Pesquisar
, ,

O terceiro-mundo incomoda: a crítica alemã não gostou de “Marighella”

Aparentemente, o que incomoda à crítica alemã no filme “Marighella” não é a ficção, mas os fatos.
Aparentemente, o que incomoda à crítica alemã no filme “Marighella” não é a ficção, mas os fatos. Por Pedro Marin | Revista Opera

Quão valoroso foi o trabalho da Deutsche Welle, que nessa segunda-feira (18) nos trouxe as críticas da imprensa alemã ao filme “Marighella”, de Wagner Moura, que acaba de ser exibido no Festival de Berlim.

Rundfunk Berlin-Brandenburg (RBB) saiu com a manchete “Epopeia cansativa.” Diz o jornal:

“‘Não somos terroristas’, grita Marighella aos reféns de um assalto a banco. ‘Somos revolucionários!’ Declarações como essa há um pouco demais no filme. O herói tende a monólogos impulsivos e discussões que, apesar da determinação com que são feitas, soam estranhamente sem vida. Dúvida e ambiguidades não estão previstas em Marighella.”

Talvez hajam demais, de fato. É que, no Brasil, vivemos 21 anos com demasiadas declarações sobre “terroristas” – inclusive quando eram operários, padres, intelectuais. Se Wagner Moura tivesse a ideia de fazer tal filme nos anos 70, provavelmente também com tal adjetivo seria homenageado. Os 155 minutos do filme nunca serão suficientes para, frente ao inexorável ataque que sofreram e sofrem nossos heróis, afirmar: “Não somos terroristas, somos revolucionários.”

O direitista Der Tagesspiegel define a obra de Moura de forma incendiária: “Carlos Marighella, o bom terrorista.” Diz a redação:

“Só na América Latina e – depois da eleição do populista de direita Jair Bolsonaro para presidente – em especial no Brasil, a crença na pertinência da luta armada parece intocada.”

Para fechar o artigo com as seguintes palavras:

“Bruno Gagliasso atua como o policial apropriadamente sem misericórdia, como um John Travolta brasileiro. Mas nem sua brutalidade justifica a promessa de mitificação de Marighella”

É estranho que o autor, em tom de uma babá que dá lições a uma criança, diga que “só na América Latina e Brasil a crença na pertinência da luta armada pareça intocada” para depois dizer que a brutalidade de um “John Travolta brasileiro” (quem dera figuras como Fleury e Ustra tivessem a delicadeza de Travolta) não justifica a promessa de mitificação de Marighella: é que o texto parece reconhecer que, apesar de injustificada nas telas, a pertinência da guerrilha segue viva no mundo real. Assim, não brigam com o filme, brigam com o que entendem por fatos. Um paradoxo para um jornal que tem como mote a frase de Virgílio: “Feliz quem sabe a causa das coisas” (erum cognoscere causas).

É incrível saber, no entanto, que os ataques mais baixos tenham vindo do Die Tageszeitung (TAZ), jornal “progressista” ligado ao Partido Verde alemão. Na análise “A guerrilha sempre tem razão” o jornal diz que

“Este filme não conhece contradições, por exemplo não tematiza as teorias imperialistas e capitalistas unidimensionais da esquerda de então.”

Não compreendo se os jornalistas amigos do TAZ sugerem assim que a esquerda seria imperialista e capitalista – uma coisa um tanto sem sentido, mas afinal eu não falo gringo, eu só falo brasileiro – ou se criticam sua visão sobre os temas. Porque, se este for o caso, é válido informar aos colegas verdes que no terceiro-mundo a mão imperial não só é “unidimensional”, mas também pesada como os caminhões Volkswagen.

O jornal depois reclama:

“As cenas de tortura ultrapassa os limites do cinematicamente suportável.”

Se assim for, Moura é responsável por uma obra-prima do realismo. É que conseguiu tornar “cinematicamente insuportável” o que é humanamente intragável: a tortura. Se tivesse sentado na cadeira do dragão da ditadura, e não na confortável poltrona do cinema, sem dúvidas os parâmetros do jornalista para o “suportável” seriam diferentes.

Mas não é só isso. Os progressistas-verdes alemães, ao que parece, atiram mais contra a esquerda que os direitistas do Der Tagesspiegel. Dizem eles:

“[A estética de Moura] revela sobretudo um corte significativo na mentalidade do populismo de esquerda na América Latina e como este, hoje, ajeita a história a seu gosto. […] Penetrante e grotesca é a representação da influência do governo americano nos acontecimentos na América Latina. Até hoje ela serve ao populismo de esquerda local como desculpa para o próprio fracasso.”

É impressionante, mas ao que parece o que tem chegado aos nossos colegas alemães é que é o “populismo de esquerda” é que ajeita a história a seu gosto no Brasil. Aparentemente por lá não se fala do “Escola Sem Partido.” Quanto à penetrante representação da “influência” dos EUA na América Latina, deixo aos colegas alemães a certeza de que com gosto dela abriríamos mão, mesmo que assim ficássemos sem “desculpas” (e provavelmente ficaríamos mesmo: não há desculpas quando não há problemas.)

Assistiremos “Marighella”, e ao filme faremos a nossa crítica. Porque, como nos ensinou a história, não é inteligente que o terceiro-mundo espere cortesias do primeiro.

 Leia também – Histórias que a História qualquer dia contará: Crítica de “Marighella” 

Continue lendo

O candidato Pablo Marçal gesticula e olha diretamente para a câmera durante debate Folha/UOL. No seu paletó, há um adesivo com seu número: 28.
Marçal deve ir ao segundo turno, e debate na Globo é central para definir quem irá com ele
nasrallah hezbollah israel
Hassan Nasrallah: o homem que derrotou Israel
Um jovem chuta 'santinhos eleitorais' que cobrem as calçadas durante primeiro turno das eleições. Na foto, os santinhos voam, enquanto ao fundo uma caminhonete passa pela rua.
Frei Betto: eleições e a síndrome da gata borralheira

Leia também

sao paulo
Eleições em São Paulo: o xadrez e o carteado
rsz_pablo-marcal
Pablo Marçal: não se deve subestimar o candidato coach
1-CAPA
Dando de comer: como a China venceu a miséria e eleva o padrão de vida dos pobres
rsz_escrita
No papel: o futuro da escrita à mão na educação
bolivia
Bolívia e o golpismo como espetáculo
rsz_1jodi_dean
Jodi Dean: “a Palestina é o cerne da luta contra o imperialismo em todo o mundo”
forcas armadas
As Forças Armadas contra o Brasil negro [parte 1]
PT
O esforço de Lula é inútil: o sonho das classes dominantes é destruir o PT
ratzel_geopolitica
Ratzel e o embrião da geopolítica: os anos iniciais
almir guineto
78 anos de Almir Guineto, rei e herói do pagode popular