutura pública para financiadores estrangeiros.

Nada disso foi entendido no fim de semana de 15 de setembro, que marcou o 10º aniversário da falência do Lehman Brothers e do subsequente resgate de Wall Street. O presidente Obama, o secretário do Tesouro, Tim Geithner, e seus colegas lobistas financeiros do Federal Reserve e do Departamento de Justiça são responsáveis ​​por salvar “a economia”, como se sua classe doadora em Wall Street fosse uma boa proxy para a economia em geral. “Salvar a economia de um colapso” se tornou o eufemismo para salvar os detentores de títulos e outros membros do “Um por cento” de terem perdas em seus empréstimos ruins. O “resgate” é o duplo discurso orwelliano de expropriação das casas de mais de nove milhões de americanos endividados, enquanto deixa os proprietários sobreviventes sobrecarregados com enormes pagamentos da bolha da hipoteca aos proprietários do setor de FIRE.

O que foi implantado não é uma restauração do status quo tradicional, mas uma reversão de mais de um século de políticas de Banco Central. Bancos falidos não foram levados para o controle público. Eles foram enriquecidos para muito além de seus níveis anteriores. Os autores do colapso foram recompensados, não penalizados por emprestar mais do que poderia ser pago pelos mutuários e especuladores NINJA, cujos pedidos de hipoteca foram adulterados por fraudes sistêmicas do Countrywide, Washington Mutual, Bank of America, Citigroup e seus companheiros.

Os US$ 4,3 trilhões, que poderiam ter sido usados ​​para salvar os devedores, foram dados aos bancos e às empresas de Wall Street, cuja imprudência e fraude direta causaram a crise. Os swaps de “dinheiro por lixo” do Federal Reserve com bancos insolventes não restauraram a normalidade nem o status quo ante. O que ocorreu foi uma revolução financeira por furto, revertendo a tradicional responsabilidade dos credores em fazer empréstimos prudentes.

A Quantitative Easing salvou os credores e os maiores acionistas e obrigacionistas, baixando as taxas de juros o suficiente para tornar lucrativo para novos empréstimos, inflacionando os preços dos ativos a crédito. Isso reavivou o valor dos empréstimos bancários e as garantias de títulos. “Salvar” a economia dessa maneira realmente a sacrificou. É por isso que a nossa “recuperação” é apenas “no papel”, resultado do cálculo do PIB para incluir ganhos bancários e ganhos hipotéticos de proprietários de residências, já que os aluguéis estão subindo.

Entre os democratas, a visão mais extrema que nega que a dívida é um problema vem de Paul Krugman: Escrevendo que “o aspecto puramente financeiro da crise estava basicamente terminado no verão de 2009”, ele criticou o que chamou de “consenso bizarro de Beltway”, de que, apesar do alto desemprego e das baixas taxas de juros, a dívida, e não os empregos, era o verdadeiro problema. “[1]

Isso ignora o ponto em que 2009 foi o verdadeiro começo para a maioria dos nove milhões de proprietários que foram expulsos de suas casas. Os consumidores se encontravam com menos renda “livremente disponível” depois de pagarem sua parte mensal do FIRE – a moradia, o cartão de crédito, o seguro médico, a dívida estudantil e a retenção de impostos. Krugman diz que teria resolvido o problema com mais gastos deficitários para injetar dinheiro suficiente na economia para permitir que os devedores continuassem pagando aos bancos o crescimento exponencial das reivindicações de juros.

Ainda estamos vivendo nas consequências desestabilizadas e endividadas de tal defesa pró-bancarismo. Na New Yorker, John Cassidy comemora um livro do professor de Columbia, Adam Tooze, promovendo a ideia de que “a economia” não pode existir sem o crédito (isto é, dívida) fornecido pelo setor financeiro. É verdade, mas resgatar a economia deve envolver resgatar Wall Street e enriquecer os bancos às custas do resto da economia? [2] Essa fusão é uma retórica orwelliana de engano que foi introduzida na discussão de como a economia foi “resgatada”, bloqueando a Grande Deflação da Dívida de hoje.

