É do estadista francês Georges Clemenceau a frase “a guerra é demasiado séria para deixá-la em mãos dos generais’’. O historiador italiano Domenico Losurdo, comentando-a, nos lançou uma luz que pode ser bem aproveitada: “os especialistas frequentemente são capazes de ver as árvores, mas não a floresta, eles se deixam absorver pelos detalhes perdendo de vista o global; neste caso sabem tudo, menos o que é essencial’’ [1]. Linhas de alguma valia quando uma ameaça de guerra ronda nossa região.
Em guerra e em política cedo se aprende a não fazer previsões, mas ficar alheio aos cenários possíveis é também um erro, talvez mais grave. No horizonte sul-americano desenha-se em linhas claras a possibilidade de uma guerra contra a Venezuela que, chegada às vias de fato, será o maior banho de sangue da história do nosso continente. Perto dela, a guerra contra o Paraguai será uma brincadeira de criança.
Este texto não tem o objetivo de convencer o leitor da possibilidade da guerra. Ela ocupa, hoje, lugar de destaque no leque que visa uma mudança de governo na república bolivariana. Falharam os recursos à via eleitoral, aos distúrbios de rua (as guarimbas em 2017) e o atentado ao alto escalão governamental (agosto de 2018). No mesmo sentido, os estímulos a dissidências, complôs e tentativa de golpes nas Forças Armadas estão sendo continuamente desbaratados pelo governo. A cada tentativa falha, aproxima-se o recurso da guerra.
Na política e especialmente na guerra, a sua fase mais bruta, não há espaço para que fiquemos em cima do muro. Desde mais de um século o continente americano foi palco de dezenas de intervenções diretas por parte dos Estados Unidos e outras incontáveis interferências sem a deflagração formal de um conflito. Isso por si só já deveria bastar para que todos os defensores da mais ínfima autonomia dos povos fossem radicalmente contra qualquer ameaça de guerra. A questão aqui é bem menos sobre o governo Nicolás Maduro e muito mais sobre a pergunta: quantos Allendes devem morrer para o povo latino perder a vergonha de se defender? [2]
Deixaremos claro de que forma o cenário se organiza e que papel o Estado brasileiro vem cumprindo. Nunca é supérfluo lembrar: é como tatear um terreno escuro onde, aqui e ali, ora sim, ora não, um feixe de luz ilumina parte do cenário e das personagens que o compõem. Trata-se de uma tese onde os protagonistas são Estados e suas instituições se preparam para eventos de grande escala. As informações tornadas públicas são poucas e a confiabilidade de muitas, questionável. Como tese, pode conter equívocos, estar parcialmente correta ou pode ser engolida por novos acontecimentos. Tempo ao tempo.
À reboque dos interesses de terceiros: o papel do Brasil
Por ocasião da realização do Amazonlog17, quase dois anos atrás, escrevi um texto [3] alertando para o papel que o Estado brasileiro já naquele momento passava a cumprir no processo de pressão contra a Venezuela. Pela primeira vez na história, tropas dos Estados Unidos participaram de um exercício militar na nossa parte da floresta amazônica, em conjunto com tropas de países como Peru e Colômbia, e observadores de outras nações. Definido nos meios de comunicação do Exército e do Ministério da Defesa como um exercício logístico de preparação para situações de crise humanitária, é um elemento esclarecedor do papel do Brasil, hoje, numa guerra em nossas fronteiras.
À época a situação na Venezuela era outra, assim como no Brasil. Aqui, ainda sob o governo Temer, o Estado brasileiro passara a empreender uma série de medidas diplomáticas visando o isolamento cada vez mais profundo do país vizinho, como foi com sua suspensão do Mercosul. Dando um salto temporal, a eleição de Jair Bolsonaro e a escolha para o Ministério das Relações Exteriores do integrante do que se chamou “ala ideológica” representou uma escalada de tensões na região. O grupo, cujas principais figuras talvez sejam Eduardo Bolsonaro e o próprio chanceler Ernesto Araújo, pressiona cada vez mais o governo brasileiro para usar a força contra a Venezuela. Por hora estão sendo barrados por ação de um segundo núcleo, este composto por boa parte dos generais da ativa.
