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Um presidente sem poder (ou crônica de uma morte anunciada)

Os poucos tripulantes que insistem em sua lealdade a Bolsonaro se movimentam no que pode ser o tufão derradeiro da navegação: a manifestação do dia 26.

por Pedro Marin | Revista Opera
O presidente Jair Bolsonaro participa do Ato de Consagração do Brasil a Jesus Cristo por Meio do Imaculado Coração de Maria, no Palácio do Planalto. (Foto: Marcos Corrêa/PR)|O Presidente da República, Jair Bolsonaro durante Cerimônia de Entrega da Medalha do Mérito Industrial do Estado do Rio de Janeiro. (Fernando Frazão/Agência Brasil)

Mais uma vez as mesmas teclas, as mesmas palavras, o mesmo ponto final: o presidente Jair Bolsonaro não tem poder próprio. Poder, a capacidade de realizar um projeto – ou, neste caso, sua falta -; é isto que explica no mais amplo a corrente situação política do Brasil.

Bolsonaro, em grande parte, não tinha projeto. Mobilizou o garoto de Chicago, o ministro da Economia Paulo Guedes, para acenar algum plano para o setor financeiro e as velhas oligarquias. Nos holofotes, sobre economia, o presidente só dizia que nada sabia, e que quem tocaria isso seria Paulo Guedes – os incautos iam considerando um fato cômico que o presidente o fizesse, quando na verdade deveriam ali ver um dado político: Bolsonaro acenava para o mercado como um certo suprassumo do liberalismo, um paraíso no qual um banqueiro (troque por mercado) toca tudo e o presidente (troque por Estado) traz um cafézinho.

Bolsonaro, em grande medida, também não tinha bases – ou, ao menos, não bases organizadas – e, definitivamente, não tinha a Virtù da qual falava Maquiavel [1]. Imagino a indignação do leitor, que já conta aos milhões os votos na cabeça: não confundamos bases com eleitores. As bases são aqueles com o qual se pode navegar, seja na maré baixa, seja na alta. Os eleitores são, no máximo, uns estivadores e doqueiros, que carregam o navio e o ajudam a deixar o porto. O que o navegante enfrentará a eles pouco importa, e se as ondas começarem a balançar a embarcação, logo dirão que o almirante é incapaz e buscarão um outro. Frente a tais fatos, Bolsonaro buscou uma tripulação cuja marca é precisamente a Virtù e honradez: os militares. Outro aceno, agora de duplo sentido, ao mercado. Primeiro: se os inimigos buscarem me derrubar, encontrarão resistência do Exército, no mínimo, e, se abrirem um impeachment, levarão Mourão à presidência. Segundo: se não confias em mim, confie nos homens que me cercam, que me aconselharão e tutelarão.

O que teve Bolsonaro, portanto, para que pudesse ser eleito? Uma boca grande, um senso de moral (ainda que imoral, completamente distinta daquela amoralidade asséptica típica dos candidatos “comuns”) e umas tantas estruturas de comunicação singulares: era um boneco ideal, uma peça de marketing perfeita, para tempos em que a confiança nas instituições e partidos ruía. O que Bolsonaro tinha, assim, é o que Maquiavel chamou de Fortuna [2]. Bolsonaro era um produto ideal pelo seu fedor próprio, quase como se o presidente se perfumasse diariamente de chorume, em tempos em que os mais caros perfumes, na percepção geral, cheiram muito mal.

O problema, é claro, é que a Fortuna muda; quando quem lhe navega é o mar, teu destino é um todo desconhecido. E, deixando o porto, em 1 de janeiro de 2019, Jair Bolsonaro começou a enfrentar as chuvas, redemoinhos e – por que não? – tsunamis. Os tripulantes vão se jogando ao mar e, aos poucos, os narizes que farejam vão percebendo que todo tipo de perfumaria é, somente, perfumaria. E já que os generais são impedidos de tutelá-lo, as oligarquias começam a pensar em juntar esta segunda opção (da tutela) com a primeira (da derrubada).

Aqueles poucos tripulantes que insistem em sua lealdade ao almirante agora se movimentam num ato que pode acabar por ser o tufão derradeiro da triste navegação: é a manifestação convocada em apoio ao governo no próximo dia 26. Como indicativo de que ela pode fazer mais mal ao presidente do que bem, temos não só o fato de que setores de seu próprio partido não a apoiam, como também o fato de que outras organizações e políticos, outrora aliados – MBL e João Doria, por exemplo – têm igual posição. Como cereja do bolo, o próprio presidente não participará.

Acima de tudo, a manifestação de estudantes convocada para o dia 30 dará medida clara da balança de poder nas ruas. Se triunfar maior do que a do dia 26, é o náufrago. Se não, é só uma vitória relativa do bolsonarismo, que terá sobrevida num cenário em que se vê cercado de mais infinitas intempéries. Portanto aposta-se muito, em cenário perigoso, para, no melhor dos casos, conseguir umas poucas moedas.

No meio de tudo, deputados, ministros, o “mercado”, o presidente e o povo vão tateando em busca de terra firme. Uns procuram o caminho nas estrelas, com ajuda de astrólogos profissionais. Outros, nas tais Forças Terrestres. Os últimos apostam na Fortuna – porque é tudo que sempre tiveram, ainda que, em medida de riqueza, nada tenham.

[1] – Capacidade de visão e navegação, capacidade tática e estratégica.
[2] – As circunstâncias do tempo, “sorte”.

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