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O papel dos vice-presidentes na América Latina

Arcabouço institucional-legal, a conjuntura política e as predileções influenciam no tipo de papel exercido pelos vice-presidentes na América Latina.
por Bárbara Ester | Celag – Tradução de Guilherme Laranjeira para a Revista Opera
Presidente da República, Jair Bolsonaro durante Cerimônia Comemorativa do Dia do Exército, com a Imposição da Ordem do Mérito Militar e da Medalha do Exército Brasileiro. (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil )

O papel dos vice-presidentes tem sido um dos pontos menos explorados pela Ciência Política. Porém, nos últimos anos ele ganhou uma relevância singular por algumas tendências inovadoras: desde a sobrerrepresentação das mulheres nesse cargo[1], até os conflitos dentro da fórmula presidencial que resultaram em autênticas crises políticas capazes de alterar o governo sem a necessidade de golpes, simplesmente mediante a fórmula sucessória. Para o vice-presidente, seu lugar dentro do limbo institucional é o mais paradoxal: não é nada, mas pode ser tudo. O que há por trás do papel mais opaco dentro do núcleo do Governo?

Tipologia das fórmulas eleitorais na América Latina

Seguindo distintos trabalhos acadêmicos[2] que analisam o papel dos vice-presidentes na região, podemos classificar as constituições segundo como planejaram a sucessão presidencial.

  • Binômio: a fórmula se compõe pelo presidente e vice-presidente; este é o caso da Argentina (desde 1994), Bolívia, Colômbia, Brasil, Equador, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá (desde 2004), Paraguai e Uruguai.
  • Trinômio: a fórmula se compõe por presidente, primeiro e segundo vice-presidente. O único caso existente na atualidade é o do Peru. Historicamente o Panamá utilizou esse sistema entre 1972 e 2004. 
  • Designação: o vice-presidente é designado pelo presidente logo depois de sua eleição, é o caso somente da Venezuela.
  • Não existe a figura da Vice-Presidência: é o caso do Chile e do México, onde as sucessões são mediadas pelo órgão legislativo. 

Dentro dos grupos 1 e 2 existem países nos quais esta figura tem a responsabilidade de ser presidente do Senado, como na Argentina e no Uruguai, enquanto que em outros é apenas um papel substituto em situações de ausência temporária ou definitiva. Todos os países da região elegem binômios, com exceção do Peru, que vota trinômios.    

No Chile as ausências presidenciais são supridas pelo ministro titular ao qual corresponda o cargo, de acordo com a ordem de precedência legal em primeiro e segundo lugar; no caso de ser impossível, o presidente do Senado (eleito por sufrágio popular) assume a Vice-Presidência. Algo similar acontece no México, onde, em caso de falta absoluta do presidente, é o Parlamento quem designa o presidente interino ou substituto. Em ausências breves, o secretário de governo – nomeado pelo presidente – assume provisoriamente a titularidade do Poder Executivo. Finalmente, na Venezuela é o presidente eleito quem escolhe o vice-presidente. 

Fórmulas de Governo: relações entre presidente e vice-presidente

Seguindo a análise de Ariel Sribman[3], as relações entre os componentes do Executivo podem ser de “subordinação” ou de “cooperação”, segundo o grau de acordo que existe entre ambos. A diferença está no grau de adesão e identificação com as políticas do Executivo por parte do vice-presidente e o grau de confiança entre ambos. Nem tudo é cor de rosa; a “tensão” e o “conflito” surgem quando as desavenças entre ambos emergem, fundamentalmente um produto de uma baixa lealdade e um baixo acordo com as políticas que promove o chefe do Executivo. A diferenciação conceitual entre “tensão” e “conflito” é que, na primeira, o vice-presidente tem pouco poder político, enquanto que na segunda o vice-presidente é capaz de exercer sua influências graças à sua capacidade de operar sobre outros atores ou, inclusive, de saber aproveitar a oportunidade para que a faísca produza uma crise dentro do Executivo.

