Engana-se quem restringe o confronto geoestratégico entre Estados Unidos e União Soviética durante a Guerra Fria a disputas diplomáticas e militares dentro das zonas de influência de cada bloco. A batalha ideológica entre capitalismo e comunismo incluiu uma ampla frente cultural, agindo com vigor nas arenas políticas e econômicas e em consonância com as diretrizes dos serviços de espionagem e inteligência. Afastar a intelligentsia europeia do comunismo e aproximá-la do American way of life era um dos principais objetivos dessa frente cultural pelo lado americano, confluindo interesses geopolíticos do Departamento de Estado e fundações e institutos privados ditos “sem fins lucrativos” ao redor do globo.
Nesse contexto de engajamento de Washington na diplomacia cultural, um dos casos mais simbólicos de tal política foi o programa de intercâmbio intelectual promovido pela Fundação Ford na República Popular da Polônia, entre 1957 e 1961. Tratava-se da primeira iniciativa acadêmica organizada pelos EUA dentro de um regime comunista e, por alguns anos, foi capaz de operar trocas intelectuais sem precedentes, essenciais na reconstrução das ciências sociais polonesas no período socialista pós-Stálin.
A iniciativa estava em sintonia com a conjuntura global após a morte de Stálin e a ascensão política de Nikita Kruschev, enxergada pelos policy makers de ambos os campos da Cortina de Ferro como um divisor de águas na Guerra Fria. No lado americano, no governo do presidente Dwight Eisenhower haveria a brecha para novas formas de diplomacia cultural, e o controverso “Discurso secreto” de Kruschev, denunciando os “crimes do stalinismo” e anunciando um “degelo” no sistema político soviético, representava esse possível ponto de virada.
Ao mesmo tempo, as crises políticas na Polônia e Hungria no outono de 1956 motivaram o governo Eisenhower ao restabelecimento das relações desses países com o Ocidente. Se, por um lado, a crise na Hungria foi suprimida pelos tanques soviéticos, a mudança de poder na Polônia foi bem-sucedida, jogando o sentimento nacional polonês contra a política internacional soviética. Como afirma o historiador Igor Czernecki, do Departamento de Sociologia da Universidade de Varsóvia e especialista nesta temática, o portão a oeste do Rio Danúbio estava fechado, mas havia uma janela aberta com vista para o Rio Vístula que permitiu que a Fundação Ford chegasse à Polônia.
Origem da diplomacia cultural
Os esforços da Fundação Ford no Leste Europeu remontam ao clima de transformação da Guerra Fria para uma guerra “quente” entre as duas superpotências após o conflito intercoreano. Em 1950, os Departamentos de Estado e de Defesa americanos produziram o relatório NSC-68, documento elaborado a pedido do presidente Harry Truman contendo recomendações militares estratégicas para ampliar os gastos militares e conter a ameaça do expansionismo soviético.[2] Todavia, durante sua campanha presidencial de 1952, o general Dwight Eisenhower assumiu uma posição oposta à sugerida pelo relatório e defendeu uma relação mais pacífica com os países da Cortina de Ferro.
Eisenhower estava interessado em mudar o campo da disputa na Guerra Fria da rivalidade militar para a rivalidade ideológica, o que motivou um duro debate interno entre os Departamentos de Estado e de Defesa para definir os rumos da política externa americana.[3] Eisenhower havia nomeado o anticomunista linha-dura John Foster Dulles como seu secretário de Estado, abandonando oficialmente a tese de que o socialismo seria rejeitado no Leste Europeu por meio de levantes violentos contra a URSS. Em vez disso, o Departamento de Estado assumiu a política conhecida como “New Look”, que previa a desintegração gradual da esfera soviética.[4]
As propostas da Casa Branca visando “colmatar o grande abismo que separa os americanos dos povos sob o regime comunista” devem ser entendidas predominantemente como parte do que Henry Kissinger chamou de “Nova diplomacia”, formulada para projetar a imagem dos EUA na competição de corações e mentes mundo afora. Essa iniciativa passava pelo reconhecimento de ONGs para atuarem na vanguarda das ofensivas culturais, com a orientação especial para construírem pontes através da Cortina de Ferro.
