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Eleições na Ucrânia: quando não ter notícias é uma notícia ruim

Um certo “consenso” ainda existe na Ucrânia, e é baseado na submissão total dos oligarcas locais aos “capatazes” que operam de Washington e Bruxelas.
por Dmitry Babich | Strategic Culture – Tradução de André Kanasiro para a Revista Opera
(Foto: Oleg Dubyna)

 

Conforme a eleição presidencial ucraniana, agendada para 31 de março, se aproxima cada vez mais, políticos ocidentais estão se esforçando para protegê-la de “interferências russas”. Esta proteção, que se tornou algum tipo de esporte anglo-saxão peculiar nos EUA e no Reino Unido, foi priorizada na agenda do encontro de ministros do exterior da União Europeia em 18 de fevereiro, declarada como uma discussão da próxima eleição ucraniana. Um leitor ingênuo da imprensa ocidental pode se perguntar por que o presidente da “mais nova Ucrânia ocidentalizada”, Petro Poroshenko, tem uma taxa de aprovação de só 14%, seguindo o comediante Vladimir Zelensky com seus 21.9% e a ex-primeira ministra Yulia Tymoshenko com seus 19%. Obviamente, alguma “interferência” deve ter acontecido…

Um país que é uma ameaça a si mesmo

Sob um olhar mais atento, entretanto, a eleição ucraniana parece necessitar mais de proteção contra suas próprias formas de extremismo ucraniano do que contra qualquer interferência do lado russo. Basta apresentar uma lista breve das sugestões recentes e movimentos políticos reais (alguns deles vindo do próprio alto escalão do governo) que foram feitos no calor da histeria eleitoral. Não surpreende que a maior parte destas sugestões e movimentos estejam relacionados à Rússia.

O candidato presidencial Vitaly Kupryi simplesmente sugeriu que a Ucrânia deveria declarar guerra oficialmente à Rússia, obrigando o presidente Petro Poroshenko a anunciar uma mobilização imediata e a usar uma lei especial para começar a mover tropas contra o “agressor”. Já que Kupryi é um deputado na Suprema Rada (o parlamento ucraniano), seu projeto de lei, que goza do apoio de um grupo de deputados igualmente beligerantes, foi registrado oficialmente e aguarda ser revisto pelos parlamentares. Até agora, a Rada Suprema relutou em seguir neste caminho um tanto quanto suicida, preferindo outras rotas mais longas e oblíquas em direção à catástrofe. Semana passada a Rada fez a estrada da Ucrânia em direção à OTAN e à UE legalmente irrevogável através de outra lei especial, alterando a Constituição ucraniana, onde o estado neutro, não-alinhado do país foi entesourado desde os anos 90. Os parlamentares também continuaram a trabalhar num projeto de lei, que faz de “negações da agressão russa contra a Ucrânia” (isto é, declarar a verdade de que a guerra nas regiões falantes de russo do leste é um conflito civil) uma ofensa criminal, punível com muitos anos de prisão. O candidato principal e presidente em exercício, Petro Poroshenko, não permitiu no entanto que seu parlamento o ultrapassasse nas idiotices beligerantes. Ele declarou as visitas por cidadãos russos à península falante de russo da Crimeia como “crimes hediondos – quebras da fronteira ucraniana”, que deveriam ser todos punidos com muitos anos de prisão ucraniana. (6.8 milhões de turistas russos visitaram a Crimeia só em 2018, então teoricamente Poroshenko poderia estabelecer a Ucrânia no livro do Guinness World Records como o país com a maior população prisional em potencial).

Escolha falsa: “Ou Putin ou Poroshenko”

Quanto à “interferência russa” nas eleições, alguns dos candidatos, incluindo Poroshenko, estão fabricando esta “interferência” eles mesmos, ao continuamente fazerem campanha não pela Ucrânia, mas sim contra a Rússia e seu presidente Vladimir Putin. Por exemplo, o anúncio de campanha de Poroshenko, revelado em 29 de janeiro, dia em que sua candidatura foi lançada oficialmente, mostrava uma imagem photoshopada do presidente ucraniano em exercício confrontando seu colega russo, com a legenda: “Ou Poroshenko ou Putin.”

A razão pela qual Poroshenko tenta continuamente redirecionar a atenção dos eleitores para longe dos problemas reais do país e em direção à ostensiva “invasão” da Rússia é óbvia. “A situação econômica catastrófica da Ucrânia não deixa a Poroshenko qualquer espaço para auto-promoção. Economicamente, este bilionário dos doces, que enriqueceu trabalhando em todos os governos, do de Kuchma ao de Yanukovich, se mostrou bastante perdido”, diz Mikhail Pogrebinsky, diretor do Centro de Pesquisa Política e Estudos de Conflito sediado em Kiev.

No último trimestre do ano de 2018, a renda média de uma família ucraniana foi de 9,400 hryvnas (cerca de US$350). Isso levou o FMI a declarar a Ucrânia como país mais pobre da Europa: a Ucrânia até superou a Moldova nessa honra duvidosa, uma nação que antes estava no topo dos rankings de pobreza, com um salário médio de US$ 375. Oleg Lyashko, um nacionalista extravagante do Partido Radical da Ucrânia, acusou Poroshenko de “nos levar para a Europa via África.”

