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A ‘interferência russa nas eleições dos EUA’ são as ‘armas de destruição em massa’ desta geração

A notícia de que Robert Mueller está voltando para casa sem novas acusações sobre o “Russiagate” é um golpe mortal para a reputação da mídia americana.
por Matt Taibbi | Zero Hedge – Tradução de Gabriel Deslandes

Ninguém quer ouvir mais sobre esse assunto, mas a notícia de que o procurador especial Robert Mueller está voltando para casa sem promover novas acusações é um golpe mortal para a reputação da mídia americana. Como há muito tem sido motivo de rumores, a investigação independente do ex-chefe do FBI resultará em múltiplos indiciamentos e condenações, mas nenhuma acusação de conspiração capaz de “destruir a Presidência dos EUA”, ou qualquer coisa que atendesse à definição de “conluio” com a Rússia.

Com a ressalva de que mesmo essa notícia poderia, de alguma forma, ser falha, o detalhe-chave nas muitas histórias envolvendo o fim da investigação de Mueller foi mais bem expresso pelo New York Times: “Um alto funcionário do Departamento de Justiça disse que Mueller não recomendaria novas acusações.”

O procurador-geral William Barr enviou uma carta ao Congresso resumindo as conclusões de Mueller. O relatório Mueller afirma: “A investigação não identificou que os membros da campanha Trump conspiraram ou coordenaram com o governo russo em suas atividades de interferência eleitoral”.

No fim de semana seguinte, o Times tentou amenizar o impacto emocional de milhões de americanos preparados nesses anos para depositarem suas esperanças em Mueller visando a derrubada da presidência de Trump. Já havia, na maior parte da cobertura da imprensa, pouca pretensão de que a investigação de Mueller fosse uma missão neutra, já que apostava-se em uma alegoria religiosa, com Mueller escalado como um herói enviado para matar o monstro.

O promotor especial literalmente se tornou uma figura religiosa durante os últimos anos, com velas litúrgicas sendo vendidas com a sua imagem e membros do elenco do Saturday Night Live cantando “All I Want for Christmas is You” para ele, com os versos: “Mueller, por favor, sobreviva, pois a única opção é um golpe.”

A matéria do Times tentou preservar a reputação santa do Papai Noel Mueller, observando que a reação do procurador-geral de Trump, William Barr, foi um “endosso” da excelência do trabalho de Mueller:

“Em um aparente endosso de uma investigação que Trump atacou implacavelmente como uma ‘caça às bruxas’, Barr disse que os funcionários do Departamento de Justiça nunca tiveram que intervir para impedir Mueller de dar um passo inapropriado ou injustificado.”

Mueller, em outras palavras, nunca saiu dos limites da descrição de seu trabalho. Mas o mesmo poderia ser dito a respeito da mídia? Para aqueles ansiosos em manter a esperança viva, o Times publicou seu habitual gráfico de “contatos” entre Trump e a Rússia, convidando os leitores a continuarem fazendo conexões. Porém, em um artigo separado de Peter Baker, o jornal notou que as novidades de Mueller tiveram consequências terríveis para a imprensa:

“Para o presidente Trump, será algo a ser calculado, com certeza, mas também será para Robert S. Mueller III, para a investigação do Conselho Especial, para o Congresso, para os democratas, para os republicanos, para a mídia e, sim, para o sistema político como um todo…”

Essa é uma página do Times condenada à admissão de culpa. Apesar do gráfico ligue-os-pontos em sua outra matéria e apesar do editorial surpreendente e cheio de emoção, o jornal também sugeriu: “Não precisamos ler o relatório de Mueller” porque sabemos que Trump é culpado. Baker, ao menos, começou o trabalho de preparar os leitores do Times para uma pergunta difícil: “Será que os jornalistas não ligaram muitos pontos que realmente não acrescentam em nada?”.

O jornal estava sinalizando que entendia que agora haveria dúvidas sobre se os meios de comunicação, como ele próprio, cometeram erros galácticos ao apostarem pesadamente em uma abordagem politizada nova, tentando ser fiéis à ideia de “julgamento histórico”, além do trabalho bastante difícil de somente dizer a verdade. Pior, em uma ironia brutal que todos devem perceber em breve, a imprensa entregou agora a Trump o assunto-mãe da campanha eleitoral em 2020.

Nada do que Trump será acusado de agora em diante pela imprensa será digno de crédito para grande parte da população, um grupo que (talvez graças a toda essa história) é agora maior do que sua antes. Como Baker observa, 50,3% dos entrevistados em uma pesquisa realizada neste mês disseram concordar que a investigação de Mueller contra Trump é uma “caça às bruxas”.

As reportagens estão saindo há algum tempo, sugerindo que o relatório final de Mueller provavelmente deixaria o público “desapontado”, como se o fato de um presidente não ser espião estrangeiro pudesse, de alguma forma, ser uma má notícia.

O uso explícito de tal linguagem tem sido, ao longo do tempo, um indiciamento. Imagine o quão surdo você precisa ser para não perceber quando suas notícias não correspondem às expectativas do público. Desconhecer isso é incompreensível, o equivalente jornalístico de andar sem calças na rua.

Haverá pessoas protestando: “o relatório Mueller não prova nada! E quanto aos 37 indiciamentos? As condenações? As revelações da Trump Rower? As mentiras! O encontro com Donald Trump Jr.? As questões financeiras! Há uma investigação do grande júri em andamento e possíveis acusações secretas, e a Câmara ainda investigará, e…”

Pare. Simplesmente pare. Qualquer jornalista que vá por aí só está piorando. Durante anos, todos os sábios e políticos democratas em Washington fizeram propaganda de todas as novas manchetes contra a Rússia como se fossem a invasão ao Watergate. Até mesmo a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, disse que o impeachment está fora de cogitação e, a menos que algo “tão convincente e esmagador e bipartidário” contra Trump seja descoberto, agora valeria a pena para os democratas lidarem com os problemas políticos atuais de Trump.

A maior coisa que esse caso descobriu até o momento é que Donald Trump pagava uma atriz pornô, algo muito distante do que supostamente era toda essa história no começo, e é vergonhoso que qualquer repórter tente fingir que isso não é verdade.

A história desde o início falava de espionagem: uma relação secreta entre a campanha Trump e os fantasmas russos que o ajudaram a vencer a eleição. A narrativa da traição não foi relatada como metáfora. Não se tratava de “Trump gostar tanto dos russos que ele poderia muito bem ser um espião deles”. Era espionagem literal, traição e manipulação eleitoral – crimes tão severos que John Schindler, ex-funcionário da NSA, disse a jornalistas que Trump iria “morrer na cadeia”.

Nos primeiros meses do escândalo, o New York Times afirmou que a campanha de Trump havia “contatado repetidamente” a inteligência russa; o Wall Street Journal nos disse que as agências de espionagem estavam escondendo informações do novo presidente por medo de que ele estivesse comprometido; notícias vazadas informaram que chefes de espionagem americanos até disseram a outros países, como Israel, para que não compartilhassem suas informações com os EUA, pois os russos teriam “poder de pressão” sobre Trump.

A CNN nos disse que as autoridades de Trump estavam em “contato constante” com “russos conhecidos pela inteligência dos EUA”, e o ex-diretor da CIA, que ajudou a iniciar a investigação que levou ao inquérito de Mueller, afirmou que o presidente era culpado de “altos crimes e contravenções” e que cometeu atos “não menores que traição”.