O contato inicial entre o Departamento de Estado americano e a Fundação Ford aconteceu por meio de uma nota “estritamente confidencial” em 22 de outubro de 1955, propondo que “fossem iniciadas negociações diretas e bilaterais com os regimes satélites sem esperar o consentimento do governo da URSS”.[5] Um relaxamento nas relações entre Washington e os países do Leste Europeu e a permissão para a entrada de europeus do Bloco Oriental em território americano pareciam trazer mais benefícios para os EUA do que uma liberalização no intercâmbio entre americanos e soviéticos. A regra geral passou a ser permitir a entrada de pessoas que, “em razão de seu ofício ou profissão, ficassem profundamente impressionadas com o que vissem e ouvissem nos EUA”, de modo que os visitantes fossem selecionados de acordo com sua suposta suscetibilidade aos valores americanos.
Em resposta, a Fundação Ford propôs um “Plano Marshall intelectual” para o Bloco Oriental e delineou como objetivo estratégico trabalhar pela substituição das ciências sociais ideologicamente identificadas com o marxismo por aquelas baseadas em metodologias empiristas, representativas do pensamento neopositivista americano.[6] Na época, os sociólogos no Ocidente progressivamente proclamavam “o fim da ideologia” sob o argumento de que a intelectualidade ocidental estava se afastando da “infalibilidade da teologia marxista antiga” e se interessando cada vez mais em “abordagens realistas e práticas dos problemas políticos e sociais”. Assim, a intelectualidade – inclusive acadêmicos marxistas ocidentais – acabaria por convergir para a defesa de um governo tecnocrático, e o empirismo americano serviria como sua base teórica.[7]
Uma figura-chave de tal processo era o ex-editor do New York Times e membro do Comitê de Psicologia Estratégica da CIA, Shepard Stone.[8] Como diretor do Programa de Assuntos Internacionais da Fundação Ford a partir de 1954, Stone começou a atuar em um recém-criado escritório de atividades políticas da entidade destinadas à Cortina de Ferro. Os trabalhos do escritório, de início, não tiveram expansão imediata para o leste, dada a incerteza quanto à dimensão do “degelo” pós-stalinista, concentrando-se primordialmente em projetos mais neutros, como financiamento da Universidade Livre de Berlim, frequentadas por estudantes dos lados ocidental e oriental da capital alemã.[9]
O ponto de virada nas políticas da Fundação Ford voltadas ao Bloco Oriental aconteceu após os eventos na Polônia e na Hungria em 1956, que desencadearam uma leva de exilados. Stone estava em Viena na época e imediatamente pediu um fundo de emergência de US$ 1 milhão para estudantes, artistas e intelectuais húngaros refugiados. Da capital austríaca, Stone também pôde testemunhar as implicações das revoltas de outubro na Polônia, que acarretaram uma ampla flexibilização das políticas socialistas no país, e, em fevereiro de 1957, fez uma viagem de nove dias à Polônia para explorar a viabilidade de um potencial programa de intercâmbio da Fundação Ford.
De acordo com o historiador Igor Czernecki, os planos iniciais de Stone consistiam em formular um programa de perfil discreto, consciente da situação volátil da Polônia, porém os próprios poloneses tornaram impossível a iniciativa, com a imprensa anunciando a presença no país de um representante da Fundação Ford. Contudo, Stone constatou que “o governo polonês tinha, evidentemente, decidido que, não obstante a Rússia, eles queriam que o povo polonês soubesse que as fundações americanas eram bem-vindas na Polônia”. Stone foi convidado para se reunir com altos funcionários do governo polonês, incluindo o primeiro-ministro Józef Cyrankiewicz. O próprio ministro da Educação, Władysław Bienkowski, chegou a expressar diretamente ao primeiro secretário do Partido Operário Unificado Polaco (PZPR), Władysław Gomułka, seu entusiasmo com a presença da Fundação Ford no país.