No texto já citado apontei, em linhas gerais e bastante simplificadas, três dos modus operandi dos EUA para a mudança de regime nos países alvo: 1. financiamento da oposição interna e/ou estímulo a manifestações violentas; 2. organização de uma coalizão de países vizinhos de agressiva contra o país alvo e dispostos a empreender uma ofensiva econômica, diplomática e, em casos extremos, militar; e 3. agressão direta contra o país alvo. Três caminhos não excludentes e, em muitos casos, mesclado. Na Venezuela não seria diferente. Desde algum tempo está em curso a organização da coalizão latino-americana, formalizada com a criação do Grupo de Lima.
Algumas análises do teatro sul-americano têm tomado um ponto de partida viciado: buscam calcular, através do poderio militar dos países da região, quem “ganharia” uma guerra em nosso continente. Assim acabam por ponderar sobre a capacidade técnica brasileira versus a venezuelana ou colombiana versus venezuelana, como se o futuro apontasse para um conflito entre dois Estados. Se assim o fosse, basta dizer que nenhum país ao sul dos EUA possui capacidade técnica equiparável à venezuelana. Não me demoro aqui; basta dizer que não acontecerá uma guerra do Brasil contra a Venezuela e, portanto, análises desse tipo estão comprometidas em seu ponto de partida. O que se projeta é a agressão de uma coalizão versus Venezuela e é dentro dessa coalizão que o Brasil já vem cumprindo o seu papel, que não é o de agressor principal.
Mesmo essa coalizão guarda uma particularidade: os países sul-americanos que já funcionam como “tropa de choque” diplomática e econômica, mesmo reunidos, não são militarmente equiparáveis ao Estado venezuelano (tendo em mente que mesmo esse “cálculo de equivalência’’ é problemático, como dito). Sendo assim, qualquer incursão militar contra a Venezuela precisa contar com algum nível de participação ativa dos Estados Unidos para ter alguma chance de sucesso e esse é um ponto de tensão na região. Os países sul-americanos estão temerosos pela sua própria incapacidade ao passo que os EUA cada vez mais pressionam pelo uso da força, tensionando o início de uma guerra.
Desde cerca de dois anos o Brasil cumpre de maneira planejada a administração da situação dos venezuelanos que deixam o país pela deterioração nas condições de vida. A Operação Acolhida, em Roraima, e a realocação dos civis venezuelanos pelo território nacional são exemplos desse papel (que vem sendo cumprido com sucesso). Os ensaios do Amazonlog (2017), realizado na tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e a Colômbia (cidade de Tabatinga) foi ao mesmo tempo uma demonstração e uma preparação para que as Forças Armadas brasileiras, principalmente o Exército, pudessem lidar com uma crise humanitária de grandes proporções. Ora, qual cenário é causador de uma crise desse tipo?
Eis o motivo pelo qual ao meu ver é viciada a avaliação que tenta “calcular’’ os pormenores de uma guerra entre os dois países. Se levarmos em conta apenas dois fatores: a disparidade técnica e principalmente as condições geográficas da fronteira Brasil-Venezuela, uma guerra de agressão a partir daqui seria um tiro no pé digno de um amadorismo barato e nossos militares não são amadores. Cada uma dessas variáveis, e outras tantas, foram calculadas mais de uma vez e é por isso que no momento o delírio aventureiro do chanceler e sua trupe encontra freio no grupo de generais que tutela o governo Bolsonaro.
