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Bolsonaro, Anhangá e Kurupis

Com o Bolsonaro Messias sumido, os generais não suspiram; eles sorriem. E Anhangá não nos livrará desses gorilas: eles são Kurupi.

por Pedro Marin | Revista Opera
O presidente Jair Bolsonaro, participa da Solenidade de Sanção do Projeto de Lei de Conversão 21/2019 (MP da Liberdade Econômica) (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)
Li há pouco, no blog do Juca Kfouri, a crônica “O triste fim de Messias Bolsonaro”, escrita por José Eduardo Agualusa para o “Visão”, de Portugal.
 
Particularmente, sou um defensor da crônica. Aprendi a apreciá-la entendendo que as corretenzas que vêm do meio do mundo, quando desaguam na América Latina, fazem do absurdo, cotidiano, do impossível, crível, e do temeroso, mundano. Medi-las por meios convencionais é medi-las errado. Vejamos: uma caravela sai do porto, procurando as Índias, e acaba em e com Pindorama. Os navios vão mais longe, e voltam abarrotados, inaugurando em toda Europa a profissão eclesial de medidor de almas – que debatem se é a epiderme vermelha ou a preta que as espantam.
 

Mais tarde, bem mais tarde, raiou a liberdade: primeiro numa lei que não permitia mais abarrotar barcos, já que o Brasil, a esta altura, já estava abarrotado. Depois veio a Lei do Ventre-Livre, que de livre mesmo só livrou os donos de escravos da obrigação de alimentar os filhos de suas posses, liberando dos cofres do Brasil volumosas indenizações – para os donos, não para as posses ou os filhos-de-posses. Mais tarde ainda veio a dos Sexagenários, uma espécie de Reforma da Previdência da escravidão, que agora livrava os senhores da terra – e os senhores dos condenados dela – de qualquer tipo de encargo sobre aquela carne que, a despeito de todas as previsões, conseguiu sobreviver a 60 anos de chibata. A Lei Áurea por fim nasceu em 1888, para terminar a transição que tirou os corpos negros – roubados da África – do centro do mercado colonial, fixando em seu lugar – roubada dos índios – a terra, concedida originalmente a doze felizardos e repartida em 15 pedaços.

Não é um conto absurdo e ficcional, é a história, real e fatual. Daí o porquê dos métodos testados, provados e aprovados, aqui terem pouco valor. A lei da impenetrabilidade é logo descartada pela fotografia de uma cela que mostra, com clareza, que dois corpos podem sim ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. A arquitetura das favelas desmente os cálculos do engenheiro europeu. E o princípio antropofágico dos gênios modernistas vive em cada uma das centenas de milhares de barrigas esfomeadas, onde uma lombriga come a outra, roubando-lhe, na morte, a vitalidade. Portanto, viva a crônica! Viva García Márquez, que aprendeu a fazer magia do real. Viva Paco Urondo, que na busca de poemas justos trocou a caneta pelo fuzil. E viva Rodolfo Walsh, que por via de um conto sobre um jornalista inventado e um general irreal, revelou a verdade impublicável em formato reportagem: Walsh, em 1961, de fato havia entrevistado um certo general de sobrenome alemão que participou de uma operação que sequestrou o corpo embalsamado d’Essa mulher chamada Eva Perón.

Isso tudo para dizer que meu problema com a crônica de Agualusa, publicada no “Visão”, não é o fato de ser crônica – e portanto ao menos um tanto ficcional – mas sim o fato de, nela, a verdade disfarçada no real ser escondida pela ficção. A caneta, apesar de afiada na escrita, serviu como obsidiana; a tinta no papel foi feita um feitiço.
A crônica de Agualusa descreve o presidente Jair Bolsonaro. Ele está fechado em um armário – isso, eu aposto, é real. Ele sonha com um veado de olhos flamejantes. Depois, o veado vira um índio, que se apresenta, por fim: é Anhangá (Ahiag̃), o espírito dos tupis e dos mangués que protege os animais de caçadores vorazes e injustos. Anhangá agora vira uma onça, que avança contra o presidente, o amarra magicamente, e o leva para o meio da floresta em chamas. O presidente desaparece. O armário, vazio, cheira a onça.

Embora incrível, tudo isso é factível. Nas palavras de Agualusa, gays, artistas, escritores, pobres, favelados, políticos, a primeira-dama, cientistas, animais e índios; todos respondem ao desaparecimento do presidente com um aliviado suspiro. E aqui chegamos no que não é factível: é que o cronista angolano diz que os generais também suspiraram, repousando. Cá no Brasil, real ou ficcional, este trecho estaria subjugado pela dureza do real, que se repetiu em 1889, em 1891, em 1937, em 1945 e em 1964: com o Messias sumido, os generais não suspiram; eles sorriem. E Anhangá não nos livrará desses gorilas: eles são Kurupi. Com tais criaturas habitando a floresta densa e emanando o caos, nenhum de nós poderá suspirar tranquilamente, a não ser, talvez, pela última vez.

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