Hillary Clinton insistiu que os russos “não poderiam saber como instrumentalizar” os anúncios da campanha eleitoral, a menos que fossem “guiados” por norte-americanos. Perguntada se ela se referia a Trump, ela respondeu: “É muito difícil não ser isto”. Harry Reid também disse que “não tinha dúvidas” de que a campanha Trump estava “em acordo” com os russos para ajudá-la com os vazamentos.

Nada disso foi desdito. Para ser claro, se Trump estivesse sendo chantageado por agências russas como a FSB ou o GRU, se ele tivesse qualquer tipo de relacionamento com a inteligência russa, isso alcançaria o nível “esmagador e bipartidário”, e Nancy Pelosi estaria agora torpedeando um impeachment.

Nunca houve realmente uma zona cinzenta aqui. Ou Trump é um agente estrangeiro comprometido, ou ele não é. Se ele não for, as agências de notícias mais uma vez engoliram uma campanha massiva de desinformação, sendo esse erro muitas vezes mais estúpido do que qualquer outro no passado recente, incluindo as “armas de destruição em massa iraquianas”. Repórteres honestos como Terry Moran, da ABC, compreendem: Mueller voltando de mãos vazias significa a necessidade de uma “reavaliação para a mídia”. Claro, não haverá tal reavaliação (nunca há). Mas deveria haver. Foram quebradas todas as regras escritas e não escritas em busca do Russiagate, começando pela proibição de reportar coisas que não podemos confirmar.

O Russiagate estreou como um fenômeno midiático em meados do verão de 2016. As raízes reais da história – ou seja, quando a investigação multinacional começou – remontam muito mais ao ano anterior. Estranhamente, a origem desse conto ainda não foi definida, e o público democrata também não parece estar muito interessado nela.

Em junho e julho de 2016, informações sobre os laços entre o Kremlin e Trump foram compilados em um dossiê pelo ex-espião britânico Christopher Steele, financiado pelo Comitê Nacional do Partido Democrata (DNC) por meio do escritório de advocacia Perkins Coie (que, por sua vez, contratou a empresa de pesquisa estratégica Fusion GPS). Esse dossiê de Steele ocupa o mesmo papel no Russiagate que as fábulas mal contadas por Ahmed Chalabi sobre as “armas de destruição em massa de Saddam”. Mais uma vez, uma narrativa foi turbinada quando funcionários de Estado puxaram a imprensa pelo nariz para um pântano de afirmações privadas não confirmadas.

Algumas das primeiras matérias, como a de 4 de julho de 2016, de Franklin Foer, no Slate, intitulada “Fantoche de Putin”, delinearam os futuros assuntos relacionados ao dossiê de Steele de forma “circunstancial”. Só que o dossiê original, embora tenha influenciado várias notícias pré-eleitorais sobre o conluio Trump-Rússia (especialmente uma de Michael Isiskoff no Yahoo!, que depois seria usada em um pedido de fiança baseado na Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira), não foi publicado por um bom tempo. Embora tenha sido comprado por, pelo menos, nove agências de notícias durante o verão e outono de 2016, ninguém abocanhou o dossiê, pelo bom motivo de que tais grupos noticiosos não puderam verificar suas “revelações”.

As afirmações de Steele seriam explosivas, caso verdadeiras. O ex-espião informou ao assessor de Trump, Carter Page, que ele receberia uma nova fatia da gigante petrolífera Rosneft se pudesse, em troca, ajudar a aliviar as sanções contra a Rússia. Ele também afirmou que o advogado de Trump, Michael Cohen, foi a Praga para “discussões secretas com representantes do Kremlin e hackers/operadores associados”. A afirmação mais famosa escrita por ele é a de que o Kremlin tinha um kompromat (“material comprometedor”, em russo) de Trump “perdendo a linha” em uma cama anteriormente usada por Barack e Michelle Obama ao “contratar prostitutas para performarem um show de golden shower”.

Essa era uma história boa demais para não ser divulgada. Por qualquer meio necessário, ela tinha que sair. O primeiro vazamento dela foi feito por David Corn, da Mother Jones, em 31 de outubro de 2016: “Um espião veterano deu informações ao FBI alegando que há uma operação russa para dominar Donald Trump”. A matéria não reportava xixi, Praga ou Page, mas dizia que a inteligência russa tinha material que poderia ser usado para “chantagear” Trump. A publicação era tecnicamente legítima, já que Corn não estava publicando as acusações – apenas que o FBI tinha se apossado delas.

Um maior pretexto seria necessário para obter os outros detalhes. Isso aconteceu logo após a eleição, quando quatro funcionários da inteligência apresentaram cópias do dossiê ao presidente eleito Trump e ao presidente Barack Obama. A partir de seus próprios memorandos, sabemos que o diretor do FBI, James Comey, demonstrando ostensivamente preocupação com o bem-estar de Trump, disse ao presidente eleito que estava somente avisando-o sobre o que existia ali como possível material de chantagem:

“Eu não estava dizendo que [o dossiê Steele] era verdadeiro. Eu só queria que ele soubesse tanto que ele havia sido acusado como que os relatórios já se encontravam em muitas mãos. Eu disse que os meios de comunicação, como a CNN, o tinham e estavam procurando um gancho para noticiá-lo. Disse que era importante não dar a eles a desculpa para escreverem que o FBI tinha o material [redigido] ou que estávamos o mantendo em sigilo.”

A generosa advertência de Comey para Trump sobre não fornecer um “gancho noticioso”, juntamente com uma promessa de manter tudo “em sigilo”, ocorreu em 6 de janeiro de 2017. Em quatro dias, basicamente toda a mídia de Washington sabia tudo sobre essa reunião secreta e tinha o gancho que eles precisavam para que o caso fosse a público. Ninguém na imprensa mainstream achou estranho ou justificado o comentário de Comey. Até mesmo Donald Trump foi provavelmente inteligente o suficiente para perceber quando, de todas as mídias, foi a CNN quem primeiro divulgou a história de “Documentos classificados apresentados na semana passada a Trump”, em 10 de janeiro.

Ao mesmo tempo, o Buzzfeed tomou a decisão histórica de publicar todo o dossiê de Steele, trazendo o caso do xixi para as nossas vidas. Esse movimento deu origem ao fenômeno Russiagate como um fenômeno interminável, minuto a minuto na cobertura noticiosa americana.

Comey estava certo. Não poderíamos ter reportado essa história sem um “gancho”. Assim sendo, as matérias sobre o dossiê de Steele tecnicamente não tratavam das acusações em si, mas sim do caminho percorrido por essas acusações, de um conjunto de mãos oficiais para outro. Entregar o dossiê para Trump criou um pretexto perfeito.

Esse truque já foi usado antes, tanto em Washington quanto em Wall Street, para divulgar estudos privados não confirmados. Um pequeno investidor pode contratar uma empresa de consultoria para preparar um dossiê a respeito de uma empresa contra a qual ele apostou na bolsa. Quando o dossiê é concluído, o investidor tenta fazer com que a Comissão de Títulos e Câmbio americana ou o FBI se apossem dele. Se o fizerem, vaza-se a informação de que a empresa está “sob investigação”, as ações dela despencam, e todos lucram.

Esse mesmo truque é encontrado na política. Uma trajetória semelhante gerou manchetes negativas no escândalo envolvendo o senador democrata de Nova Jersey, Bob Menendez, que estaria sob investigação do FBI por crimes sexuais com menores de idade (embora alguns tenham ficado céticos sobre o caso). A história inicial não resistiu, mas levou a outras investigações.

