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Os marxistas brasileiros e a ciência militar: apontamentos de nosso atraso no estudo da crítica das armas

A negativa em tratar da ciência militar, dos temas relacionados à violência, poder, estratégia e uso da força, em nada nos faz moralmente superiores.
A negativa em tratar da ciência militar, dos temas relacionados à violência, poder, estratégia e uso da força, em nada nos faz moralmente superiores. por Euclides Vasconcelos | Revista Opera
(Foto: turismo.to.gov.br)

“Por trabalho teórico entendemos o estudo da ciência militar, o conhecimento dos problemas militares, a convocação de militares (oficiais, suboficiais etc., inclusive os operários que tenham sido soldados) para participar de conversas, leituras, análises (…)” Lênin [1]

Embora não seja de conhecimento geral, a reflexão sobre a guerra sob o prisma do materialismo histórico remonta aos seus fundadores. Ambos, Engels e Marx, dedicaram tempo e esforço à análise dos fenômenos bélicos, seus pressupostos, implicações, especificidades e sua inserção na totalidade do movimento real. São muitos os escritos de Engels sobre o tema, desde o ponto de vista histórico até o tático e estratégico. Leitor atento de Clausewitz, o homem que nada teve de “segundo violino” recebeu o apelido de general nos círculos mais próximos pelo seu letramento nos temas militares e pela experiência de curto tempo em que serviu ao exército prussiano. Seu envolvimento no assunto era tal que na onda de revoluções de 1848 na Europa chegou a estar à frente de destacamentos de trabalhadores nos confrontos de rua.

Uma vez passada a Primeira Guerra Mundial, todo o mundo se questionava como uma guerra daquela proporção não havia sido prevista e evitada. No entanto, em 1887, 27 anos antes do início do conflito, Engels escrevia:

“[…] uma guerra mundial de extensão e intensidade jamais vista, se o sistema de superação mútua em armamentos, levado ao extremo, produzir seus frutos naturais. […] Oito a dez milhões de soldados se exterminarão mutuamente e deixarão a Europa arrasada, como nenhuma nuvem de gafanhotos seria capaz. As devastações da Guerra dos Trinta Anos, condensadas em três ou quatro anos, e espalhadas por todo o continente; fome, epidemia, barbárie geral de exércitos e de massas, provocadas por puro desespero; caos completo em nossos negócios, comércio e indústria, terminando em bancarrota geral; colapso dos velhos estados e de sua sabedoria tradicional, de tal forma que coroas rolarão nas valetas às dúzias e não haverá ninguém disponível para recolhê-las; absoluta impossibilidade de antever onde tudo isso terminará e quem serão os vitoriosos nessa luta; apenas um resultado é absolutamente certo: exaustão geral e a criação das circunstâncias para vitória final da classe operária.” [2]

Como tal prognóstico seria possível sem um profundo conhecimento da guerra não só em suas especificidades, mas também de sua inserção na totalidade?

As análises de ambos acerca da questão militar são as mais variadas: a guerra civil nos Estados Unidos, as guerras camponesas na Alemanha, a guerra de guerrilhas empreendida pela população espanhola em resistência à ocupação napoleônica e outros incontáveis episódios. Uma única edição dos escritos militares de Engels publicado na antiga Alemanha Oriental conta com cerca de duas mil páginas. Quanto disso foi discutido e absorvido pela tradição marxista brasileira? Quanto disso, ao menos, está disponível em nosso mercado editorial?