Na visita, Stone conversou com professores universitários, estudantes, artistas e escritores – incluso filiados ao PZPR – que almejavam a busca por mudanças políticas e demandavam com urgência ajuda econômica e contatos com intelectuais ocidentais. O que os unificava era a oposição ferrenha à ideologia “stalinista” e ao poderio de Moscou sobre seu território. De volta a Nova York, a recomendação de Stone ao Conselho de Administração da Fundação Ford – cuja linha oficial até 1956 era de que “a fundação, é claro, não funciona em nenhum dos países soviéticos ou satélites”[10] – dizia que a entidade “devia agir imediatamente na Polônia, ciente plenamente da possibilidade de que a Rússia soviética, durante a noite, poderia destruir o novo movimento rumo à liberdade”.
Dólares na Polônia, intelligentsia nos EUA
A Fundação Ford acompanhou, no início de 1957, as negociações oficiais entre Washington e Varsóvia para provisão de ajuda financeira à Polônia e, em abril, o então presidente da fundação, Henry T. Heald, anunciou a doação de US$ 500 mil para um programa anual destinado à Europa Oriental, relacionado especificamente a projetos poloneses. Segundo Heald, o objetivo da doação consistia em “capacitar professores e acadêmicos poloneses de destaque nas ciências sociais, economia, arquitetura e outras áreas para estabelecerem ou renovarem contatos com colegas ocidentais e obterem conhecimento dos desenvolvimentos ocidentais”.[11] O programa também incluía a oferta de vagas limitadas para poloneses estudarem e trabalharem nos EUA e na Europa Ocidental e o fornecimento de livros e revistas acadêmicas americanas para bibliotecas e institutos poloneses.
O projeto da Fundação Ford para a Polônia recebeu elogios de lideranças políticas importantes em Washington, incluindo o então senador John F. Kennedy. Embora houvesse receio interno de, em termos de relações públicas, a fundação ser acusada de estar “enviando dólares americanos para o comunismo”, o apoio ao projeto era reconhecidamente unânime entre o governo Eisenhower e os funcionários responsáveis pelas relações Leste-Oeste no Departamento de Estado.[12]
Nesse sentido, o status da Fundação Ford como uma organização não-governamental apolítica, independente da Casa Branca, foi crucial para sua eficácia,[13] ainda que, segundo o embaixador dos EUA na URSS, Charles Bohlen, “o Kremlin estivesse ciente das atitudes anti-URSS na Polônia”. Bohlen instou a fundação a manter contato com a Secretaria do Leste Europeu no Departamento de Estado, e, em uma ligação telefônica para Stone, o diretor da equipe de Contatos Leste-Oeste, FT Merrill, afirmou sem rodeios que o Departamento de Estado via que a fundação deveria desenvolver programas como o polonês também, por ordem de importância, na Iugoslávia, União Soviética, Romênia e Tchecoslováquia.[14]
Entre suas consequências, o contato de Stone com o Departamento de Estado motivou uma abertura à entrada de estudantes e professores poloneses filiados ao Partido Operário, selecionados com base no mérito intelectual.[15] Tal medida burlava a Lei de Imigração e Nacionalidade americana, que proibia membros dos partidos comunistas de receberem vistos para entrar nos EUA, mas Stone contou com o aval do Departamento de Estado para que os visitantes selecionados pela Fundação Ford fossem autorizados. Em contrapartida, a fundação revelaria ao governo americano informações pessoais sobre os comunistas para os quais a fundação solicitava o visto.
