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A nacionalização cubana da propriedade americana em 1960: o contexto histórico e o global

O conflito Cuba-EUA continua sem solução porque o conflito global Norte-Sul, ao qual pertence, também permanece sem solução.
por Charles McKelvey | Counterpunch – Tradução de Matheus Ferreira Silva para a Revista Opera
(Imagem: Estúdio Gauche)

Ao avançar na ativação, pelo menos parcial, do Título III da Lei Helms-Burton de 1996, a administração Trump ressuscitou a questão da nacionalização cubana das propriedades dos EUA em Cuba em 1960.

O conflito entre os EUA e Cuba sobre as propriedades nacionalizadas norte-americanas é um caso particular em um conflito global histórico ainda em desenvolvimento entre as potências globais e o Terceiro Mundo. O conflito se manifestou em 1955, quando líderes de vinte e três nações asiáticas e africanas recém-independentes se reuniram em Bandung, na Indonésia. Eles procuraram reestruturar os padrões econômicos globais estabelecidos durante a dominação colonial europeia e, para isso, defenderam a unidade e a cooperação econômica entre as nações recentemente independentes, entre outras estratégias.

Os líderes deste emergente projeto do Terceiro Mundo reuniram-se em 1961 em Belgrado, na Iugoslávia, onde fundaram o Movimento dos Países Não-Alinhados. Entre os fundadores estavam os gigantes da época: Tito, Sukarno, Nasser, Zhou Enlai, Nkrumah e Ben Youssef. Cuba estava entre os fundadores, representada pelo Presidente do Governo Revolucionário, Osvaldo Dorticós. Os movimentos revolucionários de Cuba e da América Latina, refletindo sobre sua situação neocolonial histórica, semicolonial e contemporânea, estavam forjando uma perspectiva semelhante às nações recém-independentes da África e da Ásia.

O Movimento dos Não-Alinhados se baseou nos princípios da Carta da ONU, incluindo os “direitos iguais e a autodeterminação dos povos” e “a igualdade soberana de todos” os países. E o projeto do Terceiro Mundo levou a sério a declaração da Carta de que “as Nações Unidas devem promover padrões mais elevados de vida… e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social.”

Ao mesmo tempo, o projeto do Terceiro Mundo discerniu a necessidade de formular princípios a partir da perspectiva dos povos neocolonizados e, consequentemente, desenvolveu uma proposta de um sistema mundial avesso ao fundado a partir da colonização. A “Declaração sobre o Estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional”, adotada pela Assembléia Geral da ONU em 1º de maio de 1974, expressou vinte princípios sobre os quais a nova ordem econômica internacional deveria ser fundada.

Os princípios afirmados pela “Nova Ordem Econômica Internacional” incluíam o direito dos estados de nacionalizar propriedades, necessárias para nações recém-independentes, para exercer a soberania sobre seus recursos naturais e promover o desenvolvimento econômico e social. O documento sustentava ainda que nenhuma nação deveria ser submetida a coerção para impedir que exercesse esse direito.

A situação política, econômica e social em Cuba em 1959 exigiu que o governo revolucionário exercesse seu direito de nacionalização. Mais da metade das terras agrícolas estavam em mãos estrangeiras e oitenta e cinco por cento dos camponeses trabalhavam em terras que não possuíam. A Reforma Agrária foi um artigo da Constituição Cubana de 1940, mas não foi implementada pelos governos subseqüentes. Em sua autodefesa de 16 de outubro de 1953, conhecida como “A História Me Absolverá”, Fidel Castro revelou um programa revolucionário que incluía uma redistribuição inicial de terras para arrendatários e meeiros, com compensação para os proprietários; e uma lei de reforma agrária posterior, baseada em estudos adicionais. Em 10 de outubro de 1958, o Exército Rebelde na Sierra Maestra promulgou uma lei dando posse aos pequenos camponeses da terra em que trabalhavam. Quando a Revolução chegou ao poder, a liderança revolucionária considerou a reforma agrária uma medida econômica essencial, necessária para o desenvolvimento social e econômico da nação; e encontrou apoio esmagador entre o povo.

A Lei de Reforma Agrária foi emitida pelo Governo Revolucionário em 17 de maio de 1959. A Lei fixou a quantidade máxima de terra por proprietário em 406 hectares. Reconheceu o direito constitucional dos proprietários à indenização, e colocou o valor da indenização no que os proprietários haviam declarado nos relatórios fiscais. Estabeleceu o pagamento na forma de “Obrigações da Reforma Agrária”, que deveriam acumular juros anuais não superiores a 4,5%, e seriam resgatáveis em vinte anos.