Outros grandes nomes de nossa teoria também se ocuparam detalhadamente do estudo da guerra por uma necessidade urgente. Nascida em meio à Primeira Guerra Mundial, até então o maior conflito que a humanidade já tinha visto, a Revolução Russa logo se viu em meio a uma brutal guerra civil combinada à intervenção de 14 países destinados a tirar os bolcheviques do poder. Como a vitória foi obtida? Krupskaya dá uma pista quando fala do ano de 1905: “Ilitch não somente leu Marx e Engels; estudou um grande número de obras militares; o problema da organização de uma insurreição lhe ocupou muito mais do que se crê normalmente” [3]. Embora insurreição e guerra sejam duas coisas diferentes, ao preparar-se para uma, Lênin tomou notas da outra. Não foram os estudos de Lênin que venceram as forças monarquistas e estrangeiras, é claro, todo um conjunto de elementos e oportunidades se cruzaram naquele turbilhão, mas é certo que a expertise no tema era condição necessária para que os revolucionários pudessem vislumbrar a mínima chance de vitória.

O controverso Trotsky, por sua vez, possui milhares de páginas escritas sobre o tema. Assim como outros tantos de sua época, viveu e analisou detalhadamente a Primeira Guerra Mundial. Mas foi antes, como correspondente na guerra dos Bálcãs (1912-1913), que inaugurou suas reflexões nesse campo, tendo contato direto não só com as estratégias dos Estados e seus grandes generais, como com os soldados e oficiais que iam e voltavam da frente de batalha, escrevendo colunas sobre a guerra e sobre os homens que nela lutavam. Indiscutivelmente importante foi o seu papel na guerra civil russa e na organização do Exército Vermelho. O quanto do seu papel como teórico e estrategista é estudado no Brasil, mesmo entre os trotskistas? Quantos dos seus textos sobre o tema foram publicados por aqueles que o reivindicam como o intocável arauto do marxismo?

Outros grandes nomes desse período são ainda mais desconhecidos, como Mikhail Frunze, liderança bolchevique e comandante do Exército Vermelho. Chamado de “Clausewitz Soviético” [4], Frunze é um dos grandes nomes da tradição militar soviética, responsável por formulações que teriam reflexo anos mais tarde, nas vitórias do Exército Vermelho sobre a Alemanha nazista. Alguns estudiosos chegam até mesmo a concluir, a partir disso, por algum nível de superioridade do soviético sobre Clausewitz, embora de minha parte não possua acúmulo suficiente de tais debates. Quantos escritos de Frunze foram traduzidos para o português, sendo isso o mínimo necessário para iniciarmos as discussões?

Que dizer sobre a vitória soviética sobre os nazistas? Que dizer da liderança de Stálin e seu papel como estrategista na maior guerra que o mundo já viu? Mais que estudar a história da Segunda Guerra Mundial, coisa que muitos já fazem, é urgente estudar do ponto de vista da ciência militar o que fizeram os soviéticos para destruir a besta nazista e entender como a curta tradição militar soviética, que muito bebeu da ciência militar tradicional, conseguiu formar um novo pensamento, quais são seus teóricos e quais foram os embates intelectuais no seio do PCUS e das academias militares do imenso país que permitiram isso.

Aquele que foi talvez o maior estrategista militar do século XX pertence à nossa tradição e é indiscutivelmente o mais importante teórico da guerra revolucionária, Mao Tsé-Tung. O líder revolucionário chinês logrou com sua Grande Marcha assombrar todo o Ocidente. Um exército que não só lutou numa guerra civil de extensões que nos são inimagináveis, mas que precisou lutar contra a ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. A sua noção de guerra popular a partir de então viria a influenciar gerações de teóricos não só entre os revolucionários, como também entre aqueles que, servindo à ordem, estudam para vencer-nos.

A maior humilhação que o colonialismo sofreu na história da humanidade veio também de nossa tradição: que falar do Vietnã, o pequeno país que logrou vencer os franceses, os japoneses, os estadunidenses e, não satisfeitos, os conflitos fronteiriços com a China e uma guerra contra o Camboja? O maior expoente militar dessa odisséia foi um professor de história com pouco mais de um metro e meio de altura e autodidata nos temas das armas. Conhecido como o Napoleão Vermelho, Vo Nguyen Giap parecia gostar do apelido. Mas como o vietnamita tornou-se quem era? Um de seus biógrafos comenta:

“Sua própria resposta irreverente dada em várias ocasiões era simples. ‘A única academia frequentada por mim foi a da selva’. Isto é, aprendeu na prática. O único problema da selva como academia militar é que lhe falta uma biblioteca adequada. Clausewitz disse certa vez que havia dois modos de estudar a guerra: pela experiência e pelo estudo de História militar.[…]

Talvez possa-se igualmente perguntar onde Júlio César, Tamerlão ou Alexandre receberam instrução. Qual importante instituto ensinou Aníbal o caminho para os Alpes? Qual academia militar que George Washington cursou? Recebeu T. E. Lawrence da Arábia a sua formação de oficial em Sandhurst? Como Giap, eles todos foram homens que se fizeram sozinhos, autodidatas e automotivados nos seus estudos de História Militar, estratégia e tática. Começaram por um desejo de saber e praticaram a arte da guerra em cenários que lhes permitiram aprender com seus erros. [5]

A lista é extensa e os nomes, variados. Prestes e Marighella, entre os nossos, são os que se destacam como contribuintes desse campo, mas infelizmente seus escritos e experiências práticas ainda ocupam lugar secundário como objeto de análise. Como bem mostra a volumosa biografia de Giap, escrita por alguém oriundo do exército que hoje estende seus tentáculos por todo o globo, o “lado de lá” estuda a nós e aos nossos muito mais que o “lado de cá” estuda a si e ao inimigo. Por quanto tempo?

Obviamente em países como Rússia, China, Cuba, Vietnã e outros onde revoluções socialistas ou nacional-libertadoras foram vitoriosas, o debate militar atingiu estágios muito mais avançados. Não se trata de comparar a situação desses países à nossa, mas apontar que em diversos países onde mesmo o movimento comunista não logrou alçar os degraus do poder, existe uma tradição (algumas vezes pequena, outras vezes encorpada) de reflexão dos temas militares. E nos locais onde não existe uma “tradição” propriamente dita, os intelectuais “de Partido” ou orgânicos, para lembrar o grandioso Gramsci, nunca relegaram a segundo plano as considerações desse tipo por um motivo muito simples: os comunistas (e todos aqueles comprometidos com uma mudança minimamente radical) não podem se dar a esse luxo.

No caso dos marxistas brasileiros, excetuando-se casos pontuais, a questão militar tem sido preterida sabe-se lá sob qual justificativa. A negativa em tratar de temas relacionados à violência, poder, estratégia e uso da força em nada nos faz moralmente superiores àqueles que, servindo à ordem, manuseiam muito bem os fuzis da história. Antes, se a questão moral for o parâmetro, saibamos que “aos justos convictos a necessidade estratégica é também uma imposição moral”[6]. Ou, para ficarmos em Marx, cabe lembrar a primeira parte de um aviso bastante pertinente: “as armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta pela força material”[7].

O estudo do tema: por onde começar?

“É a história, somente a História que, sem nos envolver no perigo real, amadurecerá nosso julgamento e nos preparará para adotar pontos de vista corretos, seja qual for a crise ou as condições do problema” Políbio [8]

A longa introdução deste texto tocou em temas importantes mas a um deixou escapar: o que, afinal, é a ciência militar? Tentando ser sucinto, a ciência militar é o conjunto de conhecimentos relacionados ao fazer da guerra.  Se a história militar é o ramo da história destinado a compreender a guerra, suas motivações, desdobramentos, especificidades, os homens que nelas lutam, matam e morrem, a ciência militar é o ramo de estudo destinado a refletir e administrar tais aspectos e tantos outros: psicológico, logístico, estratégico, tático etc. Ou, utilizando um paralelo que sempre faço para simplificar as coisas: a história militar está para a história da educação assim como a ciência militar está para a pedagogia.