Em colaboração com o Instituto de Educação Internacional (IIE), a Fundação Ford também atuou no contato entre os poloneses participantes do programa e o Serviço de Imigração e Naturalização dos EUA. A parceria entre a fundação e o IIE ainda foi responsável não só por reunir estudiosos americanos para visitarem a Polônia, mas também pela vigilância dos poloneses que entravam nos EUA.[16] Os pesquisadores poloneses poderiam permanecer de três meses a dois anos em universidades americanas e, para professores visitantes, o IIE criou itinerários individuais que equilibravam os interesses dos bolsistas com oportunidades de apresentar o American way of life.[17]
O processo seletivo para os programas de bolsas nos EUA envolvia diretamente de Stone, já que, no caso polonês, a fundação passou a assumir um papel mais ativo na escolha de participantes individuais em comparação a outros países. Ele queria garantir que os beneficiários fossem receptivos a tudo o que as bolsas ofereciam. A seleção envolvia uma lista anual de bolsistas baseada em petições enviadas por aspirantes a candidatos, incluindo indicados pelo próprio Ministério do Ensino Superior polonês. Stone manteve contato com o presidente da União dos Escritores Poloneses, Antoni Słonimski,[18] além de ser pessoalmente próximo de membros recomendados pelo sindicato, como o escritor Aleksander Wat e o crítico literário e liderança na revolta polonesa de 1956, Jan Józef Lipski – três dissidentes políticos relevantes no campo cultural.
Em 1955, cerca de 4.700 passaportes poloneses haviam sido emitidos pelo Departamento de Passaportes do Ministério de Assuntos Internos (MIA). Dois anos mais tarde, o número saltou para 77 mil. A principal razão para esse relaxamento excepcional da fiscalização está na liberalização do governo polonês, posterior à crise política de 1956. A década seguinte marcou outra queda no número de passaportes emitidos, sugerindo que houve uma breve, mas real janela de oportunidade nos anos 1950.[19]
Ciências sociais made in USA
A política de “coexistência pacífica” e a ausência, para a Washington, de “muitos problemas diplomaticamente negociáveis na Europa Oriental” representaram vantagens para o trabalho da Fundação Ford no Leste Europeu, segundo concluiu um estudo de 1960 promovido um grupo de pesquisa da Columbia-Harvard para o Senado americano.[20] Em seu primeiro ano de operação (1957-1958), o programa de intercâmbio polonês enviou 50 intelectuais poloneses para o Ocidente. Destes, 23 viajaram para os EUA, 15 para o Reino Unido e o restante para a França (sete), Alemanha Ocidental (um), Suíça (três) e Suécia (um). Em 1959, o programa foi expandido para incluir a Iugoslávia, quando seu gasto total chegou a US$ 1,5 milhão.
A título de comparações, é nítido o tamanho do impacto da Fundação Ford na Polônia. O orçamento para o mesmo programa destinado à Iugoslávia, que levou 25 “bolsistas e líderes” iugoslavos para os EUA em 1959, não ultrapassou 5% do orçamento anual voltado ao intercâmbio Leste-Oeste.[21] Ao mesmo tempo, a Polônia também participava dos programas de intercâmbio administrados pela Fundação Rockefeller, de financiamento privado, e pelo British Council, de financiamento público. Tais programas contavam com orçamentos bem inferiores aos da Fundação Ford e, como as autoridades polonesas eram responsáveis pela seleção dos candidatos, a maioria dos bolsistas era formada por pesquisadores das ciências naturais. Como assinalou Stone, esses programas não tinham “as implicações políticas e psicológicas do nosso programa – médicos e biólogos parecem ser poloneses inofensivos”[22].
