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Linha de frente: Os heróis anônimos da resistência no Chile

A 40 dias de manifestações no Chile, são as linhas de frente, formadas por jovens dispostos ao combate, que garantem a continuidade dos protestos.

por Gloria Muñoz Ramírez | Desinformémonos – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
(Foto: Desinforménomos)

Santiago do Chile. A linha de frente das marchas na capital chilena se converteu no emblema das mobilizações. Com tudo contra, a conformam os heróis e heroínas dos protestos. Nos meios de comunicação os chamam de vândalos, vagabundos e delinquentes. Dentro da marcha, os aplaudem, torcem por eles e quase os colocam sob os ombros. Existem.

São centenas de homens e mulheres, em sua maioria jovens, que enfrentam os policiais carabineros todos os dias. Se colocam em pontos estratégicos para impedir que o gás lacrimogêneo, as munições e os jatos de água com químicos cheguem ao resto da mobilização pacífica. São os guardiões e guardiãs das dezenas de milhares de pessoas que há mais de 40 dias protestam nas ruas contra um sistema que os exclui.

A esquina da Ramón Corvalán com a Rua Carabineros de Chile é um dos campos da desigual batalha. Pedras contra tanques que disparam munições que já deixaram mais de 200 pessoas caolhas, ou bombas de gás e os veículos conhecidos como guanacos, que disparam jatos de água com químicos dilacerantes, que deixam a pele ardendo por dias. O Chile é especialista nesse tipo de desgraça.

As noites fervem. De um lado, um grupo de jovens quebram a calçada com marretas, para fornecer pedras à linha de frente. Filas de meninos com sacos de concreto atravessam as ruas e os deixam para aqueles que repelem os ataques dos carabineros. “Obrigado, irmão”, se escuta no meio da briga e da fumaça. E sim, a primeira batalha que foi vencida foi contra o individualismo e o ego; tudo aqui é coletivo.

Dezenas, centenas de pessoas esperam os manifestantes que correm com os olhos chorosos. “Água com bicarbonato! Água com bicarbonato!”, gritam. E os demais se aproximam para que lhes borrifem o rosto, digam palavras de alento e os socorram. Para cada lesionado, há quatro ou cinco deles, de imediato. Um excesso.

A linha de frente segue. Ao escurecer, se juntam manifestantes frente aos guanacos e aos tanques, confundindo-os com centenas de luzes verde de raios-laser nos pará-brisas. O espetáculo de luz e som inunda a rua. O guanaco retrocede. Os meninos comemoram.

Prontamente, a infantaria carabinera chega a pé. Protegida pelos veículos, recebe a ordem de atacar, e correm atrás dos jovens e de todos aqueles que se encontrarem à frente. Golpeiam e batem em tudo que atravessar seu caminho, detêm alguém e seus companheiros tratam de resgatá-lo em uma batalha corpo-a-corpo. Às vezes, conseguem. Em outras vezes, o garoto ou a garota passa a engrossar as filas nas delegacias. Se fala já de mais de 17 mil detidos em 40 dias de protestos.

À linha de frente chega Claudia Aranda, repórter e ativista da velha geração. Durante nosso encontro, recebe por Whatsapp a imagem do ultrassom de seu próximo neto. Está feliz. Faz 40 dias que deixou tudo para trás e foi viver em uma casa ocupada para manter-se disponível a todo tempo. “A tia da água!”, é o que escuta de milhares de novos sobrinhos nas ruas. “Se hidratem, moleques”, ela grita, com seu garrafão de cinco litros à mão. Em sua mochila carrega o laser para quando tiver de desorientar os carabineros, seu caderno e uma câmera, para as crônicas.

Em outra esquina, grupos de jovens tentam derrubar um semáforo. Puxam-no com um laço, para arrancá-lo do concreto e formar uma barricada com o poste. Dezenas de esquinas já não têm semáforo, então outro grupo de voluntários direciona o tráfego, recebendo como pagamento o som da buzina dos motoristas que lhe dão uma garrafa de água ou algo para comer.

Dezenas de médicos, enfermeiros e psicólogos fazem plantão nos pontos de saúde. Chegam aqui depois de largas jornadas de trabalho em hospitais públicos e privados, e durante horas atendem aos feridos da revolta. Ao que parece, dizem, cada vez estão pondo químicos mais agressivos na água disparada pelos carabineros, já que nos últimos dias os garotos chegam com queimaduras severas na pele.

Uma jovem que trabalha como produtora de eventos é agora encarregada da logística do centro de saúde. Recebe e classifica os sacos de doações das pessoas: máscaras de rosto, analgésicos, curativos, soros e um sem-fim de artigos que se amontoam. A solidariedade, por enquanto, é maior que a emergência.

Na linha de frente, os jovens se protegem com escudos feitos com escudos feitos de pedaços de plástico arrancado de tendas de lojas, com tampas de tambor, com o que tiverem. São gladiadores. Há homens e mulheres “bombers”, cuja missão é “afogar” as bombas de gás