Há ainda um segundo aspecto do campo, o formal. No Brasil, a formação dos oficiais de nosso Exército segue um currículo mínimo: um ano na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) e o bacharelado em Ciências Militares na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN). A Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), por sua vez, oferta cursos de mestrado, doutorado e pós-doutorado em Ciências Militares, destinados tanto a oficiais quanto a civis já graduados. Estes últimos, em sua maioria, professores universitários com carreiras na área de história, ciência política ou relações internacionais destinados a lecionar nas instituições de ensino militares. A ciência militar, nesse caso, remete ao ramo de estudo nas instituições de ESM brasileiras destinadas a formar os oficiais de nossa força terrestre e acadêmicos para estas instituições. Para os fins deste texto, não nos demoraremos aqui.

Nos questionarmos sobre como iniciar as leituras sobre esse tema demanda algumas delimitações com fins didáticos: o quê, exatamente, o leitor busca saber? Já que este texto tem como finalidade ser um pequeno guia introdutório, optei por dividir as indicações em duas seções: introdução à ciência militar e teoria da guerra e a contribuição da tradição revolucionária. Antes de partimos para as indicações, um aviso: este texto é fruto da tentativa de popularizar esses estudos para além dos departamentos e grupos dentro da academia e um recurso quase desesperado para sintetizar uma resposta às inúmeras buscas individuais que me têm sido feitas e, portanto, possui caráter meramente divulgador. Não é a palavra final nem o bater de um martelo decisório. Aos que já se aventuram no tema, paciência. Vocês já leram ou ao menos conhecem boa parte dessas obras.

 

1. Introdução à ciência militar e teoria da guerra

 

Não há nada mais prejudicial ao marxismo do que a recusa de estudar autores não-marxistas. O materialismo histórico é moldado na crítica e absorção da produção existente sobre a realidade concreta, e sua aplicação na ciência militar não pode ser diferente. A obra basilar da área é Da guerra, escrita pelo general prussiano Carl von Clausewitz entre 1819 e 1830 e interrompida antes de seu término e revisão final. Trata-se de uma obra extensa (a edição brasileira conta com mais de mil páginas), em alguns pontos confusa (dada a falta de revisão) e de forte cunho filosófico (não a toa, Clausewitz é considerado um filósofo da guerra). Sua escrita resulta de um contexto onde toda a velha ordem na Europa vinha sendo posta abaixo pelos exércitos napoleônicos e os teóricos militares buscavam compreender aquele novo modo de guerrear, cujo principal elemento era a participação popular.

Foi Clausewitz o responsável por popularizar as reflexões acerca da relação intrínseca entre guerra e política, contrariando as noções de que a guerra é um fenômeno de alguma forma autônomo ou independente. Tratando-se de uma leitura densa, não é prejudicial começar por análises de por estudiosos da obra do prussiano. Recomendo duas: a do historiador Peter Paret para a coletânea organizada por ele e publicada no Brasil pela Biblioteca do Exército (Bibliex), Construtores da estratégia moderna e a de autoria do militar e historiador britânico J. F. C. Fuller em seu livro A conduta da guerra, também publicado pela Bibliex (quanto ao esse último, existem algumas ressalvas, mas nada impressionante. No geral, a contribuição dele ao estudo de Clausewitz é muito boa).

Dentro da literatura especializada, existem debates acerca de sua atualidade ou da necessidade de sua superação. Como não escrevo aqui com propósitos acadêmicos, não há necessidade de um aprofundamento[9]. Basta que tenhamos noção de que até hoje, desde Marx e Engels, todos teóricos marxistas da guerra partiram dos pressupostos clausewitzianos e neles fizeram as correções necessárias, avançando para além de onde o prussiano foi. Ou, nas palavras do famoso teórico conservador Raymon Aron: “Quanto a Clausewitz, o mais notável dos escritores militares da burguesia de quem Marx, Engels, e depois Lênin e Mao Tsé-tung, retiraram as verdades parciais e corrigiram os erros idealistas, permanece sendo o mestre comum […]” [10].