O mesmo acontece com o chamado “projeto Arkansas”, no qual milhões de dólares de pesquisas privadas amigáveis ​​aos republicanos produziram bastante barulho sobre o escândalo de Whitewater a fim de criar anos de manchetes negativas contra o casal Clinton. Ataques pessoais foram outro exemplo. Pesquisas de oposição privadas não são inerentemente ruins. Na verdade, elas levaram a alguns furos jornalísticos incríveis, incluindo a fraude da Enron. Contudo, os repórteres geralmente sabem ser céticos em relação a informações privadas e sabem descobrir os reais interesses dos patrocinadores em cada caso.

A sequência de eventos da segunda semana de janeiro de 2017 precisará ser reexaminada com grande intensidade. Sabemos agora, de seu próprio testemunho, que o ex-diretor de Inteligência Nacional, James Clapper, exerceu algum tipo de papel ajudando a CNN a fazer sua reportagem, presumivelmente confirmando parte da história, talvez por meio de algum intermediário ou dois (há alguma controvérsia sobre quem exatamente foi contatado, e quando).

Por que as autoridades reais de segurança resolveriam esse grave problema por meio da mídia? Por que as agências de investigação mais poderosas do mundo agiriam como se estivessem tentando mover uma ação, empurrando para a mídia um relatório privado e não verificado que até mesmo o Buzzfeed podia ver que continha problemas factuais? Não fazia sentido na época e faz menos ainda agora.

Em janeiro de 2017, a pilha de acusações de Steele se tornou pública, lida por milhões. “O dossiê não é apenas não confirmado”, admitiu Buzzfeed. “Ele também inclui alguns erros claros”. A decisão do Buzzfeed explodiu os padrões jornalísticos tradicionais contra a publicação consciente de material cuja veracidade é duvidosa. Embora alguns especialistas em ética jornalística se perguntassem a respeito da divulgação, isso parecia não incomodar a base de jornalistas. O editor-chefe do Buzzfeed, Ben Smith, ainda hoje se orgulha de sua decisão, e acredito que isso acontece porque muitos repórteres acreditavam que o dossiê era verídico.

Quando li o dossiê, fiquei em choque. Pensei que ele seria lido como uma ficção de suspense de quarta categoria (eu deveria saber: eu escrevo ficção de suspense de quarta categoria). Além disso, parecia editado tanto para consumo público quanto para agradar aos clientes de Steele no Comitê Nacional Democrata. Steele escreveu que os russos tinham um arquivo com “informações comprometedoras” sobre Hillary Clinton e que supostamente só faltavam “detalhes/evidências de um comportamento heterodoxo ou embaraçoso” ou “conduta embaraçosa”.

Deveríamos acreditar que os russos, ao longo de décadas de escavação, tinham um arquivo de kompromat vazio em Hillary Clinton, para não falarmos de manchetes de tabloides sobre Bill Clinton? Esse ponto se baseou mais de uma vez em reportagens, como se isso fosse enfatizado para o público-leitor.

Havia outras informações curiosas, incluindo um pouco sobre os russos terem “informantes” dentro do Comitê Nacional Democrata, além de alguns detalhes linguísticos que me fizeram pensar na nacionalidade do autor do dossiê. Ainda assim, quem sabe? Pode ser verdadeiro, mas mesmo a revisão mais superficial mostrava que o dossiê tinha problemas e precisaria de muita confirmação. Isso tornou mais surpreendente que o democrata do Comitê de Inteligência da Câmara, Adam Schiff, tenha realizado audiências em 20 de março de 2017 em que lia alegremente os detalhes do dossiê de Steele como se fossem fatos. Na declaração de abertura de Schiff:

“De acordo com Christopher Steele, ex-oficial da inteligência britânica altamente considerado pela Inteligência dos EUA, fontes russas afirmam que Page também teve uma reunião secreta com Igor Sechin (SEH-CHIN), CEO da gigante russa Rosneft… Para Page, são oferecidos honorários por Sechin em um negócio envolvendo uma participação de 19% da empresa.”

Fiquei atordoado assistindo isso. Em geral, entende-se que os membros do Congresso, como os repórteres, fazem um esforço para examinar, ao menos, suas observações preparadas antes de divulgá-las a público. Mas cá estava Schiff, dizendo ao mundo que o assessor de Trump, Carter Page, havia acertado receber pagamentos enormes em uma participação de 19% na Rosneft – uma empresa com uma capitalização de mercado de US$ 63 bilhões – durante uma reunião secreta com um oligarca russo, que também foi acusado de ser “um agente da KGB e amigo íntimo de Putin”.

(Schiff queria dizer “agente da FSB”. A incapacidade dos Russiagaters de lembrar que a Rússia não é a União Soviética se torna cada vez mais enlouquecedora no decorrer do tempo. Donna Brazile ainda não excluiu seu tweet sobre como “Os comunistas estão agora ditando os termos do debate”.)

O discurso de Schiff levantou questões. Não precisamos mais nos preocupar em fazer as acusações corretas se o assunto estiver vinculado ao Russiagate? E se Page não tivesse feito nada disso? Até hoje, ele não teria sido acusado de nada. Um membro do Congresso não deveria se preocupar com isso?

Algumas semanas depois dessa audiência, Steele concedeu um depoimento em uma ação britânica movida por uma das empresas russas mencionadas em seu dossiê. Em um documento por escrito, Steele disse que sua informação era “crua” e “precisava ser analisada e investigada/verificada”. Ele também escreveu (ao menos, referindo-se ao memorando nesse caso) que não havia redigido seu dossiê “com a intenção de que fosse republicado para o mundo todo”.

Essa foi em si uma afirmação curiosa, uma vez que Steele teria falado com vários repórteres no outono de 2016, mas essa era sua posição legal. Essa história sobre as declarações de Steele para a corte britânica não chegou a ser noticiada nos EUA, além de alguns trechos em meios conservadores, como The Washington Times. Entrei em contato com o escritório de Schiff para perguntar ao congressista se ele sabia da admissão de Steele de que seu dossiê precisava ser verificado, e se isso mudava sua visão sobre o assunto. A resposta (ênfase minha):

“O dossiê compilado pelo ex-oficial de inteligência britânico Christopher Steele e que vazou publicamente há alguns meses contém informações que podem ser pertinentes à nossa investigação. Essa é a verdade, independentemente de ter sido alguma vez destinado à divulgação pública. Assim, o Comitê espera falar com o Sr. Steele para ajudar a substanciar ou refutar cada uma das alegações contidas no dossiê.”

Schiff não havia falado com Steele antes da audiência e leu as acusações dele sabendo que elas não tinham fundamento. O dossiê Steele foi a Carta Magna do Russiagate, e forneceu o contexto implícito para milhares de notícias, mas nenhum jornalista jamais conseguiu confirmar suas denúncias mais salutares: o plano russo de controlar Trump, a chantagem, o suborno de Sechin, a viagem a Praga, o banho de xixi, etc. Metaforicamente falando, não conseguimos reproduzir em laboratório de forma independente os resultados de Steele. O erro de cálculo corrompeu a narrativa desde o começo.

Durante anos, cada indício de que o dossiê poderia ser verdadeiro se tornou uma manchete, enquanto toda vez que a dúvida era lançada sobre as revelações de Steele, a imprensa ficava quieta. O repórter do Washington Post, Greg Miller, tinha uma equipe procurando evidências de que Cohen estivera em Praga. Os repórteres, disse Miller, “literalmente passaram semanas e meses tentando ir atrás” da história de Cohen. “Enviamos repórteres a todos os hotéis em Praga, por todo o lugar, somente para tentar descobrir se ele esteve por lá”, disse ele, “e não achamos nada”.

