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Direitos humanos: Quando a Coreia do Norte fala

Autorreferenciada e incrédula: a percepção no Ocidente sobre a Coreia do Norte lembra aquela dos colonos sobre os indígenas americanos.
por Betsy Yoon | Zoom in Korea – Tradução de Gabriel Deslandes para a Revista Opera
(Foto: Roman Harak)

Em sua análise sobre a Guerra do Rei Filipe, Jill Lepore identifica a guerra como “uma disputa de injúrias e interpretação”. Desse modo, ela se concentra em como a narrativa sobre a Guerra do Rei Filipe afetou o próprio conflito militar enquanto ele estava acontecendo e depois determinou como ele seria posteriormente lembrado. Antes de apresentar sua análise histórica, Lepore pergunta: “Se a guerra é, pelo menos em parte, uma disputa de significado, ela pode ser considerada uma luta justa quando apenas um lado tem acesso a esses instrumentos imperiais perfeitos, canetas, papel e prensas de impressão?”.

Os colonos do século XVII produziam cartas, diários e crônicas da guerra, enquanto os índios americanos deixaram pouco registro escrito para trás – esse desequilíbrio moldou o entendimento subsequente da guerra como uma luta entre selvageria e civilização. Hoje, esses instrumentos imperiais perfeitos incluem a mídia de massa, que, na batalha por significado, tem um alcance que excede em muito o dos colonos americanos e que determina esmagadoramente a narrativa sobre a Coreia do Norte.

O que (pensamos) saber sobre a Coreia do Norte?

Há muitas observações sobre a Coreia do Norte que são consideradas factuais. Duas das mais comuns são a crença de que a Coreia do Norte não é uma negociadora de boa-fé (então, por que se preocupar em negociar?) e de que o país não distribui adequadamente a ajuda alimentar que recebe (novamente, por que se preocupar?).

A primeira delas se baseia na crença de que a Coreia do Norte conduziu “uma sequência interminável de negociações de má-fé”, a começar com o “Agreed Framework” (sobre a questão nuclear) de 1994. Em geral, a base dessa suposição não é questionada pela narrativa dominante – entretanto, estudiosos de Coreia do Norte divergem um pouco sobre tal narrativa. Por exemplo, ao examinar as negociações anteriores entre os dois países, Leon Sigal escreveu que “as táticas de barganha de Pyongyang levaram muitos a concluírem que a Coreia do Norte estava chantageando na tentativa de extorquir ajuda econômica sem abrir mão de nada em troca. Não é assim. A estratégia da Coreia do Norte era difícil, cooperando quando os EUA cooperavam, retaliando quando os EUA a renegavam, em um esforço para acabar com a inimizade”. O fracasso da Coreia em cumprir certos compromissos (geralmente em resposta à renúncia dos EUA a algum compromisso) é tudo o que é lembrado, enquanto a visível demolição, por parte da Coreia, da torre de resfriamento de Nyeongbyeon, principal reator atômico do Centro de Pesquisa Científica Nuclear de Nyeongbyeon – um gesto de boa-fé – é amplamente esquecida.

A segunda suposição sobre o desvio da ajuda alimentar não só reforça a primeira suposição de que a Coreia do Norte age de má-fé, mas também leva ao questionamento, em primeiro lugar, sobre se é humanitário fornecer ajuda alimentar país. A lógica é que, se a comida está indo apenas para as elites, a própria ajuda alimentar contribuiria para fortalecer o regime (o que às vezes não é dito nesse argumento é a suposição de que não fornecer ajuda alimentar apressará o colapso do regime norte-coreano. Esse argumento pode ser examinado em artigos posteriores, mas basta lembrar o quanto o Iraque sofreu consideravelmente desde sua libertação). Aqueles que usam esse argumento exploram a narrativa dominante sobre a Coreia do Norte e, portanto, não precisam apresentar fatos – a afirmação em si é considerada factual.

Entretanto, essa suposição não corresponde às experiências daqueles que trabalharam localmente no fornecimento de ajuda alimentar na Coreia do Norte. Por exemplo, Sanghyuk Shin e Ricky Choi escreveram em um artigo para Critical Asian Studies que “a afirmação de que a ajuda internacional é distribuída com base na classificação social também contraria os relatórios de profissionais humanitários que atuam no local”. Há muitas declarações oficiais, mas, para aqueles que estão mais curiosos sobre o lado humano desse debate, Erich Weingartner escreveu uma excelente série de três artigos sobre sua experiência no monitoramento da ajuda alimentar na Coreia do Norte para uma unidade do Programa Alimentar Mundial da ONU.