Para além de Clausewitz, existem outros teóricos notáveis, tanto civis quanto militares, que merecem nossa atenção. Um dos mais importantes é Maquiavel, que com escritos de poucas páginas deu lições que a muitos ainda falta aprender. Para ter contato com esse e outros nomes importantes, com contribuições nacionais (como o caso da revolução americana, que em muitos aspectos precedeu dilemas da Primeira Guerra Mundial) e com lições retiradas de conflitos de maior envergadura, recomendo a leitura completa dos dois livros publicados pela Bibliex que recomendei anteriormente, com alguns cuidados que apontarei logo mais.  

Por fim, a leitura do livro Guerra Irregular: terrorismo, guerrilha e movimentos de resistência ao longo da história também me parece um bom modo de começar. Um dos melhores, aliás. Mas há uma especificidade: nele, o foco é o combate não-convencional, irregular. Ou seja: o combate de forças insurrecionais contra exércitos regulares. O autor, oficial das forças especiais do Exército Brasileiro, percebe a deficiência das Forças Armadas brasileiras (e de boa parte das do mundo) em lidar com o confronto “fora dos termos” e busca com esse livro contribuir com o debate e a consequente influência do mesmo na formação dos militares brasileiros. Um clássico trabalho ao estilo “estudando o oponente”, e isso não é um juízo de valor. Trata-se de um livro excepcional, obrigatório a todos que querem estudar o tema e embora contenha alguns deslizes (especialmente quando aborda casos de inspiração e/ou socialistas), é fonte riquíssima de aprendizado.

 

2. A contribuição da tradição revolucionária

 

Aqui seguiremos a lógica do ponto anterior: tratando-se de escritos dos nomes do nosso campo, o leitor encontrará tanto recomendações de textos deles como sobre eles. Existem poucos escritos originais publicados em português, por isso trarei recomendações em inglês e espanhol, além obviamente dos textos em nossa língua. Torço para que este escrito sirva, também, como um apelo por iniciativas editoriais que façam esse resgate, sendo essa a condição mínima para popularizar a discussão no Brasil.

Sobre os fundadores do materialismo histórico, existe um artigo do professor João Roberto Martins Filho chamado Engels & Marx: guerra e revolução [11] onde é feito um balanço da produção em inglês sobre o tema, dividindo-as em vertentes relacionadas ao contexto de produção. Importante ressaltar que são abordados livros sobre as análises de Engels e Marx, parte delas extremamente qualificadas. Trata-se de uma compilado mais que válido e extremamente útil aos que leem em inglês e de alguma forma possuem acesso às publicações nessa língua.

Na já recomendada coletânea Construtores da estratégia moderna há um capítulo destinado aos dois que é de leitura imprescindível nessa seara. É bastante comum, inclusive, que seja esse o texto quase sempre referenciado quando o tema é abordado de forma superficial por outros autores. No também recomendado livro A conduta da guerra aparecem Marx e Engels, assim como Lênin. Mas é importa ressaltar que mais de uma vez o autor, como conservador clássico, ao abordar o movimento socialista e episódios revolucionários (mesmo o francês), cai em sensacionalismos, reforça posições equivocadas e faz afirmações próprias de quem conhece o tema superficialmente, assim como suas posições de classe exalam desprezo em diversos momentos (não raro a palavra revolução é tratada como equivalente a barbárie, por exemplo), mas nem por isso a leitura é menos válida.

No nosso país, a única coletânea publicada é da Global editora e data de 1981 com textos de Marx, Engels e Lênin, os Escritos militares. Infelizmente nenhuma outra iniciativa desse tipo foi tomada outra vez, e a maioria dos textos dessa edição sequer foram traduzidos e transcritos para sites que compilam escritos marxistas. Uma listagem de alguns textos de Engels pode ser encontrada na dissertação de mestrado de Douglas Rogerio Anfra, Friedrich Engels, guerra e política: uma investigação sobre a análise marxista da guerra e das organizações militares [12]. Em inglês, o marxists.org reuniu análises e as importantíssimas cartas onde ele discute a questão [13]. De Marx, destaco a série de reportagens escritas para o New-York Daily Tribune sobre a ocupação napoleônica da Espanha e a encarniçada luta empreendida pela população espanhola contra as tropas de ocupação que foram reunidas sob o nome de A Espanha revolucionária [14].

