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Não há Brumadinho na Suécia: como a ‘Vale’ de lá trata sua população

A LKAB, empresa 100% estatal que opera a mina de Kiruna, banca do próprio bolso um ambicioso programa para realocar e reconstruir a cidade.

por Luiz Freitas | Revista Opera
O Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante sobrevoo da região atingida pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG. (Foto: Isaac Nóbrega/PR)

A cidade de Kiruna, situada ao norte da Suécia, na província da Lapônia, vem ganhando destaque nas manchetes da imprensa mundial com relativa frequência – isso apesar do quão pequena e isolada a cidade é. Há apenas alguns anos, vários órgãos internacionais de imprensa noticiam com curiosidade o fato de que a cidade está simplesmente mudando de lugar.

Em Kiruna está a maior mina de ferro do mundo. Quilômetros e mais quilômetros de minério de ferro estão em volta e abaixo da cidade. Com o tempo, graças à mineração em escala massiva, ficou constatado que a cidade está gradativamente afundando.

A mineração em Kiruna é extremamente importante para a região e para a economia sueca como um todo. Seria muito difícil ocupar e prover empregos num lugar tão remoto e isolado. Estive lá recentemente, em uma viagem que me custou um dia inteiro. Seria muito fácil justificar os danos estruturais causados a quem mora na localidade – que, muito provavelmente, deve seu sustento e moradia à mina – como um mal menor, e argumentar que a mina é benéfica demais à população para ser considerada culpada por essas consequências quase naturais.

Não foi o que aconteceu na Suécia. A LKAB, empresa 100% estatal que opera a mina – de certa forma, a Vale do Rio Doce sueca – banca do próprio bolso um ambicioso programa para simplesmente realocar e reconstruir em outras áreas o que preciso for da cidade. Construções originalmente icônicas, como a prefeitura e sua torre com um relógio, foram abandonadas e substituídas. Em alguns casos, serão transferidos simplesmente imóveis inteiros, por julgarem ser mais fácil que reconstruir. Essa opção está sendo tomada especialmente em construções com valor arquitetônico e histórico, como a igreja da cidade, que tem uma arquitetura arrojada e singular.

Não bastava apenas compensar a comunidade pelos transtornos causados pela sua atividade. A empresa precisava também mostrar que não economizava esforços e não simplesmente executaria um serviço mais fácil e barato para se livrar do problema.

Nada disso foi um favor. Não foi nada mais que a obrigação. As leis de compensação ambiental na Suécia são duras, e o fato da empresa ser estatal torna praticamente impossível evadir essas responsabilidades. Claro, há vários problemas em torno da atividade de mineração. Além dos transtornos ambientais, é muito discutido o impacto que a mina e a “colonização” do norte sueco teve nos sámis, o povo indígena que habitava a região e era o dono dessa terra. Conflitos entre os recém-chegados e eles, por terra e recursos, eram comuns. Seu modo de vida, que dependia do pastoreio de renas, foi duramente afetado.

De toda forma, nem mesmo a importância enorme dessa mineração – trata-se nada menos da maior mina de ferro do planeta – livrou a atividade comercial de suas responsabilidades perante ao povo. Naquele que um dia foi o mais “socialista” entre os países capitalistas, em nenhum momento se cogitou livrar os grandes empresários – ou os “criadores de emprego” – de licenças ambientais, contrapartidas e “burocracia”.

Ao contrário do que acontece em outros lugares do mundo, em nenhum momento, nem mesmo hoje, com a progressiva liberalização do país, as autoridades fiscalizadoras foram tratadas como um empecilho ao desenvolvimento, como um bando de desocupados dispostos a sabotar a atividade desses altruístas empreendedores quase que por puro sadismo. Acima de tudo, nem mesmo após uma ofensiva neoliberal de quase 30 anos a privatização da LKAB foi considerada.

Mais do que tudo, não se trata de quão “evoluído”, “racional” ou “perfeito” são o povo e os políticos suecos, com a sua social-democracia clássica que já praticamente não existe mais. É simplesmente a diferença entre um modelo onde o lucro deve estar a serviço da sociedade e não o contrário.

A ideia de Kiruna colapsar devido à atividade mineradora, deixando mais de 100 mortos e centenas de desaparecidos, é impensável. Quando tragédias como essa acontecem, não são por acidente, mas uma opção consciente feita pelo caminho mais fácil, uma preferência por números bonitos na planilha em detrimento do bem-estar da sociedade.

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