Essas duas suposições compõem um terreno factual bem instável, sobre o qual se baseiam todas as suposições sobre a Coreia do Norte, e a única conclusão a ser alcançada a partir delas é que aparentemente o país não é confiável, e o que quer que seja dito pelos norte-coreanos carece de legitimidade. Isso se deve em parte à crença – descrita por Christine Hong – de que a Coreia do Norte representa “uma desumanidade e atrocidade tão completa e consumada, tão totalitária que esses atributos desafiam a análise probatória”. Em outras palavras, a falta de comprovação é tão condenatória quanto a comprovação real. Nesse ambiente, as acusações dirigidas ao país assumem o manto da verdade, enquanto a Coreia do Norte, ao negar ou ignorar tais acusações, não pode ser outra coisa senão culpada.

Por que o relatório da COI não pode falar pela Coreia do Norte

Contudo, mesmo se vivêssemos em um mundo em preto e branco, no qual a Coreia do Norte é o vilão por excelência (descrito pelo relatório da Comissão de Inquérito das Nações Unidas como “um Estado que não tem paralelo no mundo contemporâneo”), essa percepção deve ser, pelo menos, baseada em evidências factuais. Com as discussões sobre invasão e colapso do regime, há uma linha reta entre o uso indevido dos fatos e a perda humana generalizada. Como disse anteriormente, já vimos isso acontecer antes, mais recentemente e de forma memorável no Iraque.

E, todavia, a despeito dos riscos envolvidos, o relatório da Comissão de Inquérito da ONU (COI) sobre direitos humanos na Coreia do Norte foi reportado como se fosse um documento de fonte primária, em vez de um relatório cujo próprio padrão de verificação foi identificado como “inferior ao exigido nos procedimentos criminais para sustentar uma acusação”. De fato, o relatório em si não reivindica infalibilidade e, de fato, Hazel Smith observou que “o que é mais impressionante nos relatórios do ACNUR sobre a RPDC é a quase completa ausência de referências a dados relevantes de outras agências da ONU, governos doadores e organizações não governamentais (ONGs), na medida em que os relatórios do Alto Comissariado parecem desconhecer a existência de documentos sobre a RPDC de dentro do próprio sistema da ONU”. Ela observa que, em vez disso, os investigadores usaram apenas um documento de outra agência da ONU e que a forma como ele foi utilizado no relatório da COI “distorce as conclusões do documento original e engana o leitor”.

Além de não fazer pleno uso dos dados disponíveis sobre a Coreia do Norte, o relatório incorpora matérias jornalísticas sobre as condições de vida no país como se estas fossem fontes primárias. Isso cria uma reação cíclica em que a cobertura noticiosa sobre uma suposta conduta criminosa da Coreia do Norte é citada pelo relatório como fatos confirmados, os quais, por sua vez, são reproduzidos por novas matérias jornalísticas. A narrativa se tornou autorreferenciada. Em um caso notável, um artigo do New York Times se centrou inteiramente na afirmação da COI de que Kim Jong-un gastou 645,8 milhões de dólares em bens de luxo. O artigo faz recomendações políticas concretas com base nessa descoberta. Como o New York Times estava usando a chamada fonte oficial e como a descoberta é coerente com a visão comum de que os líderes norte-coreanos gastam dinheiro em itens de luxo enquanto seu povo passa fome, essa cifra agora tem legitimidade factual. Porém, conforme demonstrado no início do artigo, visões comumente compartilhadas não são procurações da verdade e, portanto, essa alegação é digna de uma investigação mais aprofundada.

A cifra de 645,8 milhões de dólares, presente nesse relatório, não foi calculada pelos investigadores – na verdade, o número vem de um artigo do Telegraph que cita como fonte “um documento enviado ao Parlamento sul-coreano”. Devemos agora questionar o Telegraph por citar de forma indubitável um documento sobre o qual não sabemos nada de um país que permanece em guerra com a Coreia do Norte.

