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Oh, Jeremy Corbyn! O giro à esquerda do trabalhismo britânico

O sucesso de Corbyn depende em grande parte de circunstâncias que vão além do trabalho: a atual crise da política e a estagnação do capitalismo britânico.
por Richard Seymour | Nueva Sociedad – Tradução de Gabriel Deslandes para a Revista Opera
(Foto: Chatham House)

A vitória de Jeremy Corbyn em 2015 provocou um giro à esquerda no Partido Trabalhista. Desde então, Corbyn tem conseguido contornar os esforços de parlamentares que sonhavam retomar o controle partidário e atraído novas gerações com um discurso mais combativo. Embora os obstáculos sejam muitos, o corbynismo se tornou um movimento político e cultural com efeitos fora do trabalhismo e desafiou o poder do establishment e da mídia conservadora.

I. O domínio de Jeremy Corbyn (e do corbynismo) dentro do Partido Trabalhista britânico parece inquebrantável. Porém, o que é corbynismo? A restauração do trabalhismo como a ala política do sindicalismo? É um projeto que visa transformar o Partido Trabalhista em uma organização democrática e socialista? É uma social-democracia radicalizada? Há, como alguns desejam, espaço para um “corbynismo azul” que combine políticas de esquerda com outras de corte anti-imigratório e socialmente conservador?[1]

Por quase quatro anos, a esquerda britânica tem lutado para decidir qual é a resposta para essas perguntas. O processo foi obscurecido pela energia destinada à defesa da liderança de Corbyn. No mesmo segundo em que ele mostrou suas aspirações, uma aglomeração variada de apoiadores de Tony Blair, antigo trabalhista de direita, a mídia liberal e tory, acadêmicos hostis, apologistas de Israel e até um estranho grupo de militares empreendeu uma campanha feroz para enfraquecê-lo e derrubá-lo. O fato de ter resistido a toda onda de ataques, um golpe fracassado por parte dos parlamentares trabalhistas e o racha pernicioso – mas enfim decepcionante – promovido por alguns parlamentares do centro-direita do partido diz muito sobre suas condições de liderança. A todo momento, Corbyn confiava serenamente em suas reconhecidas forças, principalmente no intenso apoio de militantes do partido e do movimento sindical.

Por enquanto, Corbyn se sente seguro. A base de filiados do Partido Trabalhista segue sendo muito forte, com mais de meio milhão de membros (540 mil registrados em abril de 2018). Para se aproximar de um número tão alto, é preciso voltar a antes de 1980, quando as seções do partido inflavam sistematicamente seus números de filiados. O Momentum – o grupo de campanha pró-Corbyn – viu seus membros crescerem para 40 mil em 2018. Depois de ter reconstruído seu fluxo de votos em 2017 com uma retomada histórica, o cenário eleitoral trabalhista parece ser relativamente estável, apesar do clima volátil. Sob a liderança de Corbyn e com um programa radical de acordo com os critérios britânicos contemporâneos, o partido se recompôs. É improvável que as políticas incorporadas à mais recente plataforma trabalhista sejam revertidas – educação gratuita, nacionalização dos serviços públicos, fim da austeridade, construção de moradias sociais e um freio no processo de privatização do Serviço Nacional de Saúde – até se Corbyn for destituído.

De acordo com o senso comum, o sucesso deve ser avaliado em função daquilo que é possível. Porém, o corbynismo pôs por terra nossas expectativas ruins (que eram muito baixas). Com a estabilização dos frutos de seus sucessos provisórios, hoje discutimos primeiro qual é o objetivo da reconstrução do trabalhismo.

II. O fenômeno de massa conhecido como corbynismo precipitou em questão de semanas, mais especificamente em apenas 12 agitadas semanas. Pela primeira vez em sua história e contra todo um prognóstico sensível, o Partido Trabalhista britânico estava sob o controle da esquerda radical. Uma esquerda radical que antes quase não existia conquistou a liderança do partido com quase 60% dos votos e relegou a candidata blairista Liz Kendall ao quarto lugar, com escassos 4,5%. Era como se, por um desvio casual do átomo, algo tivesse emergido do vazio. Naquele momento, nenhum observador teria apostado nesse resultado. Nas eleições gerais de maio de 2015, após uma virada moderada para a esquerda, sob a liderança de Ed Miliband, o trabalhismo sofreu uma derrota severa. O establishment do partido considerou então que era necessário um giro mais para a direita. A esquerda não tinha muito apoio organizado, nem dentro do trabalhismo, nem na sociedade como um todo. O movimento sindical estava passando por uma crise geral, na qual ano após ano perdeu filiados e poder de barganha. Quase não havia publicações de esquerda e quase ninguém lia o que havia. Até então, a dinâmica da política britânica havia sido usurpada pela direita nacionalista, cuja ponta de lança era o Partido de Independência do Reino Unido (UKIP). Esses setores haviam imposto uma agenda marcada pelo racismo anti-imigrante, contra o qual os dois principais partidos se sentiam obrigados a ceder. E forçaram o governo conservador a conceder um referendo sobre a continuidade do país como membro da União Europeia, o que resultou no projeto do Brexit, por meio do qual eles esperavam conseguir uma reforma constitucional fundamental.