A Lei da Reforma Agrária foi fundamental para a depreciação da relação econômica entre Cuba e os Estados Unidos e definiu o caráter anti-neocolonial da Revolução. O governo dos EUA imediatamente lançou uma campanha ideológica contra o governo revolucionário cubano, invocando o fantasma do comunismo. Em 17 de março de 1960, a administração Eisenhower iniciou o planejamento de uma invasão militar, realizada por contra-revolucionários cubanos baseados em Miami. Em 2 de julho de 1960, o Congresso dos EUA autorizou o Presidente a alterar a cota de açúcar entre EUA e Cuba; e em 6 de julho, o presidente Dwight Eisenhower reduziu a compra de açúcar dos EUA para 23% abaixo da cota, procurando provocar dificuldades econômicas em Cuba. Após o fracasso da invasão da Baía dos Porcos, em 17 de abril de 1961, o governo dos EUA recorreu ao embargo comercial à Cuba e ao apoio a atividades terroristas na ilha, apoiando organizações terroristas contra-revolucionárias sediadas em Miami. O objetivo da política dos EUA era o que hoje chamamos de mudança de regime, buscando restabelecer um governo subordinado aos interesses dos EUA, de acordo com as exigências da ordem mundial neocolonial.

A Revolução Cubana não queria conflito com os Estados Unidos; queria cooperação e respeito por sua soberania. A perspectiva cubana é evidente na Lei 851, emitida pelo Governo Revolucionário em 6 de julho de 1960. A Lei autorizou o Presidente e o Primeiro Ministro de Cuba a nacionalizar as propriedades dos EUA por meio de uma Resolução Conjunta. Estabeleceu uma compensação para as propriedades nacionalizadas por meio de títulos do governo a juros anuais de 2%, com pagamento para começar em um período não inferior a trinta anos. A Lei determinou que o Banco Nacional de Cuba criasse um fundo que seria alimentado por depósitos do governo cubano em um valor igual a 25% do valor da compra de açúcar cubano pelos EUA além da cota de açúcar. A Lei, portanto, propôs uma resolução mutuamente benéfica, ligando a compensação por propriedades nacionalizadas ao comércio de açúcar dos EUA-Cuba. Por meio de uma maior compra de açúcar dos EUA e do uso cubano da renda adicional para financiar a compensação e investir no desenvolvimento industrial, a Lei 851 apontou para a transformação da exploração centro-periférica em cooperação Norte-Sul. A proposta cubana, no entanto, tornou-se impraticável pela redução simultânea de compras norte-americanas abaixo da cota de açúcar (anunciada no mesmo dia, 6 de julho) e por sua subsequente política de mudança de regime. No entanto, trinta dias depois, no anúncio da Resolução Conjunta nº 1, Fidel parecia continuar esperançoso de que o governo dos EUA aceitaria a proposta de compensação através da compra dos EUA acima da cota de açúcar.

A Resolução Conjunta nº 1 foi anunciada em 6 de agosto de 1960. A Resolução declarou a compra compulsória de vinte e seis empresas dos EUA, incluindo vinte e uma empresas de açúcar. A resolução explicou o contexto histórico e a necessidade da expropriação de terras açucareiras americanas, observando que “as empresas açucareiras tomaram as melhores terras de nosso país” nas primeiras décadas do século XX, durante uma invasão de “insaciáveis ​​e inescrupulosos” capitalistas estrangeiros que “recuperaram muitas vezes o valor daquilo que investiram”, e observando que “é dever dos povos da América Latina estar inclinados a recuperar suas riquezas nacionais, tomando-a das garras dos monopólios e interesses estrangeiros que impedem o progresso dos povos, promovem a interferência política e infringem a soberania dos povos subdesenvolvidos da América”. De acordo com a Lei de Reforma Agrária de 1959, a terra expropriada foi usada para desenvolver a agricultura estatal; ou foi distribuída gratuitamente aos camponeses que trabalhavam em terras que não possuíam, cada um recebendo um “mínimo vital” de 26,85 hectares, e todos incentivados a formar cooperativas agrícolas voluntárias.

A Resolução Conjunta nº 1 também nacionalizou uma companhia de eletricidade e uma companhia telefônica de propriedade norte-americana, ambas cobrando taxas notoriamente altas, cuja redução havia sido uma demanda popular antes do triunfo da revolução. Além disso, a Resolução Conjunta nacionalizou três refinarias de petróleo, que historicamente haviam estabelecido um preço mais alto para os distribuidores cubanos; e que recentemente se recusou a processar petróleo bruto soviético que havia sido comprado a um preço favorável pelo governo cubano, obrigando o governo a invocar um acordo de 1938 e a refinar o petróleo. Sob propriedade estatal, as tarifas de eletricidade e telefone e os preços da gasolina foram significativamente reduzidos.

