A autonomização dos mercados financeiros – assim como o abandono do padrão-ouro e sua substituição pelo dólar ainda em 1971 – deu sinais de que o processo de acumulação do capital, como um círculo expansivo, se deparou com uma barreira difícil de transpor. O que se teve, porém, ao invés de uma preocupação racional dos economistas burgueses, foi uma celebração irracional própria da religiosidade que dominou o pensamento econômico: na aparência, com a abertura de créditos, o dinheiro pode se multiplicar mais rapidamente que o trabalho e sua consequente produção. Iniciava-se aí o dispositivo de gestão da barbárie que atende pelo nome de neoliberalismo.
Adentramos com os dois pés no mundo da especulação financeira, cada vez mais autonomizada da acumulação de riqueza concreta. Não havia alternativa; a crise do Welfare State foi definitiva. Destacada da produção real, a acumulação de capital tornou-se fictícia, o seu caráter abstrato sobressaiu sobre o caráter concreto de geração e produção de riquezas. Iniciou-se um jogo de mistérios; a fórmula mágica de multiplicar dinheiro sem valor.
A farra durou exatos 38 anos. Como num jogo de cartas, assistimos, no outono de 2008, à queda sequencial dos grandes bancos de investimento em Wall Street. Quando o Lehman Brothers por fim ruiu, sob ficção solenemente produzida, apresentou-se uma nova esquina da história do capital.
A crise iniciada em 2008 manteve um caráter perene graças, entre outros motivos, ao desenvolvimento técnico e à expansão global do capital; o fenômeno da “saturação da globalização” impôs um limite natural à expansão e manutenção da taxa de crescimento de capitais; a tecnologia por sua vez impôs um limite social ao trabalho como fonte de manutenção do consumo e processo de circulação de mercadorias. Não fosse o Tesouro Nacional estadunidense, o dinheiro estatal arrecadado por impostos, muitos bancos teriam falido e grandes empresas teriam ido à bancarrota.
A orgia financeira continuou. A crise solapou, porém, o otimismo dos investidores, acabou com o horizonte crescente dos planejamentos familiares, dinamitou os direitos, que muitos acreditavam ser sólidos nas democracias ocidentais, e aos poucos modificou o significado vazio e ideológico de democracia. Mas, como dizia Hegel: uma forma morta mantém sua aparência por muito tempo.
Hoje, enquanto uma nova crise, ainda mais radical e com poucas alternativas de saída graças à desestruturação dos Estados se avizinha, o horizonte de emancipação continua anuviado. As medidas dos especialistas se demonstram falhas, Estados inteiros se leiloam a fim de arrecadarem de volta o que entregaram de mão beijada para a iniciativa financeira e para os bancos. Depreda-se o antigo terceiro mundo e degrada-se ainda mais a vida dos seus desgraçados trabalhadores superexplorados.
A pobreza compartilhada crescente e evidente; as falências múltiplas dos órgãos empresariais reduzidos à financeirização econômica; a impossibilidade de manutenção da taxa de lucro; os ideais da modernidade solapados pela desestruturação social; Detroit arruinada; a maior crise econômica da história [1]; e uma massa de trabalhadores endividados acenderam o alarme de incêndio nos palácios de bilionários cafajestes. [2]
A teologia neoliberal finalmente sucumbiu; no entanto, foi preciso continuar seu império de destruição e catástrofe…
A ininterrupta desagregação social – cujo efeito é a segregação daqueles que vagam pelas ruas, pelas faculdades, pelas favelas – forçou os adoradores do capital, que criam em sua potência ad infinitum, a sair da sua cômoda posição. Muitos economistas, sociólogos, políticos e intelectuais da ordem tiveram que acordar de seu sonho dogmático.
Novamente, os braços e mentes dos curandeiros e teólogos do capital se uniram, auxiliados pelo dinheiro de algum think-tank, na tentativa de impedir a verdadeira política. O marginal, o sem futuro, o sem-terra, o estudante eternamente jovem porque não tem posto de trabalho para a vida adulta, o preto, a travesti, o cigano e o indígena se tornaram um ponto no radar do estado de sítio permanente. Os olhares democratas, mais sensíveis aos perigos do seu mundo, foram forçados a tomar medidas preventivas.
Era preciso evitar motins, incluir nos espaços de poder os eleitos domesticados, criar uma gramática própria, que reverberasse em modas tribais e urbanas, tornar o esvaziado valor democrático em dogma e religião. De repente, todo um aparato foi montado. Reformar o capitalismo global; torná-lo humano.
Domar a insurgência que viria.