Essa foi uma pauta “cara-eu-ganho, coroa-você-perde”. Supõe-se que, se a equipe de Greg Miller encontrasse o nome de Cohen em um livro de registros de hotel, estaria na página 1 do Washington Post. O contrário não seria mencionado no jornal. Ele só revelou essa busca durante um debate divulgado pela C-SPAN a respeito de um novo livro que ele publicou. Apenas The Daily Caller e alguns blogs conservadores repercutiram a história.

Aconteceu o mesmo quando Bob Woodward (repórter que revelou o escândalo do Watergate, em 1972) afirmou: “Eu não encontrei [qualquer espionagem ou conivência]… É claro que procurei por ela, procurei por ela com dificuldade”. O famoso detetive de Watergate – que certa vez disse que sucumbiu ao “pensamento coletivo” no episódio das “armas de destruição em massa do Iraque” e acrescentou: “Eu me culpo enormemente por não ter pressionado mais essa história” – não exerceu muita pressão aqui também. As notícias de que ele tentou e não conseguiu encontrar indícios de um conluio Trump-Rússia não foram levadas em conta. Só vieram à tona quando Woodward estava promovendo seu livro Medo, durante uma discussão com o apresentador conservador Hugh Hewitt.

Quando Michael Cohen deu seu testemunho perante o Congresso e negou sob juramento que alguma vez esteve em Praga, era verdade. Poucos meios de comunicação comerciais se deram ao trabalho de tomar nota das implicações que isso tinha em suas reportagens anteriores. Um homem se apegaria a um acordo mentiroso com o Congresso em plena rede de televisão nacional sobre esse tema? Havia uma matéria na CNN, mas o resto da cobertura se restringiu a veículos conservadores – a National Review, Fox News, The Daily Caller. A reação do Washington Post foi publicar um editorial zombando de “como a mídia conservadora subestima o testemunho de Michael Cohen”.

Talvez o pior de tudo foi o episódio envolvendo o repórter do Yahoo!, Michael Isikoff. Ele já havia reportado uma história estranha: o FBI utilizou um mandado, com base na Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira, para vigiar secretamente Carter Page, o pretenso mentor que teria supostamente intermediado um acordo entre a campanha de Trump com o oligarca Sechin. Em sua aplicação da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira, o FBI incluiu tanto o dossiê não confirmado de Steele quanto a matéria de Isikoff em 23 de setembro de 2016, “Funcionários da inteligência americana investigam os laços entre o conselheiro de Trump e o Kremlin”. A matéria de Isikoff, afirmando que Page havia se encontrado com “altos funcionários russos sancionados”, confiara em Steele como fonte não identificada.

Isso se assemelha à técnica de lavagem cerebral usada no episódio das “armas de destruição em massa do Iraque” da chamada “stove-piping”, ou seja, funcionários do governo usando a imprensa para “confirmar” as informações que os próprios funcionários forneciam aos repórteres. Contudo, não houve virtualmente qualquer veículo de imprensa abordando esse problema além de uma reportagem do Washington Post fazendo piada sobre o assunto – todas as notícias que lançaram alguma dúvida sobre a questão do conluio Trump-Rússia parecem ser alvo no Post de uma “checagem de fatos” instantânea. O Post insistiu que a questão da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira não era séria, entre outras coisas, porque Steele não serviu de “base” para a matéria de Isikoff.

Isikoff talvez fosse o repórter mais familiarizado com Steele. Ele e Corn, do Mother Jones, que também lidou com o ex-espião, escreveram um livro best-seller chamado Roleta Russa, que abarcava as teorias de Steele, incluindo uma ruminação do episódio do “xixi”. No entanto, Isikoff, no final de 2018, de repente, disse acreditar que o dossiê de Steele acabaria sendo “em grande parte, falso”. Mais uma vez, isso só ocorreu durante um podcast, o programa Free Speech Broadcasting, de John Ziegler. Aqui está uma transcrição do trecho relevante:

Isikoff: Quando você realmente entra nos detalhes do dossiê de Steele, as acusações específicas, você sabe, nós não vimos a evidência para sustentá-las. E, de fato, há boas razões para pensar que algumas das alegações mais sensacionais nunca serão provadas e são provavelmente falsas.

Ziegler: Isso é…

Isikoff: Acho que se trata, na melhor das hipóteses, de um registro misto. As coisas podem mudar, Mueller ainda pode produzir evidências que modifiquem esse cálculo. Mas, com base no registro público neste momento, devo dizer que a maioria das acusações específicas não foram confirmadas.

Ziegler: É interessante ouvir você dizer isso, Michael, porque, como tenho certeza de que você sabe, seu livro foi usado para validar a história da gravação do xixi, por falta de um termo melhor.

Isikoff: Sim. Eu acredito que tivemos alguma evidência de um evento que pode ter inspirado a gravação do xixi: a visita que Trump fez com vários personagens que mais tarde apareceram em Moscou, especificamente Emin Agalarov e Rob Goldstone, a essa boate rústica de Las Vegas, onde um dos atos regulares era um esquete chamado “Quente para o professor”, no qual as dançarinas vestidas como universitárias urinavam – ou simulavam urinar – em seu professor. O que me pareceu uma estranha coincidência na melhor das hipóteses. Eu acho, você sabe, que não é implausível que o evento possa ter servido de inspiração

Ziegler: Uma lenda urbana?

Isikoff: …das acusações que apareceram no dossiê de Steele.

Isikoff contou essa história com um ar de riso. Ele fez a transição perfeita para o que ele chamava de ponto “real”, ou seja, “a ironia é que Steele pode estar certo, mas não foi o Kremlin quem tinha material sexual comprometedor sobre Donald Trump e sim o National Enquirer” (jornal sensacionalista de fofocas sobre celebridades).

Recapitulando: o repórter que apresentou Steele ao mundo (sua matéria de 23 de setembro de 2016 foi a primeira a referenciá-lo como fonte), que escreveu um livro visto como “validador” da história do xixi, de repente volta atrás e diz que a coisa toda pode ter sido baseada em um strip-tease em Las Vegas, mas que isso “não importa”.

Outra história desse tipo envolveu um processo judicial em que Webzilla e a holding XBT processaram Steele e o Buzzfeed por mencionarem sua empresa em um dos memorandos. Isso veio à tona durante o depoimento ao tribunal, em que Steele apresentou informações sobre o XBT/Webzilla coletadas a partir de um post de 2009 na página “iReports” da CNN. Perguntado se ele entendia que posts desse tipo vinham de usuários aleatórios e não dos jornalistas da CNN, que checaram os fatos, Steele respondeu: “Eu não sei”.

Esse detalhe cômico foi semelhante à notícia de que o segundo dossiê britânico do Mi6, lançado pouco antes da invasão do Iraque, havia sido parcialmente plagiado de uma tese de um estudante de 13 anos da Universidade Estadual da Califórnia por funcionários de nível médio da assessoria de imprensa de Tony Blair – nem mesmo eram funcionários da inteligência britânica.

Existiam tantas reportagens-perfis de Steele pintando-o como um espião “espantosamente diligente” saído direto de uma novela de John le Carré: Steele era rotineiramente descrito como um protagonista lecarriano, semelhante na aparência e nos modos ao lendário George Smiley. Ele era um homem sombrio cuja aptidão para a leitura era desmentida por seu comportamento “mediano”, “neutro”, “quieto”, sendo “mais discreto que Smiley”. Alguém poderia desconfiar que o novo “Smiley” estava copiando e colando o texto de seu dossiê como um calouro de faculdade? Mas essa história quase não viraria notícia.