De acordo com o historiador Igor Czernecki, o calibre dos intelectuais poloneses que viajaram para o Ocidente foi unanimemente elogiado por seus pares nos EUA, ao mesmo tempo que as reações foram igualmente animadoras nos círculos acadêmicos da Europa Ocidental. “Trabalhar com o jovem sociólogo Zygmunt Bauman na London School of Economics foi uma das experiências acadêmicas mais recompensadoras, apesar de sua rígida formação marxista”, lembrou, por exemplo, um professor polonês.[23]
Para os sociólogos que receberam bolsas da Fundação Ford, essa também era uma oportunidade de reconfigurar o papel de suas disciplinas nas universidades. Nos EUA, os sociólogos poloneses costumavam se dirigir frequentemente à Universidade de Columbia, onde funcionava o Bureau de Pesquisa Social Aplicada de Robert Merton e Paul Lazarsfeld, importante centro da investigação social empírica. Outros sociólogos se deslocaram para a Universidade de Chicago, Califórnia e Michigan. Do outro lado, no início de 1958, a Fundação Ford levou Paul Lazarsfeld para uma viagem de dez dias à Polônia para “verificar o progresso da sociologia no país”. Durante sua estada, Lazarsfeld realizou reuniões com estudantes, economistas, filósofos e cientistas políticos e estava confiante de que a pesquisa social empírica – chamada por ele de “sociologia concreta” – deixaria sua marca no país.
Cortina de Ferro cerrada para a Fundação Ford
A iniciativa da Fundação Ford começou a ser corretamente percebida pelas autoridades polonesas como uma política do Departamento de Estado dos EUA ainda nos anos 1950, porém, naquele período, o governo polonês estava inclinado positivamente a Washington, já que havia acabado de iniciar negociações comerciais e de concessão de empréstimos. A política americana era entendida como um sinal de apoio pelo governo polonês, por mais que as autoridades polonesas deplorassem a retórica contra “comunismo nacional” adotada pelo secretário de Estado John Foster Dulles. O Comitê Central do PZPR enxergava na assistência financeira americana uma forma de retomada do crescimento econômico do país.
Entretanto, no início de 1957, já era visível que o clima de liberalização política enfrentaria reveses com as eleições para o Sejm (Parlamento polonês). Após a 10º plenária do Comitê Central do PZPR, em outubro daquele ano, a opinião oficial era de que “a liberdade acadêmica não é equivalente ao fato de o Partido deixar seu controle sobre a cultura diminuir”. Paralelamente, o governo polonês tentava manter relações menos tensas com Moscou, evitando, nas palavras do chefe da missão polonesa na ONU, Jan Michałowski, “antagonizar o Kremlin indevidamente”.
A popularidade do programa fez com que as autoridades polonesas sentissem a necessidade de expandirem sua influência máxima no processo de seleção de bolsistas. Na ótica do Ministério do Ensino Superior polonês, os membros do partido escolhidos diretamente pela Fundação Ford eram uma cortina de fumaça para numerosos “revisionistas” que recebiam doações e trabalhavam contra os interesses do Estado polonês.[24] Além disso, intelectuais como Zygmunt Bauman expressaram a opinião de que, ao “cederem” acriticamente à sociologia americana, a classe acadêmica polonesa estava dificultando a construção de um marxismo propriamente polonês, uma crítica que teve ampla repercussão nas instituições políticas do país.[25]
A partir de 1958, as autoridades polonesas começaram a recursar a emissão de passaportes para candidatos considerados desleais. Os representantes da Fundação Ford tentaram reagir a tal obstrução buscando diálogo com o Ministério do Ensino Superior e deputados do Parlamento polonês, porém o Comitê Central do partido endureceu as permissões de quem poderia viajar ao Ocidente. Na 12º plenária do Comitê Central do partido, em outubro de 1958, o presidente da Comissão de Educação do CC, Adam Schaff, anunciou a nova linha geral do governo polonês quanto ao impasse ao defender a necessidade de um “controle correto das trocas científicas e culturais” e que era preciso “assumir a organização e o controle do intercâmbio cultural e científico de acordo com os interesses do Estado”.