Na instituição neoliberal/neocon Brookings, os secretários do Tesouro, Hank Paulson e Tim Geithner se uniram ao Ben Bernanke, do Federal Reserve, para explicar que o público simplesmente não entendia o sucesso de todos em salvar não apenas os bancos, mas instituições financeiras não-bancárias. Ao contrário de Sheila Bair, eles não apontaram que, por trás dessas instituições, estavam os detentores de títulos, o Um Por Cento de poupadores que mantinham o resto da economia endividado. Bernanke escreveu um artigo no Financial Times produzindo estatísticas que pretendem mostrar que não havia nenhuma dívida subjacente ou problema financeiro, apenas um “pânico”.[3] Parafraseando, ele disse: “A crise estava na mente das pessoas. Nada para ver aqui. Continue em frente”. É como Margaret Thatcher gostava de insistir: “Não há alternativa”.

Pode esse resgate sem depreciações de dívidas realmente trazer prosperidade? As economias podem alcançar o crescimento “emprestando sua saída da dívida”, criando crédito novo o suficiente para cobrir as despesas de juros de ganhos de capital com a inflação do preço do ativo impulsionada pelo novo crédito bancário. Essa é a lógica que guiou os US$ 4,3 trilhões do Federal Reserve em Quantitative Easing, e a criação de crédito paralelo pelo Banco Central Europeu sob Mario “Whatever it takes” Draghi. Ellen Brown publicou recentemente um artigo, “Os bancos centrais já se desonraram, colocando todos em risco”, observando que o BCE se tornou um grande comprador de ações.[4] Os beneficiários são os acionistas que estão concentrados nas porcentagens mais ricas da população. Os governos não estão garantindo a posse da casa própria ou a solvência dos planos de pensão trabalhistas, mas estão subscrevendo o valor da garantia que sustenta as economias de uma restrita classe financeira.

As contas do PIB relatam a diferença crescente entre as baixas taxas de títulos públicos e o custo do crédito para os bancos em comparação com as taxas mais altas pagas pelos financiadores de hipotecas, titulares de cartões de crédito e empréstimos estudantis como “serviços financeiros” é adicionado à estatística do PIB em vez de ser tratado como um subtraendo. Essa prática absurda reflete o grau em que os lobistas de Wall Street capturaram estatísticas econômicas. O Rendimento Nacional e Contas de Produtos (NIPA) tem se tornado em um veículo para o engano. O que se celebra como crescimento do PIB desde 2008 tem sido principalmente o crescimento da extração financeira, juntamente com o setor de seguros de saúde que lucra com o Obamacare.

Glenn Hubbard, presidente do Conselho de Consultores Econômicos de George W. Bush, usa o duplo pensamento orwelliano para fingir que “dívida é riqueza”. Ele conclui um artigo do Wall Street Journal: “A capacidade de recapitalizar os bancos continua sendo crucial e precisa ser explicada para um Congresso cético e público”, [5] para que os ricos acionistas e especuladores não sofram perdas.

Em um lado positivo, Adair Turner zomba dos “especialistas autorizados, como o FMI, que explicaram como o aumento da securitização e das atividades comerciais tornaram o sistema financeiro mais eficiente e menos arriscado”. [6] Era como se “opções” e as barreiras pudessem eliminar totalmente o risco, não transferi-las para as vítimas de Wall Street, como os ingênuos Landesbanks alemães.

O objetivo da campanha de desinformação é evitar que a raiva popular defenda o que foi feito na Antiguidade clássica. Os antigos lutaram guerras civis por redistribuição de terras e cancelamento de dívidas. Hoje, a demanda deve ser para baixas contábeis de hipotecas, de acordo com taxas de aluguel razoáveis, limitadas aos 25% anteriores da renda do proprietário – enquanto revertem os impostos retidos na fonte e impostos cobrados para salvar a classe de credores.

Um antecedente ateniense da aquisição financeira de hoje

É uma história antiga, com um paralelo impressionante na Atenas clássica. Depois de perder a guerra do Peloponeso para a Esparta oligárquica em 404, uma junta militar ao estilo de Pinochet – os Trinta Tiranos – foi instalada. Durante seus oito meses de terror, seus membros mataram cerca de 1.500 defensores da democracia, cujas terras e outras propriedades foram apanhadas. Defensores da democracia se refugiaram na Trácia e em outras regiões vizinhas.