Esse tem sido um padrão consistente em todo o Russiagate. Primeiro passo: uma manchete perversa. Passo dois, dias ou semanas depois: surgem notícias de que a história é mais instável do que se acreditava. O terceiro passo (no melhor dos casos) envolve a história sendo retratada e corrigida pelo mesmo veículo de imprensa.

Isso é raro. Mais frequentemente, quando as manchetes do Russiagate se desviam demais, os veículos jornalísticos simplesmente ignoram o novo desenvolvimento, deixando o processo de “retratação” para as mídias conservadoras, que não alcançam um público tão amplo como o inicialmente atingido.

Essa é uma grande falha estrutural de um novo cenário midiático totalmente dividido, em que a mídia republicana cobre a corrupção democrata, e a mídia democrata cobre a corrupção republicana. Se nenhum dos “lados” sentir a necessidade de divulgar seus próprios erros e inconsistências, os erros se acumulam rapidamente.

Essa tem sido a principal diferença jornalística entre o Russiagate e o caso das armas de destruição em massa. Apesar dos protestos pós-invasão de David Remnick de que ele estava completamente correto quanto a “ninguém ter armas de destruição em massa”, a Guerra do Iraque foi lançada contra a objeção dos 6 milhões ou mais de pessoas que protestaram nas ruas. Havia um ceticismo explícito por toda a imprensa em relação às alegações de George W. Bush, com pessoas como Jack Shafer detonando todas as histórias contadas por Judith Miller (jornalista que reivindicava a tese da existência de armas de destruição em massa no Iraque). A maioria dos repórteres são democratas e as pessoas que venderam a história das armas de destruição em massa iraquianas eram em sua maioria republicanos, de modo que havia, pelo menos, algum espaço político para protestos.

O Russiagate aconteceu em um contexto distinto. Se a história se desfizesse, isso beneficiaria politicamente Donald Trump, fato que deixou alguns repórteres enojados com os capítulos seguintes do caso. O Russiagate se tornou sinônimo de “resistência”, o que fez do ceticismo público uma proposição ainda mais complicada.

Logo no início do escândalo, apareci no To The Point, um programa de rádio pública com sede na Califórnia organizado por Warren Olney, com David Corn, do Mother Jones. Eu conhecia David um pouco e tinha sido amigável com ele. Ele já organizou um evento de livro para mim em Washington. No programa, entretanto, o tema da reavaliação dos fatos do Russiagate veio à tona, e Corn disse que aquele não era o momento para os repórteres “catarem lêndeas”:

“Então, os democratas estão se empolgando demais, se entusiasmando demais, afirmando coisas que podem não ser verdadeiras…? Bem, conte-me uma questão política em que isso não acontece. Eu acho que estão olhando para o lado errado do telescópio.”

Eu o escrevi mais tarde e sugeri que, como estávamos na imprensa e tínhamos que evitar “coisas que podem não ser verdade”, nós talvez tivéssemos responsabilidades diferentes das dos democratas. Ele escreveu de volta: “Sinta-se livre para policiar a oposição a Trump, mas, na lista de merdas que precisam ser cobertas pela imprensa nos dias de hoje, isso não está no topo das minhas obrigações pessoais”.

Outros repórteres falaram de uma luta interna. Quando o indiciamento da Internet Research Agency (IRA) por Mueller foi recebido com exultação na mídia, o redator da New Yorker, Adrian Chen, que detonou a história original da IRA, esteve hesitante em avançar com algumas dúvidas sobre o modo como o caso estava sendo contado: “Ou eu poderia ficar em silêncio e permitir que a discussão fosse dominada por aqueles que estão nos bombardeando com a ameaça russa”, ele afirmou, “ou eu poderia arriscar a alimentar Trump e seus aliados”.

Depois de escrever “Confissões de um cético do Russiagate, o pobre Blake Hounsell do Politico levou uma surra nas mídias sociais e acabou denunciando a si mesmo um ano depois: “O que eu quis escrever é que eu não era cético”, afirmou.

Anos atrás, no meio do caso das armas de destruição em massa, o editor público do Times, Daniel Okrent, observou que o padrão do jornal havia mudado de “Não publique primeiro, publique certo” para “Publique primeiro e acerte”. Na época, Okrent escreveu: “a próxima substituição seria óbvia”. Estamos na próxima substituição: publique primeiro e errado. A era do Russiagate tem degradado o jornalismo de tal forma que até mesmo os veículos jornalísticos “respeitáveis” são agora “tão bons” quanto os abertamente políticos – e quase sempre “bons” só por acidente.

Logo no início, fiquei tão impressionado com a quantidade de “granadas” russas sendo devolvidas que comecei a manter uma lista. Está bem acima de 50 histórias agora. Como foi observado por Glenn Greenwald, do The Intercept, e por outros, se os erros fossem aleatórios, você os esperaria em ambas as direções, mas os erros do Russiagate seguem uniformemente da mesma maneira.

Em alguns casos, as histórias são apenas parcialmente erradas, como no caso das famosas “17 agências de inteligência disseram que a Rússia estava por trás do hackeamento” (na verdade, eram quatro: o diretor da Inteligência Nacional “escolheu a dedo” um time do FBI, da CIA e da NSA). Em outros casos, as histórias já são contundentemente falsas desde o começo, resultando em horrendos conjuntos de manchetes:

“Os assistentes da campanha Trump tiveram contatos repetidos com a Inteligência Russa”, publicado pelo Times no Dia dos Namorados de 2017, foi uma importante “bomba” narrativa que parecia arriscada desde o início. A matéria não dizia se o contato era confirmado ou não, se as discussões eram sobre negócios ou política, ou o que os contatos supostamente eram.

Normalmente, um repórter gostaria de saber qual é o negócio antes de publicar uma história acusando pessoas de terem relações com espiões estrangeiros. “Intencional” ou “não intencional” devem fazer uma grande diferença, por exemplo. Logo depois saiu que pessoas como o ex-diretor da CIA, John Brennan, não acreditava que o suposto contato de Trump com os russos fosse uma prática deliberada: “Frequentemente, as pessoas que estão em um caminho traiçoeiro não sabem que estão em um caminho traiçoeiro”, afirmou ele, falando sobre o círculo de Trump.

Este parecia um argumento perigoso, o tipo de coisa que levou aos problemas dos anos Joseph McCarthy. Contudo, digamos que os contatos sejam sérios. Sob a ótica da reportagem, você ainda precisa saber exatamente qual era a natureza de tais contatos antes de contar a história, pois a implicação do título é grave. Além disso, você precisa conhecê-la bem o suficiente para denunciá-la, ou seja, não basta contar uma história convincente não autorizada – você precisa compartilhar com os leitores o suficiente para que eles próprios possam caracterizar as notícias.

Não é assim para o Times, que publicou o artigo sem os detalhes. Meses depois, James Comey explodiu essa história dos “contatos com a Inteligência russa” em público, dizendo: “em geral, não era verdade”. Como no caso do erro das “17 agências de inteligência”, que só foi corrigido quando Clapper deu seu testemunho no Congresso e foi forçado a fazer a correção sob juramento, a história de “contatos repetidos” só foi contestada quando Comey testemunhou no Congresso, desta vez ante o Comitê de Inteligência do Senado. Quantos outros erros desse tipo estão esperando para serem divulgados?