As quatro tipologias de relações (subordinação, cooperação, tensão ou conflito) se definem em torno de duas variáveis: o poder político e o nível de lealdade e conformidade com as políticas propiciadas. Isso se relaciona com fatores internos, como o capital político inicial de cada um (em muitos casos se balanceia combinando candidatos “insiders-outsiders”), suas características pessoais – como idade, gênero ou raça -, o peso dos partidos de origem e seus posicionamentos dentro deles, assim como as negociações e alianças que desenvolveram a chapa, quer com diferenças dentro de um mesmo partido (de tendências ou de facções) ou de partidos diferentes.

Por último, cabe destacar que as quatro categorias analisadas não são estáticas, elas podem flutuar e suceder-se uma a outra de acordo com a correlação de forças e o contexto. De todos os modos, parece bastante razoável assinalar que para o acesso ao cargo de vice-presidente é imprescindível que o candidato cumpra algum dos critérios mencionados. Continuando, alguns exemplos de caso:    

Subordinação ou “perdendo imagem a seu lado”

Recordamos que esse caso se produz quando o capital político do vice-presidente é escasso e, embora possa haver discrepâncias entre os que compõe a chapa, a tendência é para o não-confronto. Este é o caso de Alicia Pucheta, vice-presidenta paraguaia ou Gabriela Michetti, vice-presidenta argentina. Os dois casos exemplificam a eleição de companheiras de chapa sem um grande capital político prévio, provenientes da justiça ou de ONGs, respectivamente, mas com características demográficas “da moda”: ambas mulheres, sendo que a primeira tem um contrapeso de maior idade e a segunda uma deficiência.

Cooperação ou “alianças virtuosas”

Este caso pode ser de um partido sólido, sem a necessidade de alianças que deem conta de uma amálgama ideológica; o melhor exemplo é o de Evo Morales e Álvaro García Linera. Ambos provenientes do Movimiento al Socialismo (MAS), mas que alcançam uma complementaridade de perfis entre o étnico e o técnico, um sindicalista e um intelectual, o que produziu um virtuoso binômio.

Entretanto, também é possível encontrar exemplos menos transparentes, como a relação entre Pedro Kuczynski (desocupado e atualmente em prisão domiciliar por corrupção) e seu ex-primeiro vice-presidente, Martín Vizcarra, cuja relação foi eficiente e colaborativa. Recordemos que foi Vizcarra quem lidou com os huaicos (inundações) de 2016, ligando sua pessoa ao território sem eclipsar a imagem presidencial, que também foi removido do cargo antes das incipientes denúncias de irregularidades no aeroporto Chinchero e realocado como embaixador no Canadá para sua “preservação”. Ainda assim isso não impediu que, quando a sorte batesse em sua porta para servi-lo a Presidência em uma bandeja de prata, construísse sua legitimidade na luta anticorrupção. Sua fórmula também encontrou um equilíbrio entre idade e termos regionais, uma vez que Vizcarra passou a exercer o governo regional de Moquegua, enquanto Kuczynski não apenas passou a maior parte de sua vida fora do país, mas também esteve sempre ligado a cargos por designação e no âmbito nacional. Sem dúvida, a eleição do vice-presidente garantiu a continuidade de um projeto pouco sólido como o do Peruanos por el Kambio (PPK). 