Um repórter do OhmyNews, um site de notícias online que publica “reportagens de cidadãos”, também achou que esse fato era originário da Coreia do Sul e decidiu investigar mais. Ele entrou em contato com o gabinete de Yoon Sang-Hyun, o membro do Parlamento que apresentou o documento. Acontece que o gabinete de Yoon, por sua vez, recorria a um informe alfandegário chinês, que nem sequer continha uma categoria para itens de luxo. Quando o repórter apontou que era problemático, em primeiro lugar, identificar essas importações como itens de luxo e afirmar depois que elas eram destinadas especificamente a Kim Jong-un, o representante de Yoon respondeu: “Você pode ver dessa maneira, mas é um fato que a Coreia do Norte importa muitos itens de luxo”. Em outras palavras, já que a Coreia do Norte importa itens de luxo, a verificabilidade desses dados em particular não é importante. Em suma, não só a COI não incluiu dados relevantes, mas as fontes utilizadas não tiveram sua precisão avaliada. E, de fato, os artigos noticiosos não estão incluídos na lista de fontes que a comissão considerou como informações de primeira mão. Dado que a maior parte das descobertas dos relatórios se baseia em testemunhos verbais, deveria ser considerado importante tratar as informações verificáveis ​​com algum rigor (a análise detalhada de Hazel Smith sobre a metodologia da COI pode ser encontrada aqui.)

Esse é outro exemplo de como a percepção da Coreia do Norte pode moldar a narrativa – apesar do fato de que, ao menos nesse caso, havia uma maneira de checar as informações citadas, é frequentemente tido como verdade que nada sobre a Coreia do Norte é passível de ser verificado. Nesse tipo de contexto, as fontes, portanto, assumem uma credibilidade que não teriam em outros casos. Esse exercício específico é apresentado não como prova de que absolutamente todo o relatório da COI se baseia em dados incorretos e, portanto, deve ser descartado, mas como um lembrete de que as descobertas presentes no relatório não podem, por si só, servir de estímulo à ação, e que jornalistas deveriam utilizá-lo com responsabilidade.

A Coreia do Norte fala

É nesse contexto que Botsuana, Austrália e Panamá organizaram uma sessão da ONU sobre direitos humanos na Coreia do Norte, realizada em 22 de outubro de 2014. Benny Avni, da Newsweek, cobriu a sessão em um artigo intitulado “Diplomatas da Coreia do Norte são repreendidos na ONU”. A questão dos direitos humanos norte-coreanos se tornou cada vez mais importante, e essas narrativas servem para reforçar crenças comuns. Nesse sentido, as notícias sobre a Coreia do Norte se tornaram menos jornalismo e mais as cartas dos colonos ingleses, que procuravam caracterizar os índios algonquinos como um Outro claramente definido. Isso não quer dizer que os colonos ingleses ou Benny Avni tentem traçar esses limites com más intenções. Ao contrário, tal qual a mudança na percepção dos colonos sobre os algonquinos de compaixão para desprezo não foi um projeto consciente, mas parte de uma narrativa coletiva emergente que começou a moldar a própria guerra, Avni está simplesmente (e preguiçosamente) explorando o atual consenso cultural sobre a Coreia do Norte.

Seu artigo (e as suposições mais amplas em que se baseia) é problemático de várias maneiras. Deixando de lado o fato de que a expressão “ser repreendido” evoca a ideia de um adulto dando um sermão a uma criança que se comporta mal (a Coreia do Norte costuma ser caracterizada como ou esmagadoramente maligna ou infantil), o título em si não reflete com precisão o conteúdo real do artigo.

O foco do artigo muda rapidamente da descrição de ouvintes passivos de uma lição de moral para a observação das maneiras pelas quais os diplomatas não só reagiram a esse sermão, que é aquilo que Avni parecia considerar mais interessante (ou “incomum”). Para esclarecer a natureza extraordinária dessa sessão, ele primeiro evoca a expressão orientalista “reino eremita” para descrever a Coreia do Norte e depois caracteriza as respostas dos delegados norte-coreanos como “ataques verbais”. Isso identifica os delegados como representantes de um lugar misterioso e com um comportamento desviante da norma. Estabelece-se uma sensação de estranheza. Porém, o parágrafo seguinte descreve a resposta norte-coreana como “longa” e “formal” e os delegados norte-coreanos como “pacientes” – nenhuma dessas classificações parece se encaixar na descrição de “ataques verbais”. Há uma clara diferença na forma como Avni remete a velhas suposições (“ataques verbais”) e a descrições reais (“longas”, “formais”). Então, com alguma surpresa, ele comenta o “inglês fluente e claro” dos delegados, o que me leva a pensar se o inglês claro entre diplomatas estrangeiros é algo tão raro a ponto de ser digno de nota por uma grande agência de notícias. Ou seria porque se supõe que a Coreia do Norte seja tão diferente de todas as outras nações que é notável quando diplomatas – cujo trabalho é interagir com países estrangeiros – podem falar um dos seis idiomas oficiais da ONU?