Até os erros detectados foram surpreendentes. Em 1º de dezembro de 2017, o repórter Brian Ross afirmou que Trump “como candidato” instruiu Michael Flynn a entrar em contato com a Rússia. A notícia fez com que a Dow Jones despencasse 350 pontos. A história foi retratada quase imediatamente, e Ross foi suspenso.

A Bloomberg relatou que Mueller intimara as contas do Trump no Deutsche Bank; as intimações eram de registros de outros indivíduos. A Fortune disse que a C-SPAN foi hackeada quando a programação do Russia Today interrompeu momentaneamente a transmissão de um discurso da deputada Maxine Waters no Congresso. O New York Times também publicou a história, e ela ainda está em alta, apesar de a C-SPAN insistir que seu próprio “erro de roteamento interno” provavelmente fez com que o Russia Today aparecesse no lugar de sua própria transmissão.

A CNN tem sozinha sua própria sublista de destruição. Três jornalistas do canal se demitiram após uma reportagem que pretendia ligar Anthony Scaramucci, assessor de Trump, a um fundo de investimento russo ter sido retratada pela emissora. Mais quatro repórteres da CNN (Gloria Borger, Eric Lichtblau, Jake Tapper e Brian Rokus) foram incluídos em uma reportagem afirmando que Comey deveria refutar as alegações de que Trump não era alvo de investigação. Comey detonou essa história também.

Em outra reportagem da CNN que deu errado, “E-mail aponta a campanha Trump em documentos do WikiLeaks”, os repórteres da emissora erraram em dez dias a data da “bomba” que supostamente provaria que a campanha Trump tinha conhecimento prévio dos despejos do Wikileaks. “É, talvez não tenha sido tão significativo quanto o que conhecemos agora”, disse Manu Raju, da CNN, numa dolorosa retratação ao vivo.

As piores histórias são as que nunca foram corrigidas. Um exemplo particularmente ruim é “Após tiroteio em escola da Flórida, o Exército russo de ‘bots’ deu um salto”, do New York Times em 18 de fevereiro de 2018. A matéria alegava que os russos estavam tentando dividir os americanos nas redes sociais após um tiroteio em massa usando hashtags do Twitter #guncontrolnow, #gunreformnow e #Parklandshooting. O Times publicou esta citação no alto:

“‘É bem típico deles saltarem em cima de notícias urgentes como esta’, disse Jonathon Morgan, executivo-chefe da New Knowledge, uma empresa que acompanha campanhas de desinformação online. ‘Os bots se concentram em qualquer coisa que seja divisiva para os americanos. Quase sistematicamente.’”

Cerca de um ano após essa história ter sido publicada, os jornalistas Scott Shane e Ann Blinder, do Times, reportaram que o mesmo grupo, New Knowledge, e em particular o mesmo Jonathon Morgan, haviam participado de um esquema radical para falsificar a atividade de trolls russos em uma corrida ao Senado do Alabama. A ideia era tentar convencer os eleitores que a Rússia preferia o candidato republicano. O Times citou um relatório interno da New Knowledge sobre tal esquema idiota no Alabama: “Nós orquestramos uma operação elaborada de ‘false flag’, plantando a ideia de que a campanha de Moore foi ampliada nas redes sociais por uma botnet russa…”. A história do tiroteio em Parkland pareceu duvidosa quando saiu, sendo contestada pelo Twitter, e outra das principais fontes para a reportagem inicial, o ex-oficial de inteligência Clint Watts, posteriormente disse que ele “não estava convencido” sobre a “coisa dos bots”.

Todavia, quando uma de suas principais fontes falseia exatamente o tipo de atividade descrita em seu artigo, você deve, ao menos, retirar a citação ou colocar uma atualização online. Sem sorte: a história permanece no site do Times, sem reclamações.

O Russiagate institucionalizou uma das maiores falhas éticas do jornalismo, que costumava ser limitada principalmente ao jornalismo criminal local. Sempre foi algo problemático publicarmos fotos e nomes de pessoas apenas presas, mas ainda não consideradas culpadas. Casos assim sobrevivem para sempre online até que os absolvidos acabam permanentemente impossibilitados de conseguirem empregos, manchados como ladrões, espancadores de mulheres, motoristas bêbados, etc.

Com o Russiagate, a imprensa americana abandonou qualquer pretensão de que há uma diferença entre acusação e condenação. A história mais perturbadora envolveu a ativista russa Maria Butina. Aqui as autoridades e a imprensa compartilham a responsabilidade. Graças a uma acusação que inicialmente dizia que Butina trocava favores por sexo, o Times e outros veículos inundaram o noticiário com histórias de tirar o fôlego sobre uma “sedutora vadia ruiva que veio minar a democracia”, uma “Red Sparrow da vida real”, como afirmara a ABC. Porém, após “cinco minutos”, a juíza logo descartou a acusação de “troca de favores por sexo” assim que descobriu que a história não passava de uma simples piada enviada por Butina para um amigo que havia levado o carro dela para o conserto.

É muito difícil desfazer a percepção pública de que você é uma prostituta, já que a mentira encabeça um título de matéria, e, pior, as manchetes ainda estão por aí. Você ainda pode encontrar histórias como “Maria Butina, suspeita de ser agente secreta, usava sexo em plano secreto”, no online do New York Times.

Então um repórter pode protestar: “Como poderia saber? Os promotores disseram que ela trocou sexo por dinheiro. Por que eu não deveria acreditar neles?”. Que tal por que as autoridades estão mentindo para os repórteres desde antes da invenção da eletricidade? Não é preciso muita investigação para perceber que as principais fontes institucionais na bagunça do Russiagate – os serviços de segurança, principalmente – têm históricos extensos quando se trata de enganar a mídia.

Como notado anteriormente, desde os contos da época da Primeira Guerra Mundial sobre os trabalhadores sindicalizados em greve serem agentes alemães, à “lacuna de mísseis” entre EUA e URSS que não existia (a “lacuna” vazou para a imprensa antes que os soviéticos tivessem um ICBM operacional) até o incidente no Golfo de Tonquim mexer com todos os tipos de pessoas, como Martin Luther King, é surpreendente que os jornais continuem dando ouvidos a sussurros de fontes governamentais em tudo.

Nos anos de Ronald Reagan, o conselheiro Nacional de Segurança, John Poindexter, espalhou para o Wall Street Journal e outros jornais falsas histórias sobre planos de terroristas líbios. Nos anos de Bush, Dick Cheney e cia. venderam caminhões de esterco a respeito das várias supostas conexões entre o Iraque e a Al-Qaeda, incluindo uma infame história de que o terrorista envolvido no ataque às Torres Gêmeas, Mohammed Atta, se reuniu com funcionários da inteligência iraquiana em Praga.

O New York Times publicou uma reportagem dizendo que Atta estava em Praga no final de outubro de 2001, até mesmo com a data da reunião com os iraquianos especificada em 8 de abril, ou “apenas cinco meses antes dos ataques terroristas”. A história de Praga foi outro exemplo de conto que parecia instável porque as autoridades americanas estavam usando como fonte primeiramente a inteligência estrangeira e, em seguida, os próprios repórteres. Cheney citou a tal reunião em Praga em aparições subsequentes na TV, um dos muitos casos de alimentação de repórteres e depois a venda de reportagens como confirmação independente.

