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A cadeia de eventos que consumaram o golpe na Bolívia

No caso da Bolívia, a variante policial e militar confere um caráter distintivo à mudança de regime.

Do Misión Verdad | Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
(Foto: Theodore Scott)

O ressurgimento da violência criminal contra os seguidores do MAS e o pedido de renúncia do Alto Comando das Forças Armadas foram os pontos de ruptura (e coerção aberta) que cristalizaram a renúncia forçada do presidente Evo Morales em 10 de novembro.

O fator dos motins policiais

O papel desempenhado por esse manobra dentro das agências policiais na viabilidade do golpe tem sido fundamental.

Seu efeito em cadeia incluiu unidades policiais que iam de Tarija, Santa Cruz, Cochabamba, Oruro até La Paz, agravando o clima de confronto, à medida que somavam-se abertamente ao golpe e ampliando com eles as ações de sabotagem, violência criminal e perseguição, cumprida pelos grupos de choque ligados à oposição boliviana.

De fato, essa ação constituiu uma supressão das capacidades de defesa e ordem pública do governo de Evo Morales. A capacidade de reverter, através de mecanismos de força, um ciclo ascendente de violência, que na época dos tumultos tinha características armadas óbvias, foi desativada. E o pedido de demissão do comandante geral da polícia, Yuri Calderón, que horas antes tentara conter os tumultos, foi sem dúvida um fato decisivo.

Desenvolvendo sem qualquer obstáculo, agora o objetivo estratégico do golpe (cercar e tomar La Paz, depois o palácio presidencial, e finalmente capturar Evo Morales) poderia ser realizado sem que os militantes, oficiais e apoiadores do MAS, encurralados em La Paz, pudessem ter proteção policial adequada.

Com o caminho livre, as violentas multidões de Camacho tiveram a impunidade (da polícia) e o consentimento (da mídia) de que precisavam tanto para passar a uma ofensiva armada definitiva.

O acúmulo de motins policiais nos departamentos acima mencionados transferiu toda a carga para La Paz, conseguindo retirar as unidades policiais perto do Palácio Quemado, e forçando o presidente Evo Morales a abandonar sua residência para resguardar sua vida.

Esse golpe de efeito foi simbólico, mas também material: o principal símbolo de poder do governo boliviano estava à mercê da tomada “épica” dos conspiradores, enquanto a população de La Paz e os líderes do Estado estavam sitiados, bem como suas casas e familiares, com o objetivo de consolidar um estado de sítio e terror.

Uma onda de renúncias forçadas pela força; corromper as bases de Evo

Enquanto o linchamento político generalizado contra o masismo avançou, a onda de demissões de altos cargos do governo boliviano também ocorria. O ataque às casas dos funcionários e o seqüestro de seus parentes fizeram com que as renúncias forçadas chegassem a mais de 20 representantes do governo de Evo Morales.

Esses atos, minando a superestrutura, também tiveram seu reflexo dentro das bases de massas: o secretário-geral da Central Boliviana dos Trabalhadores (COB), Juan Carlos Huarachi, solicitou em entrevista coletiva a renúncia de Evo Morales.

Embora a cidade de El Alto tenha se levantado cedo em defesa de Evo Morales, seu impacto político não foi suficiente para reverter a definição do golpe em La Paz.

Nesse sentido, a deserção da alta liderança da COB desempenhou um papel importante no enfraquecimento do clima contra-ofensivo que não só estava armado de El Alto, mas que teria seu clímax na chegada das caravanas dos movimentos sociais que apoiavam Evo em La Paz.

Ambas as situações precipitaram a escalada violenta das últimas horas em La Paz, Oruro, Potosí e outros lugares onde residiam altos funcionários que, até então, mantinham a estabilidade do governo Evo na frente institucional.

A mudança de regime teve que ser formalizada rapidamente, de forma que impedisse que a resistência ao golpe ganhasse força em El Alto e se traduzisse, dias depois, na caravana dos movimentos sociais. Para tanto, a manobra das Forças Armadas autorizou a repressão para conter qualquer opção de contra-golpe.

As Forças Armadas foram o ator definitivo

Já com uma correlação de forças (tanto institucional como de rua) bastante definida, o comandante em chefe das Forças Armadas, Williams Kaliman, deu o giro que faltava: solicitou a renúncia de Evo Morales em nome da instituição militar, em comunicado de apoio aos golpistas, tentando se disfarçar como um posicionamento institucional.

A ordem dos eventos e seu padrão de desenvolvimento delinearam uma escalada muito evidente devido ao seu alto nível de planejamento: mobilizações e greves de “cidadãos” abriram o caminho para o acúmulo armado de grupos violentos; então, o cerco político e institucional chegou a La Paz através de uma orgia de linchamentos que teve o apoio da polícia e que, em poucas horas, cristalizou a fratura na cadeia de comando do governo de Evo Morales.

E aqui é pertinente não esquecer que o combustível que estava faltando no golpe foi fornecido pelo relatório da OEA, tão útil para a agenda de Camacho que parecia ter sido escrito em sua mansão em Santa Cruz.

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Mas o senso de oportunidade das Forças Armadas ficou claro. Esperar a escalada se desenvolver o suficiente para dar o golpe de misericórdia no momento certo, sendo “forçados” a assumir essa posição, tornou visível sua sincronia com todo o mecanismo de mudança de regime.

E é que, além desse ato de coerção, que levou à consumação do golpe, a variante policial e militar confere um caráter distintivo à mudança de regime em sua versão boliviana.

Enquanto a polícia funcionava como braço armado ilegal e retaguarda para os combatentes urbanos de Camacho, as Forças Armadas consolidaram a manobra, ficando de lado enquanto a escalada escapava ao controle. Depois, intervieram publicamente quando já sabiam que as bases de Evo e seu controle sobre a operação do Estado estavam suficientemente comprometidas para tornar irreversível o pedido de demissão.

As implicações, para além do panorama visível

O golpe na Bolívia representa uma versão concentrada de outras operações de mudança de regime nos níveis regional e global. A participação de Luis Almagro, bem como de ONGs financiadas pelos Estados Unidos, como no caso da Human Rights Foundation, revela que o golpe não foi interno, mas conscientemente mobilizado por potências ocidentais estrangeiras.

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A reversão do governo de Evo Morales integrou os novos métodos de perseguição e ódio contra o chavismo na Venezuela em 2014, que foram muito mais sofisticados em 2017, mas não sem antes incorporar o componente de violência armada mercenária e aberta que também foi implantado contra a Nicarágua em 2018. A seu modo, ele também adaptou a variante de comprometimento político e judicial e a “lavagem legal” de uma interrupção forçada do governo após um comprometimento militar, que vimos nas mudanças de regime em Honduras e no Brasil.

A criação de um espaço político de extrema direita e a fabricação de figuras políticas de corte fascista, em cada um desses processos, podem ser consideradas um resultado automático de como os ciclos de violência e perseguição quebram a alma de nossas nações, aniquilam a convivência e ensaiam uma guerra civil em que os golpistas cooptam policiais e militares.

O golpe contra Evo evoluiu de uma revolução colorida instigada por frentes artificiais de ONGs e setores comerciais que usavam greves e protestos paralisantes como seus principais instrumentos. Ele então se transmutou em uma guerra não convencional (por meio de atores armados treinados em táticas de guerrilha, desgaste e sabotagem), para, nos últimos dias, tomar seu corpo final como um ensaio de guerra civil que começa a executar uma espécie de limpeza étnica e política contra as camadas sociais que apoiam Evo Morales.

A peculiaridade política e cultural da Bolívia torna o golpe contra Evo ainda mais catastrófico. Legalmente constituído como um dos poucos estados plurinacionais do mundo (quando a regra permite apenas um Estado para cada nação), o golpe aponta para uma reversão forçada desse estatuto de convivência com o qual os pobres e indígenas bolivianos, pela primeira vez na sua história, tiveram um nome e sobrenome para se orgulhar. O golpe boliviano é outra maneira de dizer reconquista e retorno à escravidão.

O rápido surgimento da figura de Camacho, nesse sentido, não é espontâneo. A liderança empresarial e branca do golpe, originária do fascismo de Santa Cruz, não apenas busca desmantelar no Estado as conquistas e os direitos sociais da população indígena, mas também minar o próprio Estado consagrado na Constituição, consubstanciada em Evo, o primeiro presidente indígena do país.

Visando esse objetivo, a louca perseguição política transformou a sucessão presidencial em um caos, no âmbito de uma guerra civil institucional para construir um governo de transição de caráter ditatorial que faça o trabalho básico: varrer todos os vestígios de apoio a Evo.

O jogo de ruptura e fragmentação do Estado boliviano, visto dessa maneira, não culmina na derrubada de Evo, mas vai além, estabelecendo um cenário de confronto e resistência que os conspiradores buscam usar como desculpa para militarizar indefinidamente o conflito.

Mas outros impactos ainda precisam ser avaliados, como a oxigenação de Luis Almagro como uma figura de mudança de regime no nível regional, e como esses eventos no país andino procuram ser redirecionados para tentar uma nova rodada do golpe, ainda continuado, na Venezuela.

Mas, no que diz respeito à Bolívia, a fragmentação institucional, o secessionismo branco e empresarial e a guerra civil instigada pela polícia e pelas Forças Armadas representam as principais linhas do golpe já consumado.

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