Em novembro de 1960, um levantamento realizado pelo governo polonês identificou que, de 253 bolsas de estudo da Fundação Ford, 56% eram para pesquisadores das ciências humanas, enquanto os estudiosos das áreas de economia e ciências exatas ficavam com o total de 32,5% das bolsas.[26] Em fevereiro de 1961, somente 330 poloneses haviam sido selecionados pela Fundação Ford para viajar para o Ocidente, enquanto os intercâmbios com a Iugoslávia e a URSS permaneciam em andamento, e a fundação começava a expandir suas atividades para a Bulgária, a Romênia e a Tchecoslováquia.
As portas de Varsóvia foram definitivamente fechadas em 1962, quando o governo polonês passou a considerar “injustas” as regras de seleção da Fundação Ford. As transformações políticas influenciaram na suspensão das atividades, já que Moscou iniciou uma pressão rigorosa sobre os assuntos internos poloneses em troca da estabilidade em um país que era considerado pelos russos uma zona-tampão crucial contra a invasão ocidental. A URSS estava cada vez mais insatisfeita com a influência americana na Polônia e também se opôs às operações da fundação na Iugoslávia, onde Belgrado já mantinha controle total dos bolsistas e garantia que apenas membros leais do partido fossem selecionados.
Além disso, para entender as razões para o término do programa, é essencial levar em conta a dinâmica interna do PZPR nos anos seguintes a outubro de 1956. No início dos anos 1960, Gomułka via nas reformas de liberalização política o perigo emergente da infiltração de valores liberais ocidentais e condenou aquilo que ele chamava de “revisionismo tubercular” que, segundo ele, estava se espalhando pelos círculos literários e acadêmicos. Em julho de 1963, em uma reunião do partido dedicada à “luta ideológica”, o primeiro secretário afirmou que as autoridades polonesas haviam descoberto “esforços visando à penetração ideológica” por meio de bolsas de estudo a fim de estimular “tendências revisionistas e burguesas” nas artes e nas ciências do país.[27]
Mesmo satisfeita com os resultados positivos do intercâmbio, a Fundação Ford não suportava mais uma mudança de regras de funcionamento do programa. A fundação chegou a reiniciar suas atividades na Polônia em 1967, contudo ela enfrentava problemas financeiros, e o orçamento de todas as suas operações estrangeiras havia sido significativamente reduzido. Além disso, as novas regras foram determinadas pelo governo polonês, com a seleção limitada a cinco candidatos e todas as entrevistas sendo conduzidas pelo Ministério do Ensino Superior em Varsóvia. Das 60 bolsas oferecidas naquele ano, 70% foram concedidas a cientistas e especialistas em administração, administração pública e economia.
“Os três pilares da Polônia: Igreja, Gomułka e Fundação Ford”
Uma frase que reflete bem o legado da Fundação Ford deixado na sociedade polonesa foi dita pelo filósofo e assistente do secretário de Estado americano, Charles Frankel, ao regressar do país em 1958 – “a Polônia moderna repousa sobre três pilares: a Igreja Católica, Gomułka e a Fundação Ford”.[28] Essa avaliação da influência da fundação no Bloco Oriental demonstra o impacto do programa de intercâmbio no meio intelectual polonês na década pós-Stálin, em especial na sociologia, profundamente afetada pelo financiamento de subdisciplinas interculturais.
Um personagem clássico desse processo foi o sociólogo empirista Stefan Nowak, que recebeu uma bolsa em 1958 para estudar com Lazarsfeld na Universidade de Columbia e depois ministrou seminários sobre sociologia empírica na Universidade de Varsóvia.[29] O sociólogo foi o responsável por popularizar a terminologia metodológica americana na academia polonesa, incluindo a publicação de uma “nova linguagem para a pesquisa social”.
Outro exemplo notável de trabalho acadêmico moldado pela Fundação Ford especificamente no pensamento marxista está no reitor da Universidade de Łódź, Jan Szczepański, e no sociólogo Andrzej Malewski, cujas análises sobre materialismo histórico foram escritas com base em livros trazidos a Varsóvia com fundos de fundação. Após passar um período de 13 meses estudando nas Universidade de Columbia e Berkeley entre 1959 e 1960, Malewski se estabeleceu o campo da Psicologia social. Já Szczepański é reconhecido por sua obra La Sociologie Marxiste Empirique (Sociologia empírica marxista), publicada na França, em que abre o marxismo à metodologia da sociologia empírica americana.