Em 2004, o repórter do Times, James Risen, refutou definitivamente a mentira de que Atta esteve em Praga (por que é sempre Praga?) em uma matéria intitulada “Nenhuma evidência do encontro com iraquianos”. Só que aí era claro que já era tarde demais. O Times também publicou uma posição dissidente sobre as armas de destruição em massa, com a matéria de Risen intitulada “Assessores da CIA se sentem pressionados na elaboração de relatórios iraquianos”, dias após o início da guerra. Isso é o que acontece quando você começa a trapacear.

Esse fracasso dos jornalistas em exigir detalhes foi epidêmico na cobertura do Russiagate, mesmo quando bons repórteres estiveram envolvidos. Uma das maiores “revelações” dessa época envolveu uma história que foi publicada primeiro por um repórter terrível (Luke Harding, do The Guardian) e seguida por uma boa repórter (Jane Mayer, da New Yorker). O detalhe principal envolveu a origem indescritível da Russiagate.

O artigo de Mayer, de 12 de março de 2018, “Christopher Steele, o homem por trás do dossiê de Trump” na New Yorker, impactou o público principalmente por parecer reforçar as credenciais do autor do dossiê. Entretanto, o artigo continha nele uma pepita bem explosiva. Mayer reportou que Robert Hannigan, então chefe do GCHQ (o análogo britânico à NSA) interceptou um “fluxo de comunicações ilícitas” entre “a equipe de Trump e Moscou” pouco antes de agosto de 2016. Hannigan voou para os EUA para informar ao diretor da CIA, John Brennan, sobre essas comunicações. Brennan depois testemunhou que essa intercepção originalmente inspirou a investigação do FBI.

Quando li isso, um milhão de perguntas me veio à mente, mas primeiro: o que significa “ilícito”? Se algo “ilícito” tivesse sido capturado pelo GCHQ, e isso levou à investigação do FBI (uma das várias explicações públicas conflitantes para o início da investigação do FBI), ajudaria muito a esclarecer a natureza da acusação de conluio Trump-Rússia. Se o GCHQ tinha algo incriminando Trump, por que não poderia nos dizer o que era? Por que não merecemos saber?

Perguntei ao The Guardian: “Foi feita alguma tentativa para descobrir quais eram essas comunicações? Como a existência dessas comunicações foi confirmada? Alguém do The Guardian viu ou ouviu essas interceptações ou transcrições?” Sua resposta de uma frase: “The Guardian tem procedimentos austeros e rigorosos para lidar com suas fontes”. Esse é o tipo de resposta que você espera de um banco transnacional ou do exército, e não de um jornal.

Fiz as mesmas perguntas a Mayer. Ela foi mais direta, observando que, é claro, a história havia sido originalmente relatada por Harding, cujo próprio relato dizia que “a natureza precisa dessas trocas não foi tornada pública”. Ela acrescentou que “depois os elementos da [fala de Harding] foram confirmados por ela de forma independente com várias fontes bem informadas” e “passou meses ​​em cima da história de Steele [e] viajou para o Reino Unido duas vezes por ela”. No entanto, segundo Mayer, “o Russiagate, como todas as reportagens sobre questões sensíveis de segurança nacional, é muito difícil”. Só posso inferir que ela não conseguiu descobrir o que “ilícito” significava, apesar do esforço adequado. Esse pequeno detalhe, de qualquer maneira, foi publicado. Pode não parecer grande coisa, mas acho que foi.

Para ser claro, não necessariamente desacredito a ideia de que houve contatos “ilícitos” entre Trump e russos no início de 2015 ou antes, mas, se houve tais contatos, não consigo pensar em nenhum motivo legítimo para que sua natureza seja ocultada do público.

Se as autoridades podem compartilhar seus motivos de preocupação com países estrangeiros como Israel, por que os eleitores americanos não devem ter esse direito? Além da ideia de que precisamos manter as coisas em segredo para proteger fontes, métodos e “tradecraft” (metade do corpo de imprensa se tornou, no decorrer dos últimos anos, expert em um patético linguajar de espião e no uso de termos como “SIGINT” como se os conhecesse durante toda a vida), por que estamos vazando notícias a respeito de autoridades russas que aplaudiram a vitória de Trump?

Não questionar o andamento do caso foi algo constante na cobertura do Russiagate. Uma das primeiras reportagens caóticas envolveu uma dinâmica semelhante: a alegação de que alguns e-mails vazados do Comitê Nacional Democrata eram falsificações.

O “comentarista sobre inteligência” da MSNBC, Malcolm Nance, talvez a fonte mais entusiástica de notícias questionáveis do Russiagate – ao lado do conspiracionista de Twitter, Louise Mensch – tuitou em 11 de outubro de 2016: “Já está comprovado que os e-mails de Podesta (ex-chefe de gabinete da Casa Branca e chefe da campanha presidencial de Hillary Clinton) estão crivados de falsificações óbvias e são propaganda, ainda que não feitas profissionalmente”.

Como notou o The Intercept e outros veículos, isso foi noticiado mais uma vez por David Frum (um membro importante do clube que agora contribuiu tanto para os pânicos das armas de destruição em massa como do Russiagate) e pela apresentadora da MSNBC, Joy Reid. As reportagens não cessaram até cerca de outubro de 2016, entre outras coisas, porque a campanha de Hillary Clinton continuava sugerindo aos repórteres que os e-mails dela vazados eram falsos. Esse processo poderia ter sido interrompido mais cedo se a imprensa tivesse antes cobrado da campanha de Clinton os supostos exemplos de falsificação dos e-mails.

Outra prática dolorosa que se tornou comum era de não confrontar suas próprias fontes quando apareciam notícias sobre o que elas diziam. O onipresente James Clapper disse ao jornalista da NBC, Chuck Todd, em 5 de março de 2017, sem ambiguidades, que não havia nenhuma aplicação da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira envolvendo Trump ou sua campanha. “Eu posso negar”, disse ele.

Logo depois saiu que isso não era verdade. O FBI tinha um mandado da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira contra Carter Page. Essa não foi uma pequena confusão de Clapper, pois sua aparição veio um dia depois que Trump afirmou em um tweet que ele teve seus “telefones grampeados”. Trump foi amplamente ridicularizado por essa afirmação – talvez apropriadamente –, mas, além de Page, mais tarde foi divulgado um mandado da Lei de Vigilância de Inteligência Estrangeira contra Paul Manafort, no qual Trump pode ter sido alvo de uma vigilância “incidental”.

Se isso foi ou não significativo, ou se esses mandados foram justificados, são questões separadas. O importante é que Clapper mentiu para o jornalista, ou então ele de alguma forma não sabia que o FBI dispunha desses mandados. Esta última hipótese parece absurda e improvável. De qualquer forma, Todd deveria ficar irritado e exigir uma explicação. Em vez disso, ele recebeu Clapper de volta poucos meses depois e nunca o confrontou sobre o assunto.

Repórteres repetidamente ficaram magoados e não gritaram nada acerca desse tema. Por que todos os repórteres que usaram a firma “New Knowledge” como fonte sobre as histórias de trolls russos não tiveram as cabeças cortadas (ou as cabeças das fontes do Congresso que transmitiram essas coisas), mesmo depois de relatos de que houve falsificação na tal “trolagem russa”? Como é possível que a NBC e outros canais continuem a citar New Knowledge como fonte em matérias que identificam a democrata antiguerra Tulsi Gabbard como uma candidata apoiada pela Rússia?

Como os editores do The Guardian ainda não cortaram a cabeça de Harding após a mais duvidosa matéria não retratada da história moderna – a história de que o ser humano mais assistido na Terra, Julian Assange, havia sido visitado na embaixada do Equador por Paul Manafort sem deixar nenhum rastro? Estaria pessoalmente arrastando a “fonte bem colocada” de Harding para o escritório e batendo nela com uma mangueira até que ele entregasse alguma evidência que corroborasse com os fatos?