Era preciso, no entanto, exportar a gramática do império, sua visão de mundo, e com ela formas de ação que dominassem sutilmente o bloco desorganizado de uma esquerda que, já sem estrutura simbólica modernizadora, perdia de vista a imaginação de uma vida para além do capital e estaria pronta para receber as cartilhas de fundações rentáveis muito bem-intencionadas. [3]
Um tipo de velho colonialismo com nova roupa; sutil, desagregador, baseado na fragmentação da classe; contrário, portanto, a toda consistência política proletária mais prolongada – que busca por todos os meios manter a álgebra de dominação contra a topologia dos descontentes – este colonialismo que muitas vezes se diz descolonizador, mesmo quando financiado pela Open Society – rapidamente formou um consenso em torno da particularidade estanque, imóvel e higienizadora. Bancou subalternos para serem bons subalternos.
E, no entanto, os procedimentos de controle “democrático” mantêm sua insegurança diária, garantida pelo sonho de pacificação na ponta de um fuzil do “caveira” [4], e dos direitos humanos que sempre chegam tarde para reclamar o corpo preto nas favelas cariocas. Sob o olhar do jovem ativista do freedom and democracy, ainda ardem as chamas dos carros queimados devido a mais uma morte de favelado. Sob os sonhos democráticos da ativista “global”, o Brasil se tornou o líder mundial de mortes por armas de fogo. [5]
Ainda assim, com essa pacificação sangrenta, a democracia, tornada dispositivo internalizado e legalizado do irracional sistema capitalista, pode falhar a qualquer momento, desde que mantenha a taxa de lucro intacta e rumine o “eterno” trabalho abstrato. Pode-se inclusive perder eleições e assumir cargos presidenciais ou prender um forte adversário político com crimes inventados por um juiz de quinta categoria. [6]
Enfim, dispositivos da contra-revolução norte-americana passaram a funcionar a todo vapor, enquanto sábios filantropos deixaram claro que grande parte da esquerda não era propriamente contra o capital. [7] O consenso democrático liberal, que na forma da lei impede qualquer transformação social efetiva, fora acatado acriticamente sob a rubrica de defesa acrítica dos direitos humanos.
Ergueu-se, pela primeira vez, algo que deixaria até mesmo Bernstein de cabelo em pé – uma esquerda pálida, alaranjada, bem-intencionada, guiando-nos tranquilamente ao inferno dos particularismos identitários que fomentaram, a contragosto da ingenuidade, a xenofobia e a imersão na defesa de limpeza étnica perante o Outro. E esse é só um dos braços do empoderamento liberal, justificado pelo empreendedorismo de si na bicicleta do iFood ou na transformação das baianas do acarajé em empreendedoras empoderadas.
Fundou-se a esquerda liberal; um paradoxo tornado força material ao ser propagandeado como único caminho efetivo. E graças aos diversos financiamentos, e apoios de uma burguesia cautelosa, tornou-se força hegemônica, defensora de “mudanças graduais, pacíficas, democráticas, representativas”. Dentro da ordem que assassina e violenta o corpo negro invisibilizado.
Noutras palavras, formou-se uma polícia que vigia diuturnamente os descontentes; ataca a violência dos violentados pelo Estado; suga a energia da juventude para projetos que respeitem a Lei de responsabilidade fiscal; educa o sonho “tresloucado” de mudanças radicais para a gestão da miséria.
A obviedade dos resultados se revela no cotidiano áspero de um país de desigualdade brutal e paz total. Uma pacificação garantida com mortes financiadas pelo Estado, via sua polícia assassina. Invisibilização da violência contra uma epiderme específica, afastada dos prédios e condomínios.
Desse modo, coletivos genuínos rapidamente se transformam em ONGs rentáveis, cursos populares passaram a ter por finalidade a inclusão pela inclusão e mesmo o radical jovem comprou o sonho de ser representado pela atriz global. “Não há alternativas, temos que negociar”, é o mote funesto.
Mas como refletir sobre os pressupostos dessa esquerda? Como demonstrar os limites de sua atuação para além da empiria?
Essa esquerda afirma a subjetividade particularizada para depois diluí-la na falsa política liberal. Ao se imbuir de particularismos e esforçar-se pela manutenção do lugar, e não pela sua implosão, opta-se pela diferença determinada pelo aparato social sob a égide da mercadoria. Em termos mais simples, criam-se, sob o rótulo de política, nichos de mercados próprios à teologia neoliberal.
A esquerda liberal, esse oxímoro só possível pelas derrotas históricas da classe trabalhadora, clama por um lugar no espaço algébrico do poder, e não pela implosão desse lugar pela topologia do negativo imposta pela classe. Acredita no rosto humano do capital e na posição apolítica que tomou a forma de parlamento. Vive sob o império da lei como se esta não fosse resultado da luta de classes e luta contra qualquer transgressão aos seus ideais. Sobretudo, sabota o futuro emancipatório pelo apego reduzido ao eterno agora.
Seus elementos são facilmente identificáveis.