O ensaio que o Estado brasileiro vem empreendendo é a garantia da retaguarda do conflito e administração do pandemônio que se seguiria, com massas de refugiados buscando segurança em qualquer lugar que não aquele de onde fogem. Voltemos os olhos para o Oriente Médio convertido numa colcha de retalhos banhada em sangue. Quantos civis iraquianos e afegãos morreram nesses anos de conflito? Quantos outros fugiram de seus países? Qual o impacto dessa massa de desabrigados nos países vizinhos? Roraima, o nosso estado fronteiriço (e os estados vizinhos) tem alguma condição de lidar com milhares ou mesmo milhões de refugiados de guerra? Eu diria que não.
Isso não determina todo o futuro, é claro. A participação brasileira não necessariamente se encerra nesse âmbito. Nada impede, por exemplo, a participação no comando de tropas próprias ou de outros países de outro ponto de partida que não o território brasileiro. Nada impede, também, o uso de território brasileiro para outros fins. O ponto aqui é que o Brasil, sozinho, não será ponta de lança de um agressão ao nosso vizinho. Mas já ultrapassamos a linha da projeção para a adivinhação de cenários, onde prefiro não me aventurar.
Cabe a nós então a pergunta: o que ganha o Brasil com tamanha escalada de tensões? O que temos a ganhar com uma guerra em nossas fronteiras? O grupo dirigente brasileiro é tão irresponsável e de tal forma subordinado a interesses que não os seus que chega realmente a cogitar um conflito que poderia arrastar com ele uma parte da nossa floresta amazônica através de algo como a balcanização da região ou da instalação de uma base militar estrangeira. É criminoso estarem dispostos a ceder vidas brasileiras, recursos nacionais e arriscar a destruição ou perda de partes do nosso território em nome de interesses que não os nossos.
Não veremos um novo Paraguai: a confiança nas próprias forças
“Todos os cidadãos serão soldados quando formos atacados pelo inimigo.’’ Simón Bolívar, Manifesto de Cartagena.
A guerra do Paraguai é até hoje o maior conflito armado no palco de operações sul-americano. Depois da ofensiva da Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) em território paraguaio é impossível contabilizar a totalidade de civis mortos e tornados inválidos, mas estima-se que ao final da guerra 70% da população masculina do país tenha morrido. A nós interessa no momento explorar a memória do episódio e como os Estados da região lidam e manobram com ela, mais precisamente o Brasil e uma personagem não envolvida na guerra, a Venezuela.
Essa guerra configurou peça central na construção da ideia de Pátria do Estado nacional brasileiro e é constantemente rememorada como feito heróico e consolidador da nossa nacionalidade, como prova de nosso protagonismo no continente e expertise brasileira em confronto. A historiografia ligada ao Estado brasileiro e suas Forças Armadas tratou de transformá-la em um dos mitos fundadores de nossa identidade e, especialmente, da identidade do nosso Exército. O que importa aqui é ressaltar o papel que reivindicamos para nós enquanto potência regional: o de um agressor em potencial, em nome de sabe-se lá o que. Isso não foi ignorado pelos demais países sul-americanos. O nosso desenvolvimento deu-se de costas para o continente e muitas vezes às custas deste.
De que nos interessa saber disso? A guerra do Paraguai foi um episódio constantemente rememorado pelo ex-presidente Hugo Chávez como exemplo da disposição política e capacidade técnica do Estado brasileiro em sufocar um país vizinho. Os dirigentes venezuelanos não estão alheios às considerações sobre a questão militar e de defesa nacional e sempre mantiveram os olhos voltados para esse aspecto, como não poderia ser diferente.
Hoje, passados exatamente 20 anos da primeira eleição de Chávez, o debate acerca da defesa nacional e a elaboração de uma doutrina militar anti-imperialista já não é mais um projeto. Existe um extenso acúmulo teórico que encontra raízes nas guerras de independência da América espanhola, nas elaborações de militares venezuelanos pré-bolivarianismo e nas experiências para lá das próprias fronteiras, especialmente nos casos da China, do Vietnã e de Cuba. As formulações de Mao Tsé-Tung ocupam espaço central nas academias militares venezuelanas, uma vez que o líder chinês foi um dos maiores estrategistas e teóricos militares do século passado e elaborou um pensamento que reúne em si princípios comuns com qualquer tentativa de ruptura radical em países subdesenvolvidos (ou, como eram chamados à época, terceiro-mundistas). O próprio Chávez foi um dedicado leitor de Mao e adepto da doutrina de guerra popular do líder comunista asiático.