Avançando um pouco no tempo, foi Lênin quem melhor uniu a teoria marxista da luta de classes e a teoria clausewitziana da guerra. Sobre ele eu recomendaria dois textos que, além de serem análises qualificadas, também trazem em suas referências diferentes escritos originais do bolchevique sobre a guerra. São eles: o livro Estratégia e tática, de Marta Harnecker e o capítulo que trata especificamente do seu pensamento militar no livro de Oziel Gomes, Lênin e a Revolução Russa, ambos publicados pela Expressão Popular. No raríssimo Clausewitz en el pensamiento marxista, publicado no México em 1979, estão as anotações dele sobre a obra do prussiano, texto de riqueza incalculável ainda não disponível em português.

Talvez seja de Trotsky o maior acervo online até então disponível, mas em inglês. O esforço para recolher seus Military Writings deu luz a 5 volumes, todos extensos [15]. Trotsky talvez seja, nessa lista, aquele cujos escritos militares sejam os mais ignorados. Seja pela recusa infantil em sua leitura, seja pelo floreio entorno de seu nome como um revolucionário injustiçado, arcanjo da democracia em combate contra o diabólico autoritarismo de Stálin. Dada a sua atuação frente ao Exército Vermelho nos anos da guerra civil russa, creio eu que soaria como uma ofensa o próprio que sua faceta estratégica fosse tão amplamente ignorada entre os seus discípulos. Uma importante introdução ao seu pensamento militar está no livro León Trotsky y el arte de la insurrección (1905-1917), escrito por Harold Walter Nelson, coronel do Exército estadunidense e professor de diversas academias militares dos EUA, também sem edição em português.

Mao Tsé-Tung foi aquele que melhor teorizou a guerra revolucionária e não por acaso é o marxista mais estudado nas academias militares de diversos países de peso na geopolítica mundial, mas de uma perspectiva diferente: a da contra-insurreição, que nada mais é que a manifestação militar da contra-revolução. De longa tradição colonial, a França, por exemplo, sempre se dedicou a aprender como melhor sufocar qualquer tentativa insurrecional nos territórios sob seu domínio. Que forma melhor de fazer isso que estudando aquele que levantou os condenados da terra e um dos que mais energicamente ergueu a bandeira anticolonial na história? Em português, o melhor escrito sobre o revolucionário asiático (e sobre outras questões relacionadas è teoria da guerra) que conheço é o livro A política armada: fundamentos da guerra revolucionária, do professor argentino nacionalizado brasileiro Héctor Luis Saint-Pierre, disponível em diversos sites e livrarias físicas. Já entre os escritos originais do líder chinês sobre que estão disponíveis em português, diversos figuram na coleção de Obras escolhidas da Alfa Ômega, mas outra vez trata-se de edições publicadas a um tempo considerável. Recentemente publicado, porém, foi o livro Sobre a guerra prolongada, numa iniciativa da editora Baioneta que não poderia chegar em melhor hora. Nesse caso cabe a nós, os leitores, garantir que os responsáveis por esse esforço possuam condições de nele seguir. Em outras palavras: compremos.

Ainda na Ásia, outro expoente da tradição anticolonial foi o vietnamita Vo Nguyen Giap. De seus textos em português temos publicado apenas o Armamento das massas revolucionárias, edificação do Exército do Povo, também disponível online[16]. Recomendação indispensável é a biografia já citada do general vietnamita, Vitória a qualquer custo: a biografia do General Vo Nguyen Giap, de Cecil B. Currey, coronel reformado do Exército dos Estados Unidos e professor de história militar. Eles nos estudam, e nós, estudamos a quem?