O recente fechamento das coalizões em face das eleições de outubro na Argentina talvez seja o caso que coroa o protagonismo do vice-presidente na hora de buscar coalizões mais competitivas no terreno eleitoral. Três das chapas que geram maior expectativa estão compostas por representantes do Partido Justicialista (PJ), chegando ao ponto irrisório de que o oficialismo – que não hesitou em identificar este partido como a origem de todos os males herdados – escolheu como companheiro de chapa de Mauricio Macri, Miguel Ángel Pichetto (PJ). Não apenas se trata do partido: o componente federal parece ser um fator chave na hora de fechar binômios quando o oficialismo acumula derrota nas províncias e apresenta números vermelhos de aprovação nas pesquisas. Da mesma forma, Roberto Lavagna – de extração radical em suas origens – equilibrou sua candidatura com Juan Manuel Urtubey (PJ). Por sua parte, a ex-presidenta Cristina Fernández – que acumulou o maior fluxo eleitoral no cenário atual – escolheu ceder a liderança da chapa a Alberto Fernández (PJ), que foi uma peça chave do primeiro Governo Kirchner de 2003 e seu amigo pessoal, relegando-se a um segundo lugar em um ato de humildade poucas vezes visto na política. Essa aliança virtuosa levou a última chapa a encabeçar as preferências para as próximas eleições. [4]

Tensão ou “uma sombra irritante”

Muitas vezes, a relação de tensão é um estágio anterior ao momento em que o vice-presidente consiga acumular mais capital político para poder se diferenciar e, se necessário, assumir a presidência. Um exemplo neste sentido é o de Marta Lucia Ramírez e Iván Duque, que muitas vezes confunde seu companheiro de chapa com Álvaro Uribe. Marta Lucía se diferenciou de Duque desde o começo, e espera ser a candidata da extrema-direita em 2022. Nessa mesma situação estava Juan Manuel Santos, quando seu companheiro na Vice-Presidência era Angelino Garzón, que tentou, sem sucesso, sucedê-lo e canalizar a clivagem Uribista contra Santos. Aparentemente a regularidade na política colombiana é que os “vices” têm claras aspirações presidenciais e constituem uma força política que tem voto próprio com uma relativa autonomia. Contudo, as funções constitucionais da Vice-Presidência na Colômbia são mínimas.

Outro exemplo dessas tensões é o caso de Hamilton Mourão, atual vice-presidente brasileiro e general do Exército (em sintonia com a ideologia de Jair Bolsonaro). Não são poucos os que afirmam que Mourão anseia ocupar o cargo máximo. O atual vice-presidente é muito mais moderado, acessível, e menos beligerante que Bolsonaro. O fato de ser um membro das Forças Armadas é relevante quando oito ministros são também militares. Muitos analistas concordam que o general poderia estar limpando o caminho para outro possível impeachment, ainda mais quando, desde o começo de seu governo, Bolsonaro teve baixíssimos níveis de aprovação, ignorando a habitual “lua de mel” de começo de gestões. Outro aspecto importante é que Mourão, por seu amplo domínio de idiomas, assumiu um papel relevante nos meios nacionais e internacionais de comunicação, e suas mensagens contradizem ou desautorizam várias decisões e posições tomadas por Bolsonaro, desde mostrar-se a favor do direito ao aborto, até a defesa de que Lula assista ao funeral de seu irmão. Não nos esqueçamos que foi no 1º de Janeiro um dos poucos momentos na história brasileira em que um capitão andou à frente de um general. [5]   

Conflito ou “traição”

Quando se chega ao nível do conflito, muito provavelmente existem problemas de origem, com alianças mais pragmáticas que ideológicas; entretanto, o senso de oportunidade parece ser decisivo em dar o salto da tensão para a conspiração aberta e, finalmente, para a traição. O caso arquetípico é o de Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro, MDB) no impeachment contra Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores, PT), onde seu papel como operador político no Congresso foi fundamental e culminou em uma crise política que o lançou como presidente.

O segundo aconteceu ao contrário: foi o presidente Lenin Moreno que conspirou contra Jorge Glas, ambos copartidários de Alianza País mas de tendências antagonistas. Primeiro retirou do vice-presidente todas suas funções por decreto[6] e, posteriormente a Controladoria Geral destituiu Glas. Não seria o único vice-presidente em conflito com Moreno; antes de delegar suas próprias funções executivas, sua segunda vice-presidenta, Maria Alejandra Vicuña, renunciou ao cargo. 