Entretanto, a visão de Corbyn lhe permitiu ver que havia na política uma crise mais profunda e generalizada. O número de membros dos partidos caía acentuadamente, a participação eleitoral diminuía desde 2001, e o único lugar em que a política parecia viva era nos movimentos de rua. A condução do Partido Trabalhista estava moribunda. Seus líderes haviam adquirido experiência não como políticos, mas como “consultores especiais” e analistas políticos. Muitas das principais figuras da direita trabalhista vieram da Escócia, onde o Partido Trabalhista havia sido varrido pelo Partido Nacional Escocês nas eleições gerais.

Então, explorando a crise da democracia parlamentar e do próprio partido e baseando sua campanha nas técnicas de construção de movimentos, Corbyn procurou imitar o movimento social. O que ele apontou, de fato, é que o futuro do trabalhismo consistia em se converter em movimento social e não em máquina eleitoral. Ele lançou sua campanha em um ato antiausteridade e levou a cabo uma excursão relâmpago de encontros públicos nos quais frequentemente convocava centenas e até milhares de participantes, enquanto seus adversários lutavam para manter uma dúzia de pessoas acordadas em uma pequena sala abarrotada de câmeras da imprensa. Um total de 13 mil voluntários se inscreveram para participar de sua campanha, e cerca de 300 mil membros e apoiadores ingressaram no Partido Trabalhista. Além disso, Corbyn impulsionou as redes online para superar a mídia tradicional, que mostrou um declínio acentuado em termos de leitores e público. Cerca de 57% de seus eleitores se informava por meio de redes sociais. Com determinação, Corbyn obteve o apoio dos sindicatos mais importantes, o Unite e o Unison, e, assim, conseguiu deixar para trás a história desses grupos, que apoiavam quase exclusivamente os candidatos e políticas de viés moderado. Isso lhe permitiu acessar uma maquinaria eleitoral bem aceita e adicionar peso organizacional ao entusiasmo do movimento. A mudança sindical para a esquerda refletia uma crise que vinha se formando há algum tempo. Ao longo dos anos do “Novo Trabalhismo”, os sindicatos foram – na melhor das hipóteses – interlocutores indesejáveis. Suas realizações foram escassas em termos legislativos. Em troca do investimento público, eles toleraram uma série de políticas com as quais discordavam: da privatização do serviço de saúde à Guerra do Iraque; e quando o colapso financeiro global chegou, e o Partido Trabalhista aceitou a austeridade, eles até abriram mão do investimento público.

Sob a liderança supostamente pró-sindical de Miliband, foi realizada uma grande reorganização partidária que reduziu drasticamente o papel dos sindicatos no Partido Trabalhista. Durante esse período, a militância sindical e o número de filiados do sindicato diminuíram. Todavia, como resultado, os membros dessas organizações se voltaram para a esquerda e elegeram uma “equipe incômoda” de líderes sindicais dessa tendência. Em 2015, com a liderança trabalhista em desvantagem e somente Corbyn defendendo a política sindical em questões como gastos públicos e direitos dos trabalhadores, havia uma pressão esmagadora para que os líderes sindicais o apoiassem.