Essa lista poderia se prolongar por páginas e mais páginas, mas nesse caso acabaríamos por ultrapassar qualquer definição de “indicações introdutórias” que a mente humana poderia imaginar. Nenhum dos nomes mencionados recebeu a atenção merecida e outros tantos sequer foram mencionados, mas infelizmente o objetivo definido nos impõe limites, obedeçamos.

Alguns alertas finais: cabeça fria, coração quente

“O exército revolucionário é necessário porque só a força pode resolver os grandes problemas históricos, e porque a organização militar é, na luta contemporânea, a da força.” Lênin [17]

A burguesia europeia não abriu mão do uso da força nos episódios onde sua revolução teve caráter emancipador, nem tampouco onde sua subida ao poder aconteceu para evitar que em seu lugar os trabalhadores se convertessem na classe dominante. Nos Estados Unidos, um país de origem colonial onde a independência foi forjada em um processo revolucionário, a violência não foi menos brutal. O Terror Francês, período de excepcional radicalidade, não foi um ponto de violência em meio a um mar de cordialidade. A monarquia e as forças contra-revolucionárias que o digam:

“Em 21 de janeiro de 1793, segundo as palavras de Carlyle, ‘o machado se abate com um ruído seco e a vida de um rei é cortada’. Era a vida de Luís XVI. Por isso, brada Danton: ‘A coalizão de reis ameaça-nos; lançamos a seus pés, como um desafio, a cabeça de um rei.’” [18]

Depois disso, uma vez no poder e afastada a possibilidade de avanço popular, a burguesia não hesitou, como nunca hesita por um instante que seja, em utilizar da violência para manter-se onde está. Exemplo disso são as invasões coloniais e os mecanismos de sustentação da dominação colonial, as guerras imperialistas, os exércitos contra-revolucionários, os esforços destinados a sufocar greves, manifestações e levantes insurrecionais. Olhar para a história humana nos faz perceber que a paz é a exceção, não a regra. E mesmo nos intervalos dessa regra, a “paz” nada mais foi que a calmaria dos dominantes, ou seja: a guerra contra os dominados.

Daí a necessidade de que a ingenuidade seja deixada de lado em nome do realismo, o que infelizmente parece faltar a alguns marxistas. Quando a teoria não dá conta da realidade, não é a realidade que está em desacordo. O marxismo dá conta, mas nem todos os marxistas conseguem fazê-lo. Que diriam Marx e Engels? Ressalto que aqui não faço críticas àqueles de nós que, por motivos diferentes, não se aprofundam no tema mas reconhecem nele importância primordial. As palavras mais cortantes desse texto são direcionadas aos que negligenciam a discussão intencionalmente. Lembremos da maior ameaça enfrentada até então, o fascismo. Como ele foi derrotado?

“Os comunistas não idealizam, em absoluto, os métodos violentos, não querem, porém, ser apanhados de surpresa; não podem esperar que o velho regime se retire da cena, espontaneamente; vêem que o velho sistema se defende violentamente, e, por isso, dizem à classe operária: Preparem-se para responder com violência à violência; façam todo o possível para impedir que a ordem agonizante os esmague, não permitam que lhes algemem as mãos, estas mesmas mãos que demolirão o sistema velho. Como o senhor vê, os comunistas consideram a substituição de um sistema social por outro, não simplesmente como processo pacífico e espontâneo, e sim como processo complicado, longo e violento. Os comunistas não podem ignorar os fatos. “[19]

Uma vez que caminhamos para o fim deste texto, são necessários alguns alertas. O contato com a literatura acerca da guerra muitas vezes faz dos analistas pessoas fascinadas pelo conflito, homens que apenas aguardam o próximo conflito para ver em prática aquilo que estudaram em teoria – e aqui não importa se esses homens vestem farda ou não -, é um erro por demais danoso para passar despercebido. Exceto em períodos históricos onde a conjuntura mudou drasticamente, a regra são cenários onde a correlação de forças em muito nos desfavorecem, por isso redobremos o cuidado para não banalizar o tema. O distanciamento analítico nos permite certa frieza no olhar, mas lembremos que é a nossa classe a prejudicada em quase todas as ocasiões em que a carta da violência é posta na mesa e é principalmente por esse motivo que precisamos abandonar a passividade para nos apropriar de forma responsável de uma temática que nos é cara.