A Resolução Conjunta nº 2 de 17 de setembro de 1960 nacionalizou os três bancos dos EUA em Cuba. Historicamente, as políticas de crédito dos bancos dos EUA favoreceram a exportação cubana de matérias-primas e a importação de produtos manufaturados dos EUA, restringindo assim o desenvolvimento industrial cubano. Desde o triunfo da Revolução, os bancos adotaram políticas destinadas a reduzir o comércio entre os EUA e Cuba, apoiando os esforços do governo dos EUA para sufocar a economia cubana.

A Resolução Conjunta nº 3, emitida pelo Governo Revolucionário em 24 de outubro de 1960, autorizou a nacionalização das 166 propriedades remanescentes dos EUA em Cuba. Entre elas, 28 seguradoras, 18 empresas químicas, 18 empresas de mineração, 15 máquinas importadoras, 11 hotéis e bares e 7 empresas metalúrgicas. Essas nacionalizações foram uma resposta à agressividade contínua do governo dos EUA em relação à Revolução Cubana, incluindo a proibição, em 19 de outubro, à exportação de mercadorias dos EUA para Cuba.

O governo de Cuba declarou repetidamente sua disposição de negociar com o governo dos Estados Unidos demandas que possam surgir dos proprietários norte-americanos afetados negativamente pelas nacionalizações. Consistente com essa disposição, o governo de Cuba negociou acordos com cinco nações, resolvendo as demandas de seus cidadãos resultantes das nacionalizações cubanas: França (acordo de 16 de março de 1967); Suíça (2 de março de 1967); Reino Unido (18 de outubro de 1978); Canadá (7 de novembro de 1980); e Espanha (26 de janeiro de 1988).

Na falta de apoio para a cooperação por parte dos EUA, Cuba continuou seu caminho soberano, que incluía a proclamação do caráter socialista de sua revolução; e o desenvolvimento da democracia popular, com organizações de massas, assembleias de massa, assembleias de nomeação de bairros e assembleias do poder popular, alternativas às estruturas da democracia representativa. Os Estados Unidos, enquanto isso, continuaram com sua política de mudança de regime, mantendo uma proibição de transações econômicas, comerciais e financeiras com Cuba. A Lei Helms-Burton de 1996 concede ao governo dos EUA o direito de continuar com medidas econômicas coercitivas até que Cuba substitua suas estruturas de democracia popular por aquelas da democracia representativa.

O conflito Cuba-EUA continua sem solução porque o conflito global Norte-Sul, ao qual pertence, também permanece sem solução. As potências mundiais neocoloniais ignoraram a adoção pela Assembleia Geral da ONU da Nova Ordem Econômica Internacional. Movendo-se na direção oposta, impuseram políticas econômicas neoliberais às neocolonias do mundo; e, posteriormente, com a expansão de uma nova forma de terrorismo como pretexto, lançaram guerras de agressão no Oriente Médio.

Assim como a Cuba revolucionária persistiu em seu caminho soberano, os governos do Terceiro Mundo persistiram em sua proposta de uma nova ordem econômica internacional. A persistência do projeto do Terceiro Mundo é evidente na evolução do Movimento dos Não-Alinhados, que cresceu para 120 países-membros hoje. O Movimento foi sequestrado pelos apologistas do neoliberalismo de 1982 a 2006, mas desde 2006, quando Cuba assumiu a presidência pela segunda vez, o Movimento retomou os princípios do período de 1955 a 1982. Ao mesmo tempo, durante os últimos vinte anos a América Latina e o Caribe desenvolveram associações regionais, pondo em prática o chamado de Bandung pela unidade e pela cooperação econômica. Essas associações regionais e os governos progressistas da região vêm desenvolvendo cooperação econômica e alianças políticas com a China, a Rússia, o Vietnã e o Irã, cujos líderes invocam o discurso e o espírito de Bandung.

No contexto da crise estrutural sustentada do sistema mundial e do relativo declínio econômico dos Estados Unidos, as políticas imperialistas norte-americanas em relação à América Latina não são mais viáveis. A política de agressão de Trump para a Venezuela, Cuba e Nicarágua tem ainda menos possibilidades, na medida em que maior militarismo e agressividade econômica aceleram o declínio econômico e comercial dos EUA, e exacerbam as contradições estruturais do sistema mundial. Um sistema mundial baseado na cooperação e no comércio mutuamente benéfico, persistentemente proposto pelos povos neocolonizados, é o caminho necessário para a humanidade.

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