III. Para assumir o controle de uma organização complexa, pluralista e vinculada ao Estado, como o trabalhismo britânico, Corbyn sempre precisaria fazer concessões; Socialista radical, antirracista e anti-imperialista, foi um dos últimos seguidores do trabalhista de esquerda Tony Benn a permanecer no partido. A paixão de Corbyn era a solidariedade internacional, tanto em relação à luta pela liberdade na África do Sul quanto à campanha para prender Augusto Pinochet ou pela libertação palestina. Ele era um homem das ruas e também um membro impecável na Câmara dos Comuns como representante de seu círculo eleitoral. Não parecia propenso a buscar os incentivos para uma carreira tradicional em Westminster, visto que nunca havia ocupado cargos no governo ou executivos. E quando o Parlamento britânico se envolveu em um escândalo sobre os “gastos”, ficou sabendo que os dele eram os mais baixos entre todos os deputados. Era visto como uma pessoa honesta, que falava claramente e não recorria a nenhum dos arranjos habituais de poder.

Porém, a história de sua intransigência é uma verdade parcial. Para conquistar o poder, Corbyn foi forçado a desistir de muitas das políticas que mais ameaçavam o Estado britânico. Entre elas, estava a oposição constante à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), mísseis balísticos intercontinentais (Trident) e a adesão à UE. Foi o preço de continuar a controlar uma instituição como o Partido Trabalhista, cuja lealdade histórica ao Estado britânico tem sido a característica mais coerente (mesmo nos casos em que isso se mostrou tremendamente autodestrutivo, como na oportunidade de sua aliança unionista com os tories durante o referendo pela independência da Escócia comemorada em 2014). Contudo, a ruptura de Corbyn com relação às políticas de austeridade é real, assim como a rejeição da linhagem de seu antecessor, que exaltou o racismo e foi contrário a imigrantes e ao Estado de bem-estar. Isso levou à suposição de que ele não só enfrentaria o establishment político, mas estava totalmente disposto a desafiar o preconceito popular. Ele também continuou a apoiar os direitos dos palestinos e a se opor aos alinhamentos britânicos tradicionais em matéria de política externa.

A maioria dos seguidores de Corbyn no Partido Trabalhista não era socialista comprometida: por um lado, havia ex-membros cansados ​​de serem excluídos da tomada de decisões e de serem tratados como bucha de canhão eleitoral; por outro, novos membros radicalizados pela austeridade, que buscavam uma liderança à esquerda. A princípio, as bases mostraram pouca coerência ideológica. Nas mesmas eleições que proclamaram Corbyn, foi Tom Watson, pertencente ao setor à direita do grupo, que obteve o cargo de vice-líder. Isso significou um impulso para a ala do partido que já estava muito super-representada no Parlamento e na liderança nacional e que se preparava para uma luta destinada a substituir Corbyn. Watson teria um papel decisivo em sequências políticas futuras, quando os deputados – incluindo políticos nomeados para o gabinete-sombra de Corbyn – tentaram persistentemente enfraquecer seu líder. Essa inconsistência relativa da base implicava que o bombardeio inicial contra Corbyn por parte da ala direita do partido e dos meios de comunicação foi recebido como um choque. Sem dúvida, os ataques foram chocantes. Nunca antes o líder da oposição, uma figura importante do ponto de vista constitucional, foi submetido a calúnia tão brutais e enlouquecidas. Várias acusações apresentaram Corbyn como apologista do Hamas, antissemita, “socialista machista” (brocialist), incompetente, defensor do terrorismo republicano irlandês, comunista e espião pago dos checos. Em resumo, um antibritânico excêntrico, que era procurado por sinais de traição em cada tique ou gesto. Foi analisado até o ângulo com que ele se curvava ao cenotáfio durante um ato de comemoração àqueles que caíam na Primeira Guerra Mundial. Nos dois primeiros anos de liderança de Corbyn, isso foi dolorosamente desanimador para a maioria dos membros do partido. Em última análise, foram ataques prematuros e mal executados, que polarizaram os membros contra a ala parlamentar do partido e os empurraram para a esquerda. Porém, eles também causaram uma divisão tática no corbynismo. Os mais militantes cobravam cada vez mais a “exclusão” dos deputados desleais ou mesmo de suas reeleições obrigatórias (antes de cada eleição).[2] Entretanto, Corbyn e John McDonnell – membro do gabinete-sombra – se pronunciaram contra isso, com a ideia de marginalizar os deputados mais beligerantes e assimilar os restantes visando harmonizar a liderança da ala esquerda.

IV. Inicialmente, as novas fileiras recrutadas por Corbyn eram, em grande parte, compostas por ativistas jovens e inexperientes: trabalhadores precarizados e estudantes de grandes metrópoles e cidades universitárias. No entanto, a vitória de Corbyn como líder do partido também atraiu ex-membros trabalhistas, muitos dos quais eram veteranos da esquerda radical. Entre esses dois estratos, havia importantes divisões culturais, que adotaram sua expressão mais aguerrida na luta pela condução do coletivo Momentum.