A ausência de um contragolpe aos episódios em que os repórteres foram colocados em situações públicas de comprometimento revela as relações excessivamente confortáveis que os veículos de imprensa tiveram com fontes oficiais. Com muita frequência, parecia um esforço de equipe, em que repórteres pareciam pensar que era seu dever assumir o peso caso as fontes os pressionassem a se excederem. Eles não tinham absolutamente nenhum senso de autoestima institucional.

Vestir a camisa de qualquer time é um mau presságio para a imprensa, mas a imprensa entrar no time do FBI/CIA é uma barbaridade, com Trump ou sem Trump. Por que se preocupar em ter uma assessoria de imprensa se você pode se aliar aos meios de comunicação? Essa postura foi expressa como solidariedade contra Trump, mas, na verdade, o ex-diretor da CIA, John Brennan – o mesmo Brennan que deveria ter enfrentado acusações por mentir ao Congresso quando houve o hackeamento dos computadores do Senado – precisa que a imprensa lamente por seu nome quando Trump arrancou sua habilitação de segurança? Nós não temos coisas melhores para fazer do que esse “trabalho”?

Esse catálogo de erros factuais e estenografia servil se destacará quando futuros analistas relembrarem por que a mídia mainstream se tornou uma piada durante esse período, embora fosse somente um sintoma de um problema bem maior. O problema maior foi uma mudança radical na abordagem.

Muito da cobertura do Russiagate se tornou teoria conspiratória direta, o que Baker educadamente chamou de “ligar os pontos”. Isso foi permitido porque a imprensa se comprometeu com a narrativa do conluio Trump-Rússia desde o início, oferecendo a todos uma cobertura que descambava em condutas que jamais seriam admitidas em tempos normais.

Esse foi o caso da obra de arte de Jonathan Chait sobre o Russiagate, “PRUMP TUTIN: Trump vai se reunir com seu homólogo – ou seu manipulador?”. A história também foi lançada como “E se Trump for um agente russo desde 1987?”, o que lembra a piada do The Wire: “Herc, e se sua mãe e seu pai nunca se conheceram?”. Essa reportagem de capa (!) da revista New York foi lançada antes de uma reunião “cara a cara” entre Trump e Putin e postulou que Trump esteve sob controle russo por décadas. Chait observou que Trump visitou a União Soviética em 1987 e voltou “empolgado, com ambição política”. Ele ofereceu a possibilidade de que isso fosse mera coincidência, mas acrescentou: “De fato, parece um pouco insano contemplar a possibilidade de que uma relação secreta entre Trump e Rússia remonte a tão longe. Mas isso não pode ser descartado completamente”.

Eu procurei o artigo de Chait de cima a baixo por relatos que justificassem a sugestão de Trump ter sido um agente russo desde o final dos anos 1980, quando – não que isso importasse – a Rússia era um país diferente, chamado União Soviética. Apenas dois fatos do artigo poderiam ter sido usados ​​para sustentar essa tese: Trump se encontrou com um funcionário soviético em 1986 e visitou a União Soviética em 1987. É isso. Essa é a sua reportagem de capa. Pior, a teoria de Chait foi apresentada pela primeira vez no boletim de notícias “Elephants and Donkeys”, de Lyndon Larouche, em 1987, com a manchete: “Os russos têm um cartão de Trump?”. Esse é um fundo do poço muito grande.

É uma mania. Putin está literalmente em nossas cuecas. Talvez, se tivermos sorte, a New York possa algum dia admitir a suspeição de sua reportagem que atestou que os russos montaram uma espionagem antimasturbação no Facebook usada como armadilha para chantagear americanos aleatórios, não apenas porque ela parece absurda logo de cara, mas porque sua fonte é o mesmo grupo “New Knowledge”, que admitiu a falsificar as operações de influência russa no Alabama.

Mas que retração é possível para a manchete do Washington Post: “Como os democratas vão lidar se Putin começar a usar com Bernie Sanders para jogar seus truques sujos (de novo)?”. Como reverter o discurso de Rachel Maddow sobre a Rússia talvez ter espalhado uma onda de frio ao longo dos EUA? Não há punição para o macarthismo e o medo.

Em última análise, esse será o fim da charada russa. Eles quase certamente nunca encontrarão nada parecido com as acusações selvagens e as teorias do “candidato manchuriano” elucidadas no dossiê de Steele. Todavia, os anos de pânico sobre os acontecimentos de 2016 levarão a mudanças radicais em tudo, desde a regulação da imprensa até a política externa, assim como a mentira das armas de destruição em massa levou à tortura, vigilância sem autorização, capitulação, assassinato de drones, orçamentos secretos e guerras abertas e não declaradas da Somália ao Níger e à Síria. Os erros serão esquecidos, mas a vigilância acelerada permanecerá.

É difícil saber quais alterações na política são apropriadas, pois a divulgação de tudo aquilo que envolveu a ameaça russa nos últimos dois a três anos não é confiável. Eu realmente não abordei o caso em que os russos teriam invadido o Comitê Nacional Democrata, tema de pura estipulação por enquanto. Disseram-me desde cedo que essa parte da história parecia “sólida”, mas mesmo essa afirmação permaneceu impassível desde então, ainda baseada em uma “avaliação” por esses mesmos serviços de inteligência que sempre foram problemáticos, incluindo o uso de coisas como a cobertura “antiamericana” da Russia Today como parte do caso. O governo nem sequer examinou o servidor do Comitê Nacional Democrata, o tipo de detalhe que costumava deixar os repórteres nervosos.

Sabemos o quanto nada disso se deve levar a sério até que a imprensa saia da cama com os serviços de segurança e veja toda essa série de eventos com novos olhos, como jornalistas, e não como atores políticos. Isso significa estar aberto para perguntar o que deu errado com a história do Russiagate, além de só concentrar tanta energia em Trump e na Rússia. A confusão das armas de destruição em massa teve um impacto negativo maciço no mundo real, levando a mais de 100 mil mortes e trilhões de dólares dos contribuintes jogados fora. A menos que o Russiagate leve a um conflito nuclear, dificilmente veremos esse nível de consequências.

Ainda assim, o Russiagate levou a uma cooperação sem precedentes entre o governo e as plataformas da Internet como Facebook, Twitter e Google, que censuram páginas à esquerda, à direita e ao centro em nome de impedir a “semeadura de discórdia”. A história também teve um impacto profundo em lugares como a Síria, onde tropas russas e americanas se sentaram do outro lado do rio Eufrates, como duas potências nucleares em uma encruzilhada.

Como um fracasso puramente jornalístico, todavia, as armas de destruição em massa eram uma espinha em comparação com o Russiagate. A enorme escala de erros e exageros, desta vez, supera a última bagunça. Pior, ela levou a maioria dos jornalistas a aceitar uma mudança radical em sua missão. Nós nos tornamos defensores de lados, obliterando o conceito de imprensa como uma instituição independente cujo papel principal é separar fato e ficção.

Tivemos o bom senso de eventualmente ter um olhar um pouco mais profundo para o tema das armas de destruição em massa iraquianas, que é a única razão pela qual escapamos desse episódio com alguma audiência restante. Seria a imprensa capaz de ter esse tipo de autoconsciência agora? O caso das armas de destruição em massa danificou nossa reputação. Se não mudarmos as coisas, essa história irá destruí-la.

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