Em terceiro lugar, está o caso de Fernando Lugo (Partido Democrático Cristão) e Federico Franco (Partido Liberal Radical Auténtico) cujas diferenças começaram em 2007 durante a etapa pré-eleitoral. Franco ocupou a primeira magistratura durante 215 dias devido às 75 viagens ao exterior realizadas por Lugo. Nas vésperas do julgamento político que culminaria na destituição presidencial, Franco declarava: “Não estive de acordo com o presidente Lugo em muitas de suas decisões, porque fui eleito como ele, em 20 de abril de 2008, para administrar o país, mas ele me ignorou” [7]

Por último, a Argentina recentemente incorporou o vice-presidente à chapa presidencial com a reforma menemista de 1994. Porém, se tratou de um papel pouco relevante até julho de 2008, quando Julio Cobos (União Cívica Radical), até então vice-presidente do primeiro mandato de Cristina Kirchner e com um papel submisso, desempatou – como presidente do Senado –  um voto legislativo pelas retenções ao setor agroexportador, indo contra o Executivo com seu voto “não positivo”. Esse conflito foi algo, até então, inédito no país do sul, que, entretanto, não conseguiu catapultar a carreira política de Cobos, muito pelo contrário.

Em conclusão

Em algumas das democracias analisadas não é possível entender plenamente a realidade política sem levar em conta o papel do vice-presidente. Ainda mais quando nos presidencialismos sul-americanos a existência da Vice-Presidência constituiu mais uma regra do que uma exceção. O contexto evidencia que as quedas presidenciais podem ocorrer, cada vez mais, sem uma ruptura de regime, voltando completamente as diretrizes das políticas de governo para a fórmula de sucessão. Para isso basta ressaltar a maneira pela qual Temer e Franco transgrediram a continuidade das políticas públicas levadas a cabo por seus antecessores. Assim, a importância do vice-presidente é fortalecida cada vez mais.

Um dos maiores estudiosos das relações entre os dois papéis do Executivo, Mario Serrafeno[8], definiu a Vice-Presidência como uma “instituição de crises”, e foi o primeiro a falar das “práticas paraconstitucionais” presentes na Vice-Presidência, para explicar como a participação no Gabinete e no lobby do Senado tornou possível a influência na agenda ou na nomeação de pessoas de confiança nas pastas ministeriais. Deste modo, a Vice-Presidência pode se tornar problemática, chegando inclusive a atentar contra a governabilidade de um país. Embora seja verdade que em alguns casos existe uma tensão intrínseca na instituição que coloca em jogo a lealdade do vice-presidente ao mandatário do executivo devido à tentação de sucedê-lo, também se verifica que, em outros casos, a Vice-Presidência tem um papel importante na conformação de alianças eleitoralmente mais competitivas.

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Notas:

[1] https://www.celag.org/mujeres-politica-feminismo/

[2] Para se aprofundar a respeito ver: http://di.usal.edu.ar/archivos/di/lazzari_-_el_vicepresidente.pdf y https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5026331

[3] “La vicepresidencia argentina (1983-2009)”. Cuadernos de Estudios Latino-Americanos.

[4] https://www.celag.org/wp-content/uploads/2019/05/ENCUESTA-ARGENTINA-WEB-17MAYO-2019.pdf y https://www.celag.org/estudio-cuantitativo-escenario-electoral-en-argentina/

[5] https://nuso.org/articulo/mourao-bolsonaro-brasil-derecha-gobierno/

[6] https://www.nytimes.com/es/2017/08/10/ecuador-lenin-moreno-jorge-glass-rafael-correa/

[7] https://cnnespanol.cnn.com/2012/06/23/quien-es-federico-franco-el-nuevo-presidente-de-paraguay/

[8] El poder y su sombra. Buenos Aires: Editorial de Belgrano (1999).

 

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