O coletivo foi lançado em outubro de 2015 por Jon Lansman, diretor da campanha eleitoral de Corbyn. Usando um banco de dados de filiados que manifestaram seu apoio, foi proposto o desenvolvimento de uma organização que promoveria a liderança de Corbyn. Contudo, desde o início havia diferentes visões estratégicas sobre como proceder. Uma forte tendência esquerdista considerou que a tarefa do Momentum era treinar ativistas de esquerda para uma luta entre facções, manter a pressão sobre Corbyn e combater as inevitáveis ​​pressões de direita exercidas pelo Parlamento e pela mídia. Em grande medida, esse era o olhar do antigo Partido Trabalhista marcado pelas derrotas dos anos 1980, bem como dos membros da Aliança pela Liberdade dos Trabalhadores (Alliance for Workers’ Liberty), um grupo trotskista que tinha conseguido se posicionar no órgão diretivo do Momentum. Para a jovem esquerda movimentista, por outro lado, o Momentum devia promover e apoiar movimentos sociais; ele deve usar os princípios de organização horizontal do Occupy para resistir à inércia burocrática do sistema partidário. Por sua parte, Lansman e seus aliados preferiram que o Momentum se concentrasse em apoiar a liderança de Corbyn contra seus inimigos internos, vencer as eleições dentro do partido e expandir o apoio à convenção trabalhista.

Esse enfrentamento cada vez mais feroz atingiu um ponto crítico no segundo semestre de 2016, meses após o fracassado golpe contra Corbyn. Naquela época, a esquerda foi desmoralizada pelo voto do Brexit e a consequente força eleitoral dos conservadores, o que resultou em ferozes lutas internas. Supostamente, a disputa girava em torno de métodos internos de votação. A extrema-esquerda favoreceu um sistema de delegados com líderes eleitos pelos segmentos do partido, o que o beneficiou devido à sua maior capacidade organizacional. Lansman e cia. preferiam um sistema de votação on-line, que favorecia as microcelebridades de esquerda ante os truques da velha guarda. Apesar de ser uma pequena minoria, a extrema-esquerda poderia ter se imposto nessa luta; mas, em vez de construir as alianças ou influências necessárias, afastou potenciais aliados com táticas contraproducentes. Portanto, já estava isolada quando Lansman e seus porta-vozes na mídia disseram à imprensa que o Momentum estava sendo cooptado por trotskistas e exigiram a intervenção de Corbyn. E quando a extrema-esquerda foi finalmente excluída por um golpe, no qual Lansman reescreveu os estatutos sem o menor vislumbre de um processo democrático, tampouco houve alguém para levantar a voz para protestar em seu nome.

Embora tenha sido antidemocrático, isso marcou a natureza do Momentum como um grupo leal a Corbyn e especializado em ativismo on-line, campanhas eleitorais de porta em porta e lobby intrapartidário. Isso permitiu ao grupo, apesar de seu limitado campo de influência, desempenhar um papel construtivo antes da convocação para eleições gerais no ano seguinte.

V. Nos meses anteriores à convocação de eleições antecipadas pela primeira-ministra Theresa May, o corbynismo estava passando por uma crise existencial. Durante o golpe interno de 2016 acima mencionado, a maioria dos membros do partido se reuniu em apoio a um Corbyn ameaçado, que venceu o desafio, lutou, foi eleito líder pela segunda vez com a mesma porcentagem de votos e aumentou ainda mais o número de filiados. Contudo, nos meses seguintes, Corbyn perdeu o rumo, e o Partido Trabalhista ficou para trás nas pesquisas. A votação para sair da UE havia reunificado a direita atrás de uma liderança conservadora pró-Brexit e desorientou Corbyn, que agora optava por cautela política e rodeios.