Fica também o alerta para a postura daqueles que acham que, estudando a fundo, levarão aos militares a “luz” sobre como devem agir. Uma arrogância típica dos que não compreendem o corporativismo próprio desse segmento em qualquer lugar do mundo. No Brasil, desde a consolidação do regime pós-64 e do expurgo nas fileiras das FFAA daqueles vinculados às lutas populares, sejam nacionalistas de esquerda, socialistas ou comunistas [20], estabeleceu-se a impossibilidade de questionar os atos da corporação em nome de uma suposta coesão interna. Se no pré-64 e mesmo nos anos iniciais da ditadura os episódios de questionamentos abertos eram comuns, hoje em dia uma crítica pública da tortura sistemática da ditadura, por exemplo, é vista como um ataque às Forças Armadas enquanto instituição. Por isso, que fique claro: não seremos nós os responsáveis por ensinar o padre a rezar a missa, mesmo que nesse caso a alguns padres falte um melhor conhecimento do latim.

Notas:

[1] apud Oziel Gomes, Lênin e a Revolução Russa, Expressão Popular, p. 149.

[2] apud Niall Ferguson, O horror da guerra, Planeta, s/p.

[3] apud Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos, Clausewitz, Marx, Engels e Lênin: rupturas, continuidades ou parentescos intelectuais na relação entre guerra e revolução?

[4] Walter Darnell Jacobs, Frunze: the soviet Clausewitz 1885–1925, Martinus Nijhoff Publishers.

[5] Cecil B. Currey, Vitória a qualquer custo: a biografia do General Vo Nguyen Giap, Biblioteca do Exército Editora, p. 249.

[6] revistaopera.operamundi.uol.com.br/2018/06/18/evitar-derramamento-de-sangue-uma-armadilha-historica/

[7] Karl Marx, Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Disponível em: marxists.org/portugues/marx/1844/critica/introducao.htm

[8] apud J. F. C. Fuller, A conduta da Guerra, Biblioteca do Exército Editora, p. 7.

[9] Ler Uma história da guerra, do historiador britânico John Keegan. Não concordo com a argumentação que ele desenvolve, mas trata-se de alguém inquestionavelmente importante para o campo da história militar. Seus outros livros comprovam isso.

[10] apud Adriana Iop Bellintani, O Exército Brasileiro e a Missão Militar Francesa: instrução, doutrina, organização, modernidade e profissionalismo (1920-1940), p. 47.

[11] João Roberto Martins Filho, Engels & Marx: guerra e revolução. Disponível em: ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/comentario40Comentario1.pdf

[12] Douglas Rogerio Anfra, Friedrich Engels, guerra e política: uma investigação sobre a análise marxista da guerra e das organizações militares. Disponível em: teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-30072013-114121/pt-br.php

[13] marxists.org/archive/marx/works/subject/war/index.htm

[14] Em português, na citada coletânea da Global editora. Em inglês, disponível em: marxists.org/archive/marx/works/1854/revolutionary-spain/index.htm

[15] marxists.org/archive/trotsky/works/index.htm

[16] marxists.org/portugues/giap/ano/arma/index.htm

[17] Lênin, O exército revolucionário e o governo revolucionário. Disponível em: textosmarxistas.blogs.sapo.pt/17925.html

[18] J. F. C. Fuller, A conduta da Guerra, Biblioteca do Exército Editora, p. 33-34.

[19] Stálin, Reformismo ou Revolução? Disponível em: marxists.org/portugues/stalin/1934/07/23.htm

[20] ver Cláudio Beserra de Vasconcelos, Repressão a militares na ditadura pós-1964, Arquivo Nacional.

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