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Antiterrorismo: Uma velha arma na mão de Bolsonaro (ou nosso riso não é barricada)

Distraídos, perderemos: enquanto focamos no espetáculo pontual com desinformação, a rede repressiva de Bolsonaro avança pelas beiradas.
por Pedro Marin | Revista Opera
Presidente da República, Jair Bolsonaro, durante visita ao Monumento Gorro Preto e ao Museu COPESP/EB. (Foto: Isac Nóbrega/PR)

A capa da Revista Veja que estampou “A ameaça é real”, se referindo ao grupo eco-terrorista Sociedade Secreta Selvagem (SSS), fração brasileira do Individualistas que Tendem ao Selvagem (ITS), foi tomada em importantes setores da esquerda brasileira com chacota. Em defesa da tese de que o grupo seria usado como um bode expiatório para uma ofensiva repressiva sob a bandeira do antiterrorismo, variadas e absurdas observações sobre a matéria foram feitas – sem desaguarem, como tem sido de costume, em nenhuma definição estratégica, e assim revelando, por outro lado, a completa falta de preparo que nos rodeia.

Alguns muitos, para sustentar o quadro que traçam mais ou menos acertadamente – de “fechamento de regime” a consolidação do poder militar – tomaram a matéria como um grande embuste plantado pela revista para justificar medidas repressivas do governo. Ponderaram que sentido teria em um grupo terrorista avisar publicamente sobre seus atentados – demonstrando assim a completa ignorância sobre como efetivamente opera o terrorismo -, riram do “absurdo nome inventado pela Veja” – se a organização se auto-intitulasse “Exército Popular Brasileiro” as reações seriam menos estúpidas? – e lançaram mais umas tantas zombarias sobre o caso.

O ITS ou sua fração do Brasil não são uma “invenção da Veja“. Trata-se de uma organização mais ou menos consolidada internacionalmente, com publicações e revistas próprias e alguns atentados, de maior ou menor gravidade (no Brasil foram ao menos três, no Chile e no México têm uma ficha corrida mais longa e danosa). Do ponto de vista ideológico, a organização tem por bases o niilismo, uma espécie de “naturalismo” anti-jus-naturalista (não se trata de “buscar a natureza” para fazer leis, mas entender as leis em si como anti-naturais), e o primitivismo. Isso tudo é misturado a um elogio do caos, indigenismo e ecologismo – defendem uma guerra contra a civilização humana em nome de um chamado ancestral da natureza selvagem.

Mas não é sobre o ITS ou a SSS que quero tratar. Tomemos a sério o que merece seriedade: o que se pinta é que um dos maiores veículos de comunicação do país “inventou” um grupo terrorista, levantando a bola para o governo, e o que se dá em resposta a prometido cenário obscuro é que, além de não levarem suas observações às primárias consequências – isto é, ao cálculo estratégico – não conseguem sequer fazer um trabalho simples de pesquisa.

A capa da Veja não só pauta e centraliza nossos debates: ela nos imobiliza em discussões estúpidas, que até podem levar a considerações acertadas, mas não se traduzem nem numa estratégia real nem numa ação concreta. O ITS-SSS é real. Sua capacidade de levar promessas a cabo pode até ser questionada – mas se a organização fosse falsa, como tantos querem fazer crer, não seria isso razão para ainda maior preocupação e seriedade em nosso cálculo? Não seria ainda mais grave que todo um governo cercado de militares fabricasse factoides para justificar suas ações? Querem fazer do seu riso a barricada com que derrubarão o governo?

Distraídos, perderemos

Muito pior do que a falta de crença na veracidade do grupo eco-terrorista, as discussões estúpidas e o falatório geral incapaz de levar a uma linha estratégica condizente, é o fato de que todos estes fatores só revelam a nossa distração. Precisou que a Veja estampasse sua capa com a referida manchete para que consideremos o “antiterrorismo” como uma arma nas mãos de Bolsonaro quando, já há algum tempo, temos indicativos ainda mais graves disso.