A geração mais antiga de sociólogos poloneses, formados na escola lógico-empirista de Lwów-Varsóvia antes da Segunda Guerra Mundial, era mais crítica à moderna metodologia sociológica americana.[30] Stanisław Ossowski, catedrático da Universidade de Varsóvia que chegou a viajar aos EUA com uma bolsa da Fundação Ford em 1958, é um bom exemplo da resistência à sociologia dos EUA entre tal geração de acadêmicos poloneses. Ossowski – que não era comunista – condenou a fascínio dos sociólogos empíricos com as ciências naturais, o que demonstra que a resistência à americanização das ciências sociais não partia apenas dos marxistas, mas também dos círculos da escola positivista polonesa do pré-Guerra.
De toda forma, era claro que tal americanização promovida pela fundação contribuiu para disseminar a ideologia ocidental em outros países do Bloco Oriental. Em consonância a isso, na visão de Paul Lazarsfeld, a ascensão das ciências sociais americanas na Polônia é consequência direta do processo de “desestalinização” no Leste Europeu: “É a geração mais jovem de eruditos comunistas que promove e realiza trabalho em sociologia concreta. A chamada desestalinização é responsável por grande parte desse desenvolvimento, embora o crescente contato com os sociólogos ocidentais desempenhe seu papel. No momento, vários governos comunistas dão um apoio relativamente maior à pesquisa social empírica do que alguns países ocidentais”.[31]
Vale a pena ressaltar que, por trás de toda essa dinâmica de transformação ideológica da cena intelectual polonesa, estava a teoria da convergência, elaborada por sociólogos ocidentais nos anos 1950, presumindo que, no futuro, as sociedades socialistas enfrentariam desafios semelhantes às democracias liberais e teriam que encontrar soluções ou promulgar reformas para superá-las. Assim, haveria, em detrimento do desenvolvimento do marxismo clássico, um terreno mais fértil nas ciências sociais polonesas para a germinação de núcleos positivistas que poderiam acelerar esse processo.
A iniciativa da Fundação Ford na Polônia é também sintoma da conjuntura política polonesa e internacional da época. Ela foi desenvolvida após os eventos do outono de 1956, em que a presença da URSS no Leste Europeu passou a ser mais contestada, e se baseava na crença de que era possível transformar pacificamente as sociedades da Cortina de Ferro por meio de reformas a ponto de retirá-las da esfera de influência soviética. A despeito da imprevisibilidade da continuidade do programa, a Fundação Ford se valeu dessa janela de oportunidades para influenciar a Polônia com a visão de mundo americana.
Apesar da suspensão do programa no começo dos anos 1960, ele conseguiu angariar o apoio de um crescente grupo de intelectuais desiludidos, formando uma oposição ao governo socialista – este último, de início, custou a perceber que, por trás dos intercâmbios de professores e estudantes entre Leste e Oeste, estava a política do Departamento de Estado dos EUA. A integração cultural da intelligentsia dos países do Leste Europeu à cosmovisão americana traria frutos a Washington nas décadas seguintes, com o desmantelamento do socialismo no Bloco Oriental.
Fontes:
[1] – https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14682745.2012.756473 [2] – http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_IX/Andrea-Pennacchi.pdf [3] – Kenneth Osgood, Total Cold War: Eisenhower’s Secret Propaganda Battle (Lawrence, KS: Kansas UP, 2006), 46–75. [4] – https://www.encyclopedia.com/people/history/us-history-biographies/john-foster-dulles [5] – https://mafiadoc.com/america-and-human-capital-formation-in-communist-_5ba43f7a097c4772598b46d9.html