Porém, tão importante quanto uma correta elaboração e compreensão teórica do fenômeno é a sua aplicação prática. Precisamos entender a fundo como, em termos práticos, está organizada a Venezuela para a defesa nacional.
A Força Armada Nacional Bolivariana (FANB) é integrada por cinco componentes: a Armada Nacional, a Aviação Militar, o Exército Nacional, a Guarda Nacional e a Milícia Nacional Bolivariana (que funciona como um agrupamento de reserva). Ao longo do governo Chávez, as forças passaram por um grande processo de mudança para além dos esforços políticos-doutrinários. Por ora, não olharemos aos termos técnicos. No que toca ao equipamento, a Venezuela está muito bem armada. Melhor que o Brasil, aliás. O Estado venezuelano tratou de reequipar e modernizar suas Forças Armadas, indo desde a aquisição de milhares de fuzis de assalto Kalashnikov modelo AK-103 para substituir os FAL belgas que armavam as forças desde 1950 [4] até a compra de jatos Su-30 russos, colocando o país em posse dos melhores caças da região [5].
Voltemos os olhos para o quinto componente da FANB, seu agrupamento de reserva, a Milícia Nacional Bolivariana.
Em dezembro de 2018, durante um evento marcando os 188 anos da morte de Bolívar, o presidente Maduro falou aos membros da Milícia Nacional Bolivariana sobre a ameaça de invasão e o papel dos milicianos, que segundo ele já são 1,6 milhões, nesse cenário. O tom do discurso destacou a importância da MNB para a defesa do país nos tempos que se aproximam e rememorou a liderança de Chávez: “Foi uma tarefa que nos deixou o comandante Chávez, levar a milícia a todo o território nacional (…) Temos que preparar um plano perfeito para que os milicianos tenham sua preparação permanente e saibam como cumprir sua missão no momento em que sejam chamados ao combate’’ [6]. Mas, afinal, o que isso significa na prática?
Do ponto de vista defensivo, o território venezuelano está dividido em setores capacitados para atuarem de forma auto-suficiente se necessário. Trata-se de um conjunto de medidas políticas, administrativas, jurídicas, econômicas e militares que garantem a preparação, desde os tempos de paz, de todos os cidadãos para lidar com a defesa de sua região em caso de guerra. Isso significa dizer que o país está previamente dividido e subdividido em zonas de defesa. Para cada uma das zonas maiores, existem centenas e milhares de unidades menores, preparadas para funcionar como um “pequeno vespeiro” em caso de agressão. Serão regiões que a própria população tratará de defender em armas, sendo essa a medula da noção de guerra popular, já mencionada como orientadora do pensamento militar bolivariano.
O caráter desse tipo de preparação implica que uma guerra de ocupação seria por demais custosa ao inimigo. Falando dos Estados Unidos, as duas principais guerras em que embarcaram nos últimos anos, Iraque e Afeganistão (a Síria é um caso a parte), pôde-se observar um certo padrão de sucessos e falhas. As forças estadunidenses conseguiram com sucesso sobrepor as forças regulares iraquianas e afegãs graças ao seu incontestável poderio (aéreo, principalmente). Porém, uma vez derrotadas as forças regulares, a ocupação do território encontrou absurda resistência por parte da população civil, que organizou-se em grupos armados para acossar permanentemente as forças estadunidenses. Em solo, os EUA perderam e perdem muitos combatentes para os grupos iraquianos e afegãos que se insurgiram contra a ocupação em métodos de combate irregular, principalmente a guerrilha. Por mais preparadas que sejam as forças ocupantes em métodos de contra-insurgência, existem fatores em que um soldado em território estrangeiro jamais se igualará a um cidadão que vê sua terra ocupada, como o conhecimento do terreno e o ímpeto da luta.