Em seguida, Avni fica um tempo frente a frente com um dos diplomatas, Cho Yong-Nam. Ele descreve a conversa sem muitos comentários estranhos, mas não pôde deixar de concluir esse artigo com um comentário sobre sua impressão, ao dizer que Cho estava “tão animado quanto um homem usando um broche com o rosto sorridente de seu líder, Kim Jong-un, em uma jaqueta de lapela”. Na mente de Avni, o broche simboliza um peso ideológico tão opressivo e profundo que seu portador é incapaz de expressar todas as formas de emoções humanas, se é que as tem. Se os norte-coreanos não podem ser distinguidos do resto do mundo por meio da linguagem, é necessário encontrar outras maneiras pelas quais eles possam ser definidos como diferentes de “nós”, e despi-los de qualquer humanidade faz parte de uma tendência generalizada.

Novamente, isso não quer dizer que aqueles que escrevem sobre a Coreia do Norte dessa maneira tentem intencionalmente demonizar os norte-coreanos e desumanizá-los com a agenda explícita de tornar uma ação militar mais palatável para o público em geral. Em vez disso, esses impulsos vêm de uma necessidade subconsciente de identificar diferenças, bem como do desejo de satisfazer o fascínio coletivo pelo espetáculo que é a Coreia do Norte.

A disputa contínua de significado

Por fim, não está claro se Avni considerou sua mera participação surpreendente e “extraordinária” ou se ficou surpreso ao constatar que os norte-coreanos eram pacientes e falavam inglês fluentemente. Talvez se presuma que os diplomatas memorizem discursos ensaiados e sejam realmente incapazes de manter uma conversa fluente.

De qualquer forma, essa não foi a única incursão da RPDC no debate sobre direitos humanos. Antes disso, a Coreia do Norte publicou seu próprio relatório sobre a história e o estado atual dos direitos humanos no país. A Coreia do Norte também buscou ser incluída em uma reunião ministerial da Assembleia Geral da ONU sobre os direitos humanos no país, organizada por John Kerry (seu pedido foi negado). Isso levanta a questão: por que a Coreia do Norte se preocupa com isso? Por que os norte-coreanos queriam ser incluídos na reunião ministerial de Kerry? Por que se preocuparam em publicar um relatório oficial sobre direitos humanos e em participar e falar nessa sessão da ONU? Com um discurso geral tão arraigado contra os norte-coreanos e com suas declarações sendo tratadas como uma propaganda sem sentido, a Coreia do Norte não pode, por conta própria, modificar essa narrativa.

Acredito que o país continua a participar da discussão sobre direitos humanos porque entende a visão de Lepore sobre a guerra: “feridas e palavras – os ferimentos e sua interpretação – não podem ser separados”. A forma como a história é contada faz parte de como a guerra se desenrola e como ela será lembrada mais tarde. Esse relatório e a participação da Coreia do Norte na sessão da ONU são apenas os mais recentes do país na sua determinação em não deixar a narrativa dominante sem contestação – não por orgulho tolo e equivocado, mas pela dignidade humana e pelo desejo de se autorrepresentar nessa disputa contínua de significado.

Artigos e suposições, como o texto da Newsweek, apenas impedem o desenvolvimento de um diálogo genuíno entre a Coreia do Norte e o mundo, o que dificulta qualquer progresso real em direção à melhoria dos direitos humanos. Experiências passadas (no final do governo Clinton e no final do governo Bush) nos mostraram que a Coreia do Norte pode e irá se engajar em diálogos e negociações. Se continuarmos a propagar a crença de que o país não está mais qualificado para falar, o único recurso racional será a força militar. Jill Lepore observou que os colonos viam os índios algonquinos como conhecedores somente da linguagem da violência – justificando assim o uso que os colonos faziam de uma violência brutal. A Coreia do Norte pode falar outros idiomas além da violência e está habitada por seres humanos que não são tão diferentes de nós quanto gostaríamos de acreditar. Não vamos esquecer isso enquanto discutimos soluções para os direitos humanos.

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* Betsy Yoon é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia e é membro da Nodutdol for Korean Community Development. Ela coorganiza o programa anual de exposição e educação de Nodutdol e liderou duas delegações de coreanos americanos para a Coreia do Norte.

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