Em primeiro lugar, uma boa resposta contra essa hegemonia talvez resida no fato de que a luta pela universalidade concreta – aquela que fundamenta no real a possibilidade de um desenvolvimento efetivo das potencialidades do indivíduo forjada através do fim da desigualdade social – não elimina a subjetividade; pelo contrário, é a única forma de garanti-la. A posição de uma esquerda antiliberal deve ser aquela de igualdade social radical e imanente às relações sociais.
Em segundo lugar, a questão da invisibilidade proposta por leituras da realidade que corroboram a noção de rebelião nos traz algo de suma importância: a quebra da sujeição, ao ser diluída a identificação necessária ao poder. A luta contra os espaços demarcados na estrutura algébrica do poder fundamentado nas diferenças sociais historicamente produzidas. Isso implica o trabalho de toupeira sem apostar nos dispositivos institucionais.
Daí se destaca que o proletariado pensado por Marx não é apenas uma noção objetiva, mas também subjetiva. A noção de proletariado não é uma identidade, mas a quebra da identidade. O proletariado não é uma particularidade, senão uma universalidade abstrata que quer se concretizar. Pode ser qualquer um, encarnar em qualquer corpo, é a classe universal que não se define por um lugar, senão por uma consciência topológica – isto é, que se põe para fora do jogo instituído –, por uma implosão do lugar.
Por isso, a negação abstrata do Estado, a luta contra as opressões, sem a luta complementar contra o capital, levam a indícios de obscurantismo romântico na própria crítica e por sua vez à tentativa de instauração de uma lei do coração que impulsiona esse próprio Estado, quer dizer: a disputa parlamentar como fim em si mesma permanece no registro do capital e é muito bem-vinda. Além disso, uma ideia de opressão sem sua constitutiva fomentação pelo mundo econômico-social é uma denúncia vazia. Um politicismo gerencial.
Disso chegamos à conclusão de que a crítica da economia política continua sendo o pressuposto de toda crítica. É no entendimento dos pressupostos econômicos que fundamentaram a sociedade moderna que se compreende a emergência do Estado sem essencializá-lo.
Se a ideia de comum se coloca como uma necessidade radical para salvar o próprio planeta, a Ideia Comunista permanece se reatualizando à sombra dos processos de destruição criativa do capitalismo tardio. Uma hipótese entendida aqui longe dos fantasmas da caserna e com o acerto de contas com o “socialismo realmente existente”. Enfim, a Ideia Comunista é a única possibilidade de salvaguardar pressupostos concretos de transformação social efetiva. [8]
Trazer isso à tona é fundamental para pensarmos sob a lógica de uma política efetiva. Ora, é o encontro com a diferença radical que possibilita a abertura naquilo que aparecia como uma sucessão fechada, democraticamente segura, porque desnuda a limitação do espaço algébrico do poder instituído pela exploração do capital. Da mesma forma, são os limites socialmente impostos que permitem uma abertura para a ação subjetiva. Oportunidade, em todo caso, efetivada a partir da capacidade de se indignar com tais limites.
A política emerge justamente no dissenso inegociável. O fantasma do comunismo que volta a assombrar as consciências celibatárias do capital não é algo à toa; a Ideia Comunista continua sendo a única possibilidade efetiva de política dos condenados; a tomada de parte dos que não têm parte; os portadores do novo que, como dizia a velha Internacional, nada sendo em tal mundo, serão tudo.
Foi a esquerda liberal, no entanto, que se recusou a descer para o campo aberto da política quando buscou conciliar interesses inconciliáveis e gerir a crise que se tornou dispositivo de governo. Foi a extrema-direita que, se aproveitando da domesticação proposta por essa mentalidade, se insurgiu, dominou as ruas e impôs a agenda neoliberal aproveitando-se de uma insatisfação legitimamente popular e, assim, armou uma contra-revolução permanente mesmo que não tenha existido horizonte revolucionário algum.
Diante do bom mocismo da esquerda global, o jeito Trump de governar, esse populismo às avessas, tornou-se conivente com os interesses do capital e uma forma concreta de dominação e lucro. Atualmente, muitos países têm um tipo de Trump na presidência ou disputando cargo, embora os olhares dos educados liberais e suas bocas torcidas queiram dizer o contrário, Trump é uma necessidade.
No momento em que nunca houve tanta riqueza, mais e mais a miséria torna-se o único bem comum nos quatro cantos do globo. A tecnologia que serviria para libertar-nos do trabalho apenas criou um exército de desempregados, remédios que ofereceriam a cura são excluídos de prateleiras por não serem rentáveis, a irracionalidade se expressa como nunca se viu na recente história do capitalismo e é adorada.
É somente pela crítica da economia política que foi possível observar que o neoliberalismo tinha como princípio a tomada de lugares estratégicos do antigo Estado de bem-estar social para que houvesse possibilidade de investimentos com margem de lucro alta pelos manipuladores do mercado financeiro. E para tanto precisou incutir uma gramática própria com o intuito de ganhar corações e mentes; identificar e manter no lugar os corpos violentados e párias. Não é à toa que Gramsci é hoje um dos comunistas mais citados pela direita.
Isso significa que: a) embora haja um projeto político e ideológico no neoliberalismo balizado pelo consenso de Washington, ele só existe por uma necessidade imposta pelo capital e não o contrário; b) a retomada do desenvolvimentismo por parte da esquerda liberal revela-se, portanto, como um véu que encobre um componente altamente desagregador do capital tardio: a crise como forma de governo e a contra-revolução permanente como garantia de lucro.
O Brasil não apenas está inserido na economia global como é joguete nas vacilações e oscilações do capital. Além disso, não é sequer possível dizer que em algum momento em sua história, de capital dependente, houve algum lastro de Welfare State, o que torna a sua situação ainda mais trágica. Parte dessa esquerda enxerga, contudo, a “alternativa” no enquadramento da economia por intermédio de reformas com um papel preponderantemente politicista, como se fossem as leis que impõem ao capital seu movimento e não o contrário.
Ignora, contudo, que são as novas tecnologias que diminuíram o trabalho necessário para a produção de diversos tipos de bens e têm impedido um processo de circulação supostamente sadio que atenda à demanda de consumo. Ignora uma alternativa existente para além do parlamento com uma imposição política de classe. Busca defender um capital social dentro da ordem vigente e tenta relacionar aspectos democráticos liberais como se a história pudesse voltar atrás.
O problema é que parte desse pensamento estabelece uma disputa que fica entre um capitalismo neoliberal, maligno, etc., e outro de “rosto humano”. Acredita que a democracia não funcionou bem quando na verdade a democracia liberal é isso mesmo: morte dos indesejáveis, exclusão da maioria dos centros dos acontecimentos e Estado de exceção permanente contra os pobres.
É muito mais fácil afirmar a identificação, o lugar subalterno, do que destruir qualquer possibilidade de subalternidade. Mas, também, é muito mais distópico e tem nos conduzido à barbárie. No entanto, quem o faz não é um sujeito senão um simples sujeitado. Como a esquerda liberal se aferra a tais pressupostos para tentar garantir colônias rentáveis, corpos de exploração representativa, vencedores da miséria, tornou-se uma simples sujeitada do processo antipolítico liberal, logo, passou a não interessar para ninguém sua perspectiva de classe média senão aos seus crentes.
Lembremos: o poder igualmente tem fundamentação social e é só dela que emerge sua verdade. A forma do Estado burguês e de sua antipolítica parlamentar nem sempre existiu, e pode desaparecer. Aliás, no atual estágio ele cumpre a função mínima de desviar a riqueza produzida socialmente para os bolsos da elite e socializar os prejuízos.
Isso indica, portanto, que a morfologia de seu funcionamento está se esgotando, desnudando um problema interessante: se Capital e Estado se complementam, o esgotamento de um, ao mesmo tempo, pode ser o de outro, implicando uma emergência revolucionária. A crise que se aproxima dirá.
Se pensarmos em Marx, e fugirmos dos pressupostos redutores da sociologia, observaremos então, parodiando Badiou em sua Teoria do sujeito, que a classe só existe enquanto processo, é um fora-de-lugar que precisa abolir todo lugar em que possa surgir a noção de classe. O projeto do proletariado é a desaparição da própria noção de classe. Desaparecimento que tornará as diferenças indiferentes e, portanto, passíveis de se desenvolverem livremente. O lugar deve ser implodido pelo fora-de-lugar, não para a manutenção do lugar, mas pela criação efetiva de um não-lugar em que a multiplicidade seja regra geral e a partilha do comum seja efetiva.
[rev_slider alias=”livros”][/rev_slider]Notas:
[1] – A esse respeito ver o livro Enigma do capital de David Harvey.[2] – https://diplomatique.org.br/perdemos-detroit/
[3] – https://www.correiodobrasil.com.br/fundacoes-ultradireita-apoiam-setores-esquerda-brasil-reforcam-golpe/
[4] – Policial do BOPE.
[5] – Pesquisa Global de Mortalidade por Armas de Fogo (Global Mortality from firearms, 1990 – 2016), do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (Institute for Health Metrics and Evaluation), o país soma 43.200 mortes.
[6] – Aqui estamos falando da eleição de Trump e da prisão de Lula.
[7] – https://www.bbc.com/portuguese/internacional-44338827
[8] – Aqui nos baseamos em dois livros de Badiou: A teoria do sujeito, que infelizmente não tem tradução para o português e Hipótese comunista, que saiu pela Boitempo.