E por quê importa a reação da população ao poder ocupante? A ocupação de um terreno possui objetivos que remontam aos milênios de atividade guerreira dos seres humanos: o saque, o roubo. No caso contemporâneo, principalmente petróleo. A extração, refino (nos casos onde é feito no próprio país), transporte até os portos e embarque nos navios necessitam de algo que está diretamente ligada à população local: estabilidade, mesmo que mínima. A logística da situação exige trabalhadores, boas estradas, meios de transporte e uma segurança mínima para deslocamento. Nada disso está garantido quando grupos estão dispostos a impedir permanentemente a ocupação inimiga, seja com ataques diretos ou sabotagem de ferrovias, estradas, veículos de transporte, etc.
E qual a especificidade do caso venezuelano que multiplica o fator popular na balança estratégica? É que a população está organizada e preparada em armas desde antes de qualquer agressão. Se no Oriente Médio ocupado há tanta resistência, que dirá da Venezuela onde há anos a população se prepara para qualquer cenário?
Mais uma vez deve-se muito ao gênio estratégico de Chávez.
Chegamos então, finalmente, à Milícia Nacional Bolivariana. Agrupamento de reserva, funciona como força auxiliar, com funções integradas às demais forças ou ainda independentes. Por exemplo: os efetivos do Exército possuem um caráter de mobilidade. Embora possuam seus postos, são preparados para se deslocarem com efetividade quando necessário. Se em determinado local do país um agrupamento for exterminado ou feito prisioneiro, o Estado precisa estar preparado para realocar as suas forças. O caráter dos agrupamentos de milícia é outro. São civis treinados militarmente, não soldados profissionais. Possuem trabalhos aos quais precisam comparecer e não estão dotados de equipamento e logística que permitam mover-se rapidamente. Esse caráter local faz com a sua função defensiva também seja local.
São grupos pequenos e destinados a funções concentradas, como a defesa de uma fábrica ou estrada de importância estratégica ou ainda, se necessário for, a destruição desta mesma fábrica ou estrada para evitar que caiam em mãos inimigas. Esse caráter concentrado equivale à noção de “vespeiro” onde a população em armas é a responsável por importunar as forças inimigas onde quer que elas estejam. Assim, mesmo que as forças armadas do país sejam derrotadas, o processo de ocupação inimiga será por demais custoso.
A criação das milícias remonta a 2005, fruto da cada vez mais profunda união cívico-militar e da noção de que as Forças Armadas, sozinhas, possuem recursos limitados diante do poderio militar estadunidense. Um extenso trabalho de agitação e propaganda foi feito entre a população para criar o convencimento da necessidade de participação no setor defensivo, ao passo que também foi feito um trabalho de convencimento dos oficiais da urgência de uma quinta força, preparada nos moldes da guerra não-convencional, irregular.
Estão entre as atribuições da MNB alistar, equipar e treinar seus combatentes, além de atribuições administrativas em suas regiões. Tudo como preparação para uma situação, cada vez menos hipotética, onde seja preciso atuar de forma independente. As MNB subdvidem-se em Milícias Territoriais e Corpos Combatentes. Em linhas gerais, as primeiras dizem respeito àqueles maiores de 18 anos e moradores de determinada comunidade/bairro que organizam-se a partir desse local de moradia, tratando de preparar-se para a defesa daquela região. Já os Corpos Combatentes são unidades de trabalhadores de determinada instituição (pública ou privada) que passam a receber treinamento para a defesa do posto de trabalho, dada a importância estratégica da economia do país em caso de guerra.
