Pesquisar
, ,

Em livro, sociólogo analisa como Caso Amarildo foi um duro golpe nas UPPs no Rio

Cientista social acompanhou o sumiço do pedreiro na Rocinha e detalha como a repercussão do caso foi um divisor de águas na história das UPPs.
por Masetti Assessoria
(Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil)

“Cadê o Amarildo?”

 

A pergunta destinada às autoridades do Rio de Janeiro ecoou pelas ruas do Brasil em 2013, escrita em faixas e exibida repetidamente em protestos na própria cidade, por todo o país e até no exterior. É provável que o ajudante de pedreiro Amarildo Dias de Souza, “desaparecido” por policiais militares da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, se tornasse outro número nas estatísticas de violência do Rio se não tivesse mexido com as estruturas do programa de pacificação de favelas e do que se entende por segurança pública no Brasil.

O mesmo grito coletivo, até hoje sem resposta definitiva, acaba de ganhar registro inédito no livro Cadê o Amarildo? O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs, novo lançamento da Baioneta Editora, de autoria do jornalista e sociólogo Leandro Resende. O livro é resultado de sua dissertação de mestrado, defendida em março de 2018 no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ). Mas a experiência é anterior: Leandro era estagiário do jornal O Dia em julho de 2013, quando Amarildo desapareceu, e, ao longo de sua carreira como repórter, acompanhou in loco diversos dos desdobramentos do caso que analisou sob a perspectiva sociológica.  

O jornalista vai além: elucida como a história do pedreiro “sumido” por agentes do Estado após ter entrado em uma viatura da PM fluminense se transformou em um ponto de inflexão sobre a relação entre Poder público, violência urbana e as populações de favela no Rio. “No sentido mais básico da ideia, é assim que encaro a história de Amarildo: um crime que entrou para o imaginário do Rio de Janeiro, tendo sido possível que se falasse dele mesmo após a elucidação, com a prisão de policiais militares, e em diferentes contextos”, ressalta o autor.

O livro combina farta documentação fruto de sua investigação jornalística – desde a cobertura da imprensa nos anos posteriores a depoimentos da própria família de Amarildo, incluindo uma conversa exclusiva com a viúva Elizabete Gomes – com a análise dos acontecimentos à luz dos conceitos da sociologia pragmática. A premissa que norteia a pesquisa de Leandro é identificar quando a tragédia de Amarildo pelas mãos do Estado deixou de ser um drama particular para se tornar uma controvérsia pública, ou seja, uma polêmica capaz de fazer refletir sobre uma realidade social bem mais profunda.

Assim, Leandro demarca os fatores que fizeram do desaparecimento do pedreiro em 2013 um episódio de violência que despertou tamanha atenção pública – a ponto de ser individualizado como o “Caso Amarildo” – justo em um contexto em que crimes ficaram banalizados nas favelas. Afinal, as periferias das grandes cidades já são enxergadas pelo senso comum como territórios do medo e da insegurança preexistentes. Para isso, o livro investiga minuciosamente todo o caso a partir de suas implicações temporais: um “antes”, um “durante” e um “depois” do sumiço do pedreiro.

ANTES, DURANTE E DEPOIS DE AMARILDO

Uma das razões da repercussão do Caso Amarildo foi a impressão de ineditismo de um assassinato daquela natureza em uma comunidade com UPP, política pública de segurança que era o carro-chefe do governo Sérgio Cabral. Leandro explora o “antes” do caso – como foram construídos o prestígio de que a pacificação das favelas cariocas gozou a partir de 2008 e o consenso de que ela concretizaria a velha promessa de “levar a paz” para “áreas perigosas”. “Eu acredito que o caso Amarildo afetou a confiança que havia nas UPPs até meados de 2013. Relato como que o desenrolar de um caso de desaparecimento associado à violência policial contribuiu para que houvesse um questionamento ao momento mais positivo da pacificação”, afirma o autor.

Em seguida, o jornalista busca desvendar como o desaparecimento do pedreiro carregado pelos PMs da Rocinha se tornou um dos assuntos mais comentados do Brasil no furor das manifestações de 2013 – período que Leandro delimita como “durante”, ou seja, entre os meses de julho de 2013, quando o sumiço ocorre, a outubro de 2013, quando vem à tona as primeiras informações sobre a tortura a que Amarildo fora submetido.

Leandro esmiúça o impacto político sem precedentes que o questionamento que tomou as mobilizações de rua e as redes sociais – “Cadê o Amarildo?” – deixou nas autoridades políticas defensoras da “marca UPP” e nas narrativas midiáticas sobre a política de pacificação: “Considero que este é o momento mais ‘quente’ do episódio, tanto em termos de atenção da mídia, como de contingentes de pessoas nas ruas cobrando uma elucidação sobre o paradeiro do pedreiro, somado aos posicionamentos públicos das principais autoridades fluminenses”.

Por “depois”, o autor disserta sobre, após o estopim da repercussão do caso, o assassinato de Amarildo foi, aos poucos, deixando de ser uma bandeira de luta contra a violência praticada pelo Estado para virar elemento das disputas eleitorais de 2014 e 2016 no Rio. “Me refiro a um duplo aspecto: a perda de relevância do caso e o desencanto final com o programa de pacificação das favelas fluminenses, acentuado a partir de 2016. É nesse ano, aliás, que os policiais militares responsáveis por torturar e ocultar o cadáver de Amarildo são condenados”, ressalta Leandro.

Mais do que tratar especificamente do sumiço do pedreiro Amarildo e suas particularidades, o livro põe em discussão a “marca da UPP” e como ela foi expressão de décadas de uma política de segurança no Rio de Janeiro orientada para a gestão de uma “guerra” maior contra “inimigos internos”. Em um contexto em que a operacionalização direta da guerra contra o crime mobiliza cada vez mais apoiadores em diferentes esferas de poder, Leandro relaciona o Caso Amarildo com outras mortes nas mãos de agentes públicos e explica o preço a ser pago pela sociedade – em particular, pelos setores mais marginalizados – pela construção da retórica do medo permanente.

Dialogando com uma ampla gama de atores envolvidos na investigação e na repercussão do sumiço do pedreiro, Cadê o Amarildo? O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs é mais do que um trabalho bem documentado a respeito do paradeiro até hoje desconhecido de um homem que morreu na Rocinha nas mãos da Polícia Militar. É também um grito análogo à indagação de outra vítima da violência crônica fluminense – Marielle Franco – acerca do futuro do Rio de Janeiro: quantos mais vão precisar morrer para que esta guerra acabe?

SOBRE O LIVRO:

Título: Cadê o Amarildo? O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs
Autor: Leandro Resende
ISBN: 978-85-85338-01-5
Editora: Baioneta
Páginas: 204
Edição: 1
Ano: 2019
Preço de capa: R$ 42,00

Em pré venda no site da Baioneta Editora.

Continue lendo

MST campo
Conflitos no campo atingem maior número já registrado no Brasil desde 1985
pai jau capa
Pai Jaú: macumba, futebol e negritude no Brasil do século 20
liberdade de expressao musk
A liberdade de expressão e as redes

Leia também

palestina_al_aqsa
Guerra e religião: a influência das profecias judaicas e islâmicas no conflito Israel-Palestina
rsz_jones-manoel
Jones Manoel: “é um absurdo falar de política sem falar de violência”
Palmares
A República de Palmares e a disputa pelos rumos da nacionalidade brasileira
Acampamento de manifestantes pedem intervenção militar
Mourão, o Partido Fardado e o novo totem [parte I]
pera-9
A música dos Panteras Negras
illmatic
‘Illmatic’, guetos urbanos e a Nova York compartimentada
democracia inabalada
Na ‘democracia inabalada’ todos temem os generais
golpe bolsonaro militares
O golpe não marchou por covardia dos golpistas
colono israel
Os escudos humanos de Israel