Tendo feito campanha pela permanência (“Remain”) e considerando que a saída da UE era um projeto de direita que enfraqueceria a esquerda, a liderança trabalhista teve o cuidado de se destacar da campanha contra o Brexit conduzida a partir da Downing Street. Além disso, Corbyn expressou reservas quanto à UE e pediu uma reforma e não uma mera celebração da União. Todavia, em termos de financiamento, perfil e cobertura midiática, é como se Corbyn estivesse falando consigo mesmo. O referendo se tornou uma batalha entre duas alas da direita: os nacionalistas pequeno-burgueses (para os quais a UE representava uma burocracia de esquerda, que impunha regras injustas para as pequenas empresas) e os neoliberais metropolitanos (que viam a adesão à UE como estratégia crucial para o grande capital britânico). Os nacionalistas venceram, em grande parte pela exacerbação do racismo anti-imigrante, e o resultado significou uma enorme pressão dentro da ala parlamentar do Partido Trabalhista, que levou a uma mudança certa na imigração. Em apenas alguns meses, após uma intensa luta dentro da ala parlamentar e do gabinete-sombra, Corbyn – que no decorrer de sua vida havia apoiado migrantes e refugiados – declarou com desconforto que o Partido Trabalhista não era adepto da livre circulação europeia.

Os seguidores de esquerda de Corbyn sofreram aqui uma dupla decepção. Seu líder adotou uma política trabalhista muito tradicional de complacência com o racismo, na esperança de neutralizá-lo eleitoralmente: foi uma estratégia que nunca funcionou. Além disso, ao contrário de sua reputação de se comunicar com clareza, ele agora andava falando com rodeios. Os trabalhistas alegaram que a livre circulação de europeus terminaria quando a Grã-Bretanha deixasse a UE e apresentava isso como um mero aspecto técnico da saída, em vez de algo sujeito a negociações. Tudo indicava que essa ameaça não estava funcionando. O desempenho eleitoral do partido foi ruim. Em duas eleições parciais, ele perdeu um assento naquele que havia sido um reduto trabalhista desde a sua formação em 1983, Copeland, e manteve a duras penas outro que lhe pertencia desde 1950: Stoke Central. O partido obteve maus resultados nas eleições locais e, na disputa pela prefeitura de uma cidade trabalhista e operária como Birmingham – onde o candidato se apoiou no slogan do Brexit “Vamos retomar o controle” –, a vitória foi dos conservadores.

Corbyn trabalhou para definir uma agenda pós-Brexit e seus apoiadores estavam exaustos depois de mais de dois anos de luta com o único objetivo de permanecerem em pé. Alguns de seus ex-seguidores começaram a procurar líderes alternativos. O jornalista socialista Owen Jones considerou que a liderança de Corbyn foi um experimento fracassado e que Corbyn deveria renunciar. Enquanto isso, tentava desviar a atenção do Brexit, exibindo uma linguagem populista de ressentimento em relação aos ricos e à “economia fraudulenta”. Contudo, a essa altura, tratava-se de um discurso com muita pouca adesão. E quando, em 18 de abril de 2017, foram convocadas eleições antecipadas, o Partido Trabalhista ficava até 20 pontos abaixo nas pesquisas. Nos antigos cinturões industriais do Norte e das Terras Médias Ocidentais, onde o partido sofreu uma hemorragia de votos da classe trabalhadora por mais de uma década, a direita unificada pelo Brexit estava se preparando para arrebatar algumas regiões que o trabalhismo conservava desde de antes da guerra: constatava-se assim o “efeito UKIP”. Deputados trabalhistas de direita ficaram encantados, esperando Corbyn perder e ser forçado a deixar seu cargo. Houve quem declarasse abertamente que não o apoiaria: John Woodcock, apesar de ser um candidato trabalhista, pediu às pessoas que não votassem em um partido liderado por Corbyn; e Joan Ryan disse em sua campanha que os trabalhistas não tinham chance de vencer.

Tudo parecia sombrio, como se outra primavera falsa estivesse prestes a terminar para a esquerda britânica. O clima de derrotas e decepções amargas, acumuladas uma após a outra, pairou mais uma vez sobre os trabalhistas. Houve um vislumbre do retorno da fúria impotente, maldade, divisão e agressão mal direcionada da esquerda britânica: o que Spinoza chamou de “paixões tristes” dos derrotados.

VI. E então algo aconteceu. Uma constelação miraculosa e aleatória de fatos, de forças, de desejos e sonhos suprimidos e de atores que, de repente, conseguiram dar expressão a eles. A esquerda tinha algo pelo que lutar, e Corbyn não estava atado pelas limitações de um cargo. Além disso, durante a eleição, ficou claro que Theresa May – que havia sido reverenciada pelos jornalistas conservadores – era uma figura política muito pobre. Ela não sabia dizer “oi” sem um roteiro, e suas aparições públicas eram embaraçosas. O estrategista do Partido Conservador, Lynton Crosby, enviou aos jornais e estações de rádio e televisão um conjunto de rumores ligando Corbyn ao Exército Republicano Irlandês (IRA), e a mídia os regurgitou com entusiasmo. Porém, por alguma razão, o apelo não funcionou como nas eleições anteriores. As normas de comunicação eleitoral estabeleceram que Corbyn deveria receber a mesma quantidade de espaço no ar, que conseguiu atravessar o muro da difamação e melhorar sua popularidade entre os eleitores.