O próprio Chávez alertou, certa vez: ‘’Não sou Allende nem esta Revolução está desarmada. Esta é uma Revolução pacífica, mas não desarmada, tem aviões, tanques de guerra e outras coisas mais. Por isso, que nossos inimigos não se equivoquem…’’ [7]. Com certeza ele tinha na memória as palavras de Maquiavel, séculos atrás: “sem armas próprias, nenhum principado é seguro; antes, é todo dependente da fortuna, não havendo virtù que o defenda fielmente na adversidade. E foi sempre opinião e sentença dos homens sábios: ‘Nada é tão incerto e instável quanto a fama de uma potência que não se funda na própria força’.” [8]
À guisa de conclusão: um Vietnã latinoamericano
“escucha yanqui lo que te voy a decir / tu a mi pais no lo vas a intervenir / vente pa ca que lo que te viene es palo / seremos tu Vietnam latinoamericano”.
Ao contrário do que podemos pensar, uma guerra não “estoura”, não surge de surpresa. Política que é, a guerra possui objetivos racionais e calculados. Nas palavras do próprio Clausewitz: “é preciso recordar que nenhum dos dois antagonistas é para o outro uma pessoa abstrata (…) a guerra nunca deflagra subitamente: sua extensão não é obra de um instante.” [9]. Contudo, um alerta: sendo racional e calculada, ela não é controlada em todos os seus pormenores. Uma vez iniciada, a guerra se converte numa espiral de variáveis que mais se assemelha a um furacão, e aos protagonistas cabe dele sair vitorioso. Quanto às variáveis, tomemos uma lição literária: “conte com as circunstâncias, que também são fadas. Conte mais com o imprevisto. O imprevisto é uma espécie de deus avulso ao qual é preciso dar algumas ações de graças; pode ter voto decisivo na assembleia dos acontecimentos’’ [10]. É a esse furacão que não podemos permitir que nos arrastem.
As considerações acerca da capacidade defensiva venezuelana nos fazem acreditar que ela se basta diante dos vizinhos ariscos e se os Estados Unidos almejam algum grau de sucesso, dependem do nível da própria participação no conflito. Ainda assim, o que reina é a incerteza do que os analistas chamam de “cenário Vietnã”. Se o pequeno país asiático, longe das fronteiras e da opinião pública por um bom tempo, conseguiu humilhar os estadunidenses defendendo-se com meios precários e organizando toda uma população para a guerra, o que será capaz de fazer um país e um povo previamente preparados e equipados? Isso já levanta outras questões. Os Estados Unidos nunca se envolveram tão perto de suas fronteiras em uma guerra com a magnitude da que se aproxima. Intervir em ilhas caribenhas e pequenos países centro-americanos não é, nem de longe, algo parecido.
Há ainda considerações a serem feitas acerca dos papéis da Colômbia (essa, sim, ponta de lança do imperialismo no continente) da Rússia, da China e de Cuba. O grande Urso tem cumprido um papel chave na manutenção da revolução bolivariana através de apoio diplomático, econômico e militar (principalmente de inteligência). O Dragão asiático, por sua vez, cumpre papel mais modesto. Algo comum, porém, é que nenhum dos dois parece disposto a envolver-se em um conflito tão longe das próprias fronteiras, ainda mais no continente americano. Mas não é hora de detalharmos tudo isso. O texto já se estende para além do aceitável e o leitor merece um pouco de descanso.
A nós, como analistas, fica o lembrete: “não será lutando da maneira que fizeram os que ganharam a última guerra que a próxima será vencida, mas também é certo que apenas estudando as formas como se lutou historicamente é que podemos conhecer as novas alternativas tecnológicas usadas como meios bélicos e, fundamentalmente, compreender o significado político das numerosas guerras atuais” [11]. Se o imperialismo é um tigre de papel, precisamos de uma tesoura afiada. Caso contrário, “não estar preparado para o momento em que as trombetas de Marte anunciarem a chegada da hora pode significar uma irresponsabilidade histórica imperdoável e a tardia constatação de não haver estado à altura dos acontecimentos” [12].
Notas: