Em face de um iminente julgamento político, Mario Abdo Benítez se viu obrigado a anular um acordo de energia com o Brasil. O acordo, que colocou em risco a soberania energética paraguaia, indignou a opinião pública e levou o presidente para a beira do abismo. Jair Bolsonaro e Donald Trump salvaram o líder da direita paraguaia. A indignação, todavia, ainda permanece.
Mario Abdo Benítez assumiu a Presidência do Paraguai em 15 de agosto de 2018, após ter vencido as eleições de abril daquele ano. Abdo Benítez, da linha tradicionalista do Partido Colorado ou da Associação Nacional Republicana (ANR), tem laços políticos e familiares com a ditadura de Alfredo Stroessner, que, nas mãos das Forças Armadas e do Partido Colorado, se estendeu por 35 anos. Depois de 1989, após a queda da ditadura, o “coloradismo” permaneceu no poder e manteve suas raízes em diferentes camadas da sociedade.
Em 2018, a ANR venceu as eleições pela menor margem em sua história (3,7%). Dias antes, várias pesquisas deram ao partido governista uma vantagem de 31%, com a clara intenção de influenciar o eleitorado em favor do atual presidente. Terminadas as eleições, começaram a vir a público denúncias de falsificação de dados no sistema de contagem do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral (TSJE). A oposição e grande parte dos cidadãos protestaram por conta da possibilidade concreta de fraude eleitoral, algo que não teve grandes consequências na proclamação das autoridades eleitorais. Entretanto, esses fatos subtraíram sua legitimidade desde o início do governo.
Nesse contexto, era essencial que Abdo Benítez tivesse aliados que garantissem uma boa cobertura política. Para isso, ele trabalhou em três direções. Primeiro, o apoio internacional dos Estados Unidos e de seus países alinhados. Nesse sentido, o Paraguai faz parte do Grupo de Lima e foi responsável por ser uma caixa de ressonância contra o governo de Nicolás Maduro na Venezuela. Além disso, foi o primeiro país a romper relações diplomáticas com a Venezuela, na tentativa de agradar o governo americano, e se dedicou a fortalecer seus laços com o Brasil de Jair Bolsonaro. Segundo, Abdo Benítez tentou obter o apoio da classe oligarca e empresarial local, dependente das transnacionais. De fato, o presidente demandava a aprovação desses setores para nomear alguns dos membros de seu gabinete, comprometendo-se a não tomar medidas econômicas que pudessem prejudicá-los. Terceiro, Abdo Benítez queria resolver a crise interna dentro de seu partido. Essa crise derivava da oposição interna liderada por seu antecessor e principal rival político, Horacio Cartes (membro do Movimento Honor Colorado). É aqui que Abdo tem enfrentado mais dificuldades. Bem no início de junho de 2019, os fatos indicavam que haveria uma aproximação entre o atual presidente e o ex-presidente em torno da distribuição de cargos no Congresso Nacional. Contudo, os termos do possível “entendimento” não foram conhecidos com profundidade.
Com esse último passo, parecia que o governo de Abdo Benítez havia superado uma fase de fraqueza inicial. Alguns de seus homens mais próximos disseram: “A chuva, a tempestade passou. Agora o sol nasce, e a prosperidade será trazida para o país”. Não sabiam que a crise real estava chegando e das entranhas do mesmo governo.
Ato secreto e crise política
Em uma quarta-feira, 24 de julho, após a denúncia e renúncia do presidente da Administração Nacional de Eletricidade (ANDE), foi publicado um ato bilateral entre o Brasil e o Paraguai, assinado dois meses antes. O acordo limitou a possibilidade de o Paraguai dispor de blocos de energia para comercializar com indústrias ou grupos empresariais, obrigando o país a pagar cerca de US$ 300 milhões a mais por ano para contratar energia. Tudo foi feito em segredo, com altos funcionários do governo Abdo Benítez. Os técnicos da ANDE foram excluídos das negociações, mas não os da Eletrobras do Brasil.
O tema da energia elétrica – e particularmente o da Usina Hidrelétrica de Itaipu – é delicado para o Paraguai. No decorrer dos anos, tem amadurecido uma ideia de soberania energética paraguaia, historicamente despojada pelo Brasil. O roubo, subjugação e cumplicidade em torno da construção da usina hidrelétrica em 1973 (quando o país vivia a ditadura) eram evidentes. Com o passar do tempo, o desejo de recuperar as perdas de décadas passadas se instalou no imaginário da sociedade.
Em meio a um acúmulo de informações e rumores e ante o risco iminente de um aumento na tarifa elétrica para a população, as ações do governo foram rotuladas como “traição”. A primeira resposta do governo de Abdo Benítez foi a favor dos interesses do Brasil e em defesa do ato assinado, o que aumentou a tensão política e a mobilização popular. Isso causou, em primeira instância, a saída de altos funcionários do Poder Executivo (o chanceler nacional e o embaixador no Brasil).
A reação no âmbito político-partidário se transformou em um possível julgamento político do presidente e do vice-presidente da República. A manifestação pública do Movimento Honor Colorado, a principal força da oposição interna no partido governista, foi crucial para garantir que houvesse votos suficientes no Congresso Nacional para um julgamento de ambos. A partir desse momento, houve um silêncio absoluto na Casa do Governo, e as negociações se estenderam durante a noite e de madrugada.
No dia seguinte, na quinta-feira, 1º de agosto, Mario Abdo Benítez ordenou o cancelamento do ato assinado, com o aval por parte de Jair Bolsonaro. Acrescenta-se a isso a “profunda preocupação” expressa pela embaixada dos EUA pela situação política no país. Eles pediram para tomar “decisões com calma e de forma participativa”, respeitando os processos democráticos. Em um evento público transmitido pela maioria da mídia, Abdo Benítez pediu desculpas e disse que seu erro não foi “má-fé”. No meio da disputa política, foi um ato de humilhação para o presidente, mas que o livraria de ser submetido a um julgamento no Parlamento.
Para o Movimento Honor Colorado, as declarações de Abdo Benítez consertaram os danos causados ao país. Esse foi o argumento para a retirada dos votos de seus membros para um julgamento político. Portanto, agora os votos para processá-lo são insuficientes. O apoio do partido e o apoio internacional bloquearam o julgamento político do governo direitista e conservador de Abdo Benítez. A decisão foi celebrada pelo embaixador dos EUA no Paraguai, que recordou: “somos aliados”.
O ambiente político ainda está sob tensão. Parte da oposição insiste no julgamento político, mesmo que não atinja os votos necessários. As mobilizações e a indignação dos cidadãos continuam. E o descrédito em relação à classe política e, principalmente, ao Partido Colorado é evidente. Agora, um novo cenário de recomposição das forças coloradas se abre, baseado temporariamente no resgate da figura presidencial.
A necessidade da ARN de recuperar algum grau de legitimidade pode levar a uma política hostil de submissão e repressão contra os setores populares. Um novo cenário se abre no país, com muitas incertezas.
Por enquanto, parece que uma lição está se tornando clara: o julgamento político é uma ferramenta utilizada para remover governos não alinhados com interesses hegemônicos e não será empregado contra governos de direita aliados ao poder dos EUA na região.
* Abel Irala é formado em Serviço Social pela Universidade Nacional de Assunção.
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