Em julho deste ano, ocorreu em Buenos Aires a Conferência Hemisférica de Luta contra o Terrorismo, que contou com a participação de 18 países. No encontro, se firmou um acordo entre Brasil, Paraguai, Argentina e EUA, estabelecendo uma “aliança antiterrorista”, sob a qual a República Islâmica do Irã e o partido político libanês Hezbollah foram consideradas as “principais ameaças.” Os chanceleres dos países da tríplice fronteira e dos EUA se encontrarão semestralmente para estreitar as ações da aliança antiterrorista.

O tom do acordo segue as linhas estratégicas norte-americanas que dão conta do combate de uma aliança “socialista-islamista-narco-terrorista” na América Latina, e cita também “ecoextremismo” em abstrato (apesar de ter circulado no final do ano passado, em grupos bolsonaristas, uma tentativa de identificar uma aliança entre a SSS e o PCC, quando em verdade o primeiro simplesmente aplaude “toda forma de criminalidade”). O balaio representa uma grande rede repressiva que joga numa só conta fenômenos nacionais e internacionais, políticos e criminosos, de características as mais diversas. Exemplos não faltam: a Foundation for Defense of Democracies (FDD), think-tank norte-americano fundado logo após os ataques de 11 de setembro, cita em um artigo supostas relações do governo venezuelano com tráfico de drogas e com forças iranianas e do Hezbollah. O artigo cita também as mesmas relações em Cuba e na Colômbia, e tem como base os discursos do presidente norte-americano Donald Trump.

Não é de se espantar, portanto, o espetáculo feito no Rio de Janeiro sobre a suposta relação entre o tráfico de drogas no Estado e o Hezbollah, sequer é espantoso que o governo tenha mantido durante mais de um mês dois navios iranianos sem combustível no porto de Paranaguá: tratam-se de resultados diretos da adoção do Brasil da política externa norte-americana e da “aliança antiterrorista” continental. A nova Operação Condor já começou e os inimigos são qualquer um, em qualquer lugar, desde que apontados pelos norte-americanos.

Também passou batido – afinal, a Veja não colocou na capa – o PL 2418/2019, de autoria de José Medeiros (Podemos – MT), que já passou pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) da Câmara e que busca alterar o Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014) para que provedores de internet sejam obrigados ao “monitoramento de atividades terroristas e crimes hediondos”. No caso de os provedores não derem conta de realizar o monitoramento, eles “deverão permitir a instalação de softwares ou equipamentos pelas autoridades competentes”. Especial atenção para o artigo 3 do PL: “A infiltração de agentes dos órgãos de inteligência e dos órgãos de segurança pública nas redes […] será precedida de autorização judicial devidamente circunstanciada e fundamentada. […] A autorização para os órgãos de inteligência será emitida por autoridade judiciária militar.” Pergunta: como efetivamente os provedores ou os “softwares das autoridades competentes” poderão monitorar atividades terroristas e crimes hediondos sem monitorar todos os usuários de internet? Por acaso há alguma palavra-chave universal usada por terroristas, (talvez a hashtag #MuitoMau?), que possibilite às autoridades só quebrar o direito à privacidade de terroristas e criminosos? É óbvio que não. A cortina de fumaça do terror no PL 2418/2019 tem a todos nós como alvos, bastando autorização de autoridade judiciária militar.

É assim que, imaginando e ridicularizando um cenário apocalíptico em que o governo usa de um pequeno grupo para adotar um estado de exceção – tese possível, ainda que improvável, já que isso deslocaria aos poucos o poder para os militares e isolaria o presidente – ignoramos o que é mais óbvio, o que está mais à vista, o que já tem implicações internas e geopolíticas gigantescas. Tendo um governo de extrema-direita cercado da redoma verde, que recebeu de presente do último governo legítimo do país uma absurda lei antiterrorista, e de Temer-Etchegoyen uma impressionante rede de inteligência militar, não é no terrorismo Silvestre nem em apocalipses totalitários que nossas vistas devem focar. É na crescente repressão política do dia-a-dia, nas “aproximações sucessivas” militares, na cortina de fumaça do antiterrorismo que não servirá para, abertamente, criar um estado de exceção apocalíptico, mas que irá mirar os seus adversários políticos pela sombra, e na nossa política exterior (eu disse “nossa?”).

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