Um triste fim para os “salvadores” estrangeiros

Não admira que Poroshenko tenha parado de falar de lutar contra a corrupção e introduzir padrões ocidentais de manejo do estado, os dois pilares de seus planos para a Ucrânia no começo de sua presidência em 2014. O “paraquedismo” de especialistas estrangeiros para dentro do governo (os georgianos Mikheil Saakashvili e Alexander Kvitashvili, o nativo da Lituânia Aivaras Abromavicius, assim como uma cidadã americana, Natalie Jaresko) terminou em resignações desonrosas, acompanhadas de escândalos e acusações mútuas. Quando saíram, o ex-Ministro de Economia e Comércio Abromavicius e o ex-governador de Odessa Saakashvili acusaram a comitiva de Poroshenko de vasta corrupção, muito pior que as práticas do ex-presidente, Viktor Yanukovich. É interessante notar que o primeiro procurador geral tanto de Saakashvili quanto de Poroshenko, Vitaly Yarema, inicialmente justificou protestos violentos contra o “corrupto” Yanukovich em 2013 e 2014, quando 38 policiais foram mortos pelos “manifestantes pacíficos” (apoiados pelos EUA) do Maidan. Mas ambos agora reconhecem que os “esquemas de corrupção se tornaram ainda mais intrincados e prejudiciais” para a sociedade hoje em comparação com a era de Yanukovich. Não surpreende que Yarema tenha sido demitido dias depois de fazer tais declarações.  

“O governo de oligarcas sobre a economia e a extorsão de subornos dos cidadãos por oficiais do estado não diminuíram desde o governo de Yanukovich”, escreve um blogueiro popular e perito em política sediado em Kiev chamado Viktor Datsyuk. “O que é ainda pior, a ganância da elite governante destruiu o ‘consenso oligárquico’ que tinha existido na Ucrânia por anos”. Na opinião de Datsyuk, isso pode levar a uma nova guerra hobbesiana “de todos contra todos” na Ucrânia.

Submissão ao Ocidente como o novo consenso

Sob olhar mais atento, de novo, um certo “consenso oligárquico” ainda existe na Ucrânia, e esse consenso é baseado na submissão total dos oligarcas locais aos “capatazes” da Ucrânia, que operam de Washington e Bruxelas.

No pico da campanha presidencial, a Ucrânia simplesmente explodiu de fúria quando Poroshenko se recusou a obedecer uma decisão da corte administrativa de Kiev. A corte removeu Ulyana Suprun de sua função – uma americana de descendência ucraniana, a última dos “especialistas estrangeiros” ainda operando no governo ucraniano com um passaporte americano. Legalmente, a decisão da corte estava correta: Suprun esteve “realizando deveres” do ministro da saúde do país sem ser designada oficialmente no devido tempo e em violação de uma lei que proíbe não-cidadãos da Ucrânia de ocupar posições no governo.

“Eu dei a ela cidadania pelo meu próprio decreto”, disse Poroshenko, ignorando perguntas sobre Suprun não renunciar à sua cidadania americana, como exigido pela lei ucraniana.

A última vez em que a elite ocidental esteve tão armada para proteger um “especialista estrangeiro” dentro da elite ucraniana foi em 2017, quando Poroshenko subitamente cancelou seu próprio decreto garantindo cidadania ucraniana a Mikheil Saakashvili, o ex-presidente da Geórgia. Na época, Saakashvili estava na Europa ocidental, mas de alguma forma fez o caminho de volta para a Ucrânia por um posto de fronteira entrando junto de uma multidão de apoiadores em setembro de 2017, e foi encontrado “por acaso” do lado ucraniano da fronteira pelos cabeças de facções influentes da Rada: Yulia Tymoshenko (o partido “Pátria”) e Andrei Sadovoy (do Samooborona, ou movimento de “Auto-Defesa”). De alguma forma, o posto de fronteira também era visitado naquela hora por Valentin Nalivaichenko, ex-diretor do temível Serviço de Segurança Ucraniano (SBU).

Todos eles abraçaram Saakashvili com rostos sombrios, não muito de acordo com um avanço miraculoso e “espontâneo” através da fronteira fortemente vigiada.

Alguns meses depois, quando Saakashvili de alguma forma caiu em desgraça com seus supervisores ocidentais e foi despejado da Ucrânia pelas forças especiais de Poroshenko via um vôo fretado para a Europa, seus “amigos” Tymoshenko e Nalivaichenko não levantaram um dedo em sua defesa.

O incumbente inevitável

Obviamente, depois que os EUA e a UE permitiram que Poroshenko expulsasse Saakashvili da Ucrânia sem permissão, ficou claro que eles não tinham outra alternativa séria a Poroshenko. Mais provavelmente, eles “permitirão” que Poroshenko ganhe, usando a imagem pública imensamente negativa de Tymoshenko (70% dos ucranianos não querem vê-la como presidente sob quaisquer circunstâncias).

Quanto às pessoas que estão sugerindo alternativas realistas ao curso desastroso atual, elas estão sendo estigmatizadas como “agentes russos” ou, pior, “amigos de Putin.”

Esta não é uma situação em que nenhuma notícia é boa, contudo. A posse contínua de Poroshenko sobre o poder na Ucrânia significa a ameaça contínua de outra guerra no Donbass, da perseguição de oponentes políticos, e da desapropriação e perda de status legal para a Igreja Ortodoxa Ucraniana sob o Patriarcado de Moscou. Então, Poroshenko não deveria reclamar, quando, como ele mesmo disse aos jornalistas, Vladimir Putin se recusou a atender sua ligação. “Eu não queria ajudar Poroshenko em sua campanha eleitoral”, explicou Putin. Ele tinha uma boa razão para dizer isso.

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