Depois que os líderes democráticos exilados reconquistaram Atenas, eles procuraram restaurar a harmonia, chegando a pagar todas as dívidas que a junta oligárquica havia levado até Esparta. Para completar, o quarto século subsequente obrigou os jurados atenienses e, de fato, os prefeitos de algumas cidades gregas a fazer um juramento: “Não permitirei que dívidas privadas (idioma chreon) sejam canceladas, nem terras nem casas de cidadãos atenienses sejam redistribuídas. “[7]

Se tal promessa não é necessária hoje em dia pelos funcionários públicos, é porque os administradores financeiros do Tesouro, do Federal Reserve e de outras agências reguladoras já se mostraram tão obstinados, desde a pós-graduação até seus empregos, que podem ser confiados para considerar impensáveis tanto as depreciações da dívida ​​quanto impor leis contra a fraude financeira criminal que puniriam os indivíduos mais do que suas instituições. A academia se junta ao engano de que a engenharia financeira pode sustentar um crescimento geométrico da dívida ad infinitum sem impor austeridade. O resultado do resgate demonstrou que as corporações não são realmente “pessoas”, já que não podem ser postas em prisão.

O principal princípio financeiro é que essa auto-expansão da dívida geradora de juros cresce para absorver cada vez mais o excedente econômico. A solução, portanto, deve envolver a eliminação do excesso de dívida – e a poupança que foi mal emprestada. É o que deve ser feito durante as crises. Não foi feito em 2008. É por isso que o status quo não foi restaurado. Uma vasta oferta às elites financeiras ocorreu, colocando o resto da economia em um caminho para a peonagem da dívida.

Teria sido bom ter lido um artigo de Sheila Bair explicando os procedimentos que o FDIC tinha em vigor, prontos para assumir o insolvente Citigroup e outros bancos em situação semelhante, salvando todos os depositantes segurados ao assumirem essas instituições. Não há dúvida de que, como instituições públicas, não teriam se entregado a hipotecas de alto risco ou, na verdade, a empréstimos de aquisição.

Teria sido bom ouvir de Hank Paulson e talvez Barney Frank como eles tentaram convencer o presidente Obama a subescrever as hipotecas ruins, cujas cobranças de carregamento estavam bem acima da capacidade do devedor de pagar, já que estavam acima do valor de locação para semelhantes propriedades. Teria sido bom ouvir um misto de culpa de Obama se desculpando por representar o interesse de seus doadores de campanha, colocando-se entre eles e seus eleitores com forcados. Mesmo um artigo de Tim Geithner ou Eric Holder sobre a sorte que sentiam em conseguir empregos tão bem remunerados depois que saíam do escritório do setor financeiro, eles supervisionavam e “regulavam”.

O que é necessário agora é acompanhar a percepção política primária de que a economia financeiramente disfuncional de hoje não pode ser salva sem um colapso bancário. Isso significa reverter os enormes ganhos que o setor FIRE fez desde 1980 às custas da economia “real”. Os bancos deixaram de ser um “motor de crescimento”. Eles não estão fazendo empréstimos para criar novos meios de produção. Eles estão emprestando para strippers de ativos, não criadores de ativos. Não é difícil mostrar isso estatisticamente. (Eu preparei uma tentativa em Matando o Hospedeiro, e agora estou trabalhando com o Democracy Collaborative para preparar um estudo maior).

O que está em jogo é se as economias dos EUA e da Europa Ocidental acabarão parecendo as da Grécia, Letônia e Argentina – ou Roma imperial. Os neoliberais aplaudem o capitalismo financeiro vitorioso de hoje como o “fim da história”. Um desses fins já ocorreu, no final da Antiguidade romana. É lembrado como a Idade das Trevas. O progresso parou quando o credor e a classe proprietária de terras dominaram o resto da sociedade. O comércio sobreviveu apenas entre os senhores no topo da pirâmide econômica. O sonho atual de “Fim da História” ameaça se desdobrar em linhas semelhantes. Tudo diz respeito ao poder relativo do Um Por Cento.

Fontes:

[1] Paul Krugman, “Days of Fear, Years of Obstruction,” The New York Times, September 14, 2018.

[2] John Cassidy, A World of Woes: A global take on a decade of financial crisis,” The New Yorker, September 17, 2018.

[3] “Ben Bernanke pins blame for Great Recession on bank panic,” Financial Times, September 13, 2018.

[4] Ellen Brown recently published a review, Central Banks Have Gone Rogue, Putting Us All at Risk.” Public Banking Institute and Truthdig, September 13, 2018.

[5] Glenn Hubbard, “Bailouts Shouldn’t Be Only for Banks” Wall Street Journal, September 14, 2018. To be sure, Hubbard acknowledges that Republicans had agreed to but incoming President Obama nixed: “The government should have directed a mass refinancing of mortgages for primary homes in which the borrower was current in payments.”

[6] Adair Turner, “Banks are safer but debt remains a danger,” Financial Times, September 12, 2018.

[7] Demosthenes Against Timocrates (xxiv.149).

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