A República é dividida em três partes. O Congresso, que formula e aprova leis, é eleito por voto popular, e repartido em duas casas: Senado e Câmara. O Judiciário, com lideranças apontadas por representantes eleitos, tem como instância máxima o Supremo Tribunal Federal. E, por fim, há o Executivo, também eleito por vontade popular, e onde reside o maior poder.
Ocorre, no entanto, que ao mesmo tempo em que subiu ao posto máximo do Executivo um homem politicamente fraco e inábil em virtú, duas outras facções, antes inexistentes ou adormecidas, também passavam a disputar poder, acossando a fórmula republicana original. Fraco, foi justamente nestas duas facções, de poder ou influência crescente, que o Presidente buscou apoio. Essas facções, esses partidos, são os da Lava Jato e o Fardado.
Em 2018, uma pesquisa dava conta da popularidade das instituições. 67% não confiavam no Congresso. 64% não confiavam na “Presidência”. A maior confiança de todas era frente às Forças Armadas, que ostentavam índice de confiança em 78%, enquanto só 20% não confiavam nas armas. O Supremo contava com a confiança de 57%. Enquanto isso, a Lava Jato, sem dúvidas, surfava em grande popularidade. Em abril deste ano, era de 61%.
Nesta quinta-feira (7), o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 6 votos a 5, por barrar as prisões após a segunda instância, insistindo na fórmula constitucional segundo a qual a prisão só é legal quando estiverem esgotados os recursos. A medida poderá beneficiar 5 mil pessoas atualmente presas, dentre elas, o ex-presidente Lula, e prova que, de 11 ministros, 6 sabem ler.
Foi um golpe duro na Lava Jato, que já há alguns meses sangrava com as pauladas tomadas de todo lado. É ela a grande perdedora, que deve se recolher da disputa. Seus procuradores declararam logo que a decisão do STF “está em dissonância com o sentimento de repúdio à impunidade e com o combate à corrupção, prioridades do país”. Lágrimas.
Os ganhos, por outro lado, foram de muitos. Primeiro, naturalmente, de Lula e dos 5 mil – ainda um número ínfimo, considerando que 40% da massa carcerária do país (cerca de 800 mil) não têm condenação, a despeito de estarem enjaulados.
Segundo, ironicamente, de Jair Bolsonaro. Acuado por um sem-número de fantasmas passados, na mira inclusive da Globo, e rachando com o próprio partido, o presidente agora tem ao que recorrer: ao tensionamento, que sempre lhe foi necessário para garantir algum apoio. Balançando Lula como um pêndulo em praça pública, poderá gritar sobre perigos, revoluções, corrupção, e o que mais sua língua grande for capaz. Afinal, já passada as eleições, Lula não é um perigo eminente a curto prazo; é um presente capaz de desviar atenções, tensionar, escalar delírios de poder irrestrito (e quantos delírios no passado não se tornaram fatos?) e ser usado como moeda de troca. Tudo em contos sobre revoluções, revoltas, impunidade, corrupção. Tensão.
Aos otimistas e esperançosos, cabe recordar que pouco mudou: quem mandou soltar o homem é quem, no passado, garantiu sua prisão, e, se muito esforço foi necessário para Lula sair da prisão, é certo que pouco é necessário para levá-lo de volta. A longo prazo, o perigo pode ser neutralizado. Isso, é claro, para falar em vias “legais”. É justo recordar daquele princípio que sempre repetimos por aqui: não se comemoram vitórias que não foram arrancadas por força própria.
Terceiro, a decisão beneficia todos os outros contendedores. Com a Lava Jato oficialmente nas cordas, a briga agora é de gente grande. O STF, por ora, se assegura. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, tem benefício duplo: além de um adversário a menos, uns tantos passarão a recorrer ao Congresso para fazer valer sua influência, no presente e no futuro. Até mesmo a Lava Jato: “Perdeu-se hoje quase toda a esperança em ver a impunidade dos poderosos derrotada. Precisamos erguer a cabeça e lutar no Congresso pela mudança da Constituição Federal”, declarou o promotor de Justiça de São Paulo Roberto Livianu, da ONG “Não Aceito Corrupção”. Moro, por sua vez: “O Congresso pode, de todo modo, alterar a Constituição ou a lei para permitir novamente a execução em segunda instância, como, aliás, foi reconhecido no voto do próprio Ministro Dias Toffoli.”
O maior beneficiado, no entanto, segue sendo o Partido Fardado. É que, com o outro adversário dentro do governo enfraquecido – a Lava Jato – é natural que sua influência cresça. Afinal, lembremos, foi nesses dois partidos que o presidente procurou sua força. Se o necessário for tensionar, nada melhor do que militares desbocados. Se for “moderar” o presidente e “garantir a institucionalidade”, a tarefa também recai sobre eles. E se, por fim, a força for necessária, são eles seus senhores. Força de influência, força moderadora, força real: o benefício dos coturnos é triplo. Talvez seja isso que grite o relativo silêncio dos militares. Uma vitória mais na longa estrada das aproximações sucessivas.