De maneira decisiva, o Partido Trabalhista desenvolveu um programa que foi inicialmente desconsiderado por praticamente toda a imprensa, da mídia conservadora à liberal; mas, embora tenha sido apresentado como uma lista louca de desejos à esquerda, as pesquisas logo provaram que era muito popular. Não deveria ter sido uma surpresa. Pesquisas de opinião sempre evidenciaram a aceitação de políticas como a nacionalização ou a educação gratuita, financiadas com impostos aplicados aos ricos. O trabalhismo demonstrou maior fraqueza no momento de argumentar favoravelmente à intervenção econômica diante de uma sociedade acostumada ao liberalismo. Em parte por conta disso, seus planos de investimento eram muito modestos e se baseavam nas ideias de McDonnell, que pretendia usar bancos públicos para financiar o crescimento em infraestrutura. No entanto, os trabalhistas estavam em uma campanha árdua de esquerda, sem chauvinismos ou demagogia contra imigrantes. Enquanto isso, a avaliação sobre o programa conservador, que havia sido elogiado pela mesma imprensa como algo sério e realista, desmoronou, e o partido foi forçado a recuar em uma série de medidas que ameaçavam piorar a situação dos idosos.

À medida que as eleições se aproximavam, as pesquisas se tornaram caóticas. Algumas começaram a mostrar que os trabalhistas alcançaram quase paridade com os conservadores, enquanto outros deram aos conservadores uma ampla vantagem: mas todos concordaram que os trabalhistas estavam ganhando terreno. Do ponto de vista cultural, Corbyn cruzou um umbral quando apareceu de surpresa em um festival de música realizado em Birkenhead, uma cidade de classe trabalhadora. Era um risco, e sua equipe assumiu que ele poderia ser vaiado e classificado como “outro político qualquer”. Entretanto, enquanto ele discursava, todo o público explodia em algo que soou como um grito de guerra: “Oh, Jeremy Corbyn”, entoaram ao ritmo de “Seven Nation Army”, uma música da banda The White Stripes. Embora parecesse estranho na época, era um entusiasmo espontâneo e massivo por Corbyn.

Para surpresa dos especialistas, do Partido Conservador e da maioria dos próprios parlamentares, a noite do escrutínio mostrou que o Partido Trabalhista alcançou uma recuperação recorde ao aumentar seu fluxo de votos de pouco mais de 30% para 40% no período de dois anos. Ele conseguiu convocar os eleitores que haviam parado de votar, o que ajudou a debilitar o “efeito UKIP”. O processo incluiu grandes vitórias: não só em grupos representativos, mas também em bastiões conservadores ricos como Canterbury e Kensington. As principais figuras trabalhistas sobre as quais o ódio da mídia recaiu, Corbyn e Diane Abbott, conquistaram grandes maiorias. De uma agenda radicalizada e contra a resistência de sua própria direção nacional e de muitos de seus parlamentares, o Partido Trabalhista venceu entre os eleitores pertencentes à população economicamente ativa e só perdeu significativamente entre os aposentados. Com um programa de classe, ele formou uma coalizão entre pobres e precarizados, trabalhadores do setor público e profissionais de classe média. Os conservadores mantiveram um desempenho razoavelmente bom com pouco mais de 40% dos votos, mas perderam a maioria parlamentar. Romperam-se o poder da imprensa sensacionalista de direita, o maquinário de propaganda conservador e o axioma neoliberal segundo o qual “não há alternativa”.

VII. Passados dois anos desde sua primeira eleição, o corbynismo se estabilizou como uma força parlamentar e consolidou seu domínio no Partido Trabalhista. Os órgãos eleitos do partido, especialmente o Comitê Executivo Nacional, foram deixados sob o controle da esquerda. A liderança nacional foi capturada com sucesso pelos aliados de Corbyn, e a nova secretária-geral, Jennie Formby, pertencia à ala esquerda da burocracia do Unite. Apesar de uma tentativa desajeitada de Lansman, que desafiou a designação de Formby ao questionar o crescente peso do Unite, o Momentum adquiriu considerável influência como resultado de sua contribuição ao triunfo eleitoral do Partido Trabalhista.

Tanto na liderança quanto nas bases, o corbynismo continua a mirar massivamente para o prêmio estratégico: conquistar o governo. E os seguidores de Corbyn abrigam esperanças realistas de que a instabilidade dos conservadores os obrigue a convocar eleições antecipadas. Isso implica alguns problemas: significa que, apesar de várias campanhas habilmente conduzidas por membros do Partido Trabalhista, como “Trabalhistas por um Novo Pacto Verde” – um “Novo Pacto Verde” (Green New Deal) em resposta à crise ambiental – o corbynismo não conseguiu alimentar as forças do movimento social, conforme proposto. A atividade dos filiados se concentrou mais na busca de democratização interna, uma promessa essencial da campanha de liderança de Corbyn. Contudo, dificultado pelos sindicatos e parlamentares trabalhistas, que em ambos os casos resistem a abrir mão de muito poder para as bases, o progresso tem sido lento. Na última convenção trabalhista, a principal disputa entre os membros dos círculos eleitorais e os delegados sindicais girava em torno da “seleção aberta” dos candidatos ao Parlamento. Os filiados do partido eram predominantemente favoráveis a essa iniciativa, mas os votos dos sindicatos mantiveram o assunto fora da agenda da convenção, o que causou indignação em grande parte das bases.

Enquanto os sindicatos reafirmaram seu poder político no Partido Trabalhista, a organização da classe trabalhadora estagnou e até declinou. Desde 2015, a densidade sindical continua diminuindo, com menos de 6,25 milhões de membros em 2017, representando 23% da população ativa e somente 13,5% no setor privado: é o nível mais baixo desde antes da Guerra.[3] O ano de 2017 registrou mínimos históricos em número de greves, dias perdidos por ações sindicais e trabalhadores envolvidos. Os líderes sindicais estão apostando na versão de esquerda de uma ideia estratégica tradicional: obter seu “governo” e se beneficiar de investimentos públicos, regulamentos e reformas legais. Porém, eles não parecem ter uma estratégia mais ampla para reconstruir seu poder social; nem mesmo para deter sua queda.

Como o Partido Trabalhista de Corbyn continua sendo uma organização com um forte caráter eleitoral, suas energias de movimento são muito menos visíveis durante o lapso temporal existente entre uma campanha e outra. De fato, fora do período pré-eleitoral, a liderança permanece presa pela função oficial. Ele deve se esforçar para manter alguns acordos fracos, que resultam em uma atitude estagnada diante dos ataques dos parlamentares “sem cargo” (backbenchers),[4] ambiguidade retórica em relação ao Brexit e relutância tática em abordar a questão do racismo anti-imigrante, que impulsionou o relativo sucesso da direita nos últimos anos.

Por meio de uma série de duras batalhas políticas e culturais, o corbynismo conquistou o direito de liderar o Partido Trabalhista. Em 2017, materializou brevemente aquilo que parecia ser um país diferente, muito diferente do país mediado pela imprensa marrom, o rádio e a televisão. Porém, mantém uma indeterminação política que incuba muitas tendências e muitos futuros possíveis, e ainda precisa se enraizar com profundidade na consciência ou organização da classe trabalhadora. Seu sucesso potencial depende, em grande parte, de circunstâncias que vão além do trabalhismo: a atual crise da política e a estagnação do capitalismo britânico.

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Notas:

[1] – O setor trabalhista chamado “Blue Labour”, do qual a expressão “corbynismo azul” é adotada, defende ideias mais conservadoras sobre questões sociais e internacionais como imigração, crime e União Europeia, enquanto rejeita a economia neoliberal a favor das ideias do socialismo sindical e do corporativismo [N. de E.].

[2] – Hoje, caso um parlamentar decida buscar sua reeleição, ele deve evitar ser impugnado, mas não participa de uma verdadeira eleição interna [N. de E.].

[3] – Department for Business, Energy & Industrial Strategy: “Trade Union Membership 2017: Statistical Bulletin”, 5/2018.

[4] – Refere-se a deputados sem cargos no governo ou no gabinete, à sombra da oposição, e que não são porta-vozes, visto que não se sentam na primeira fila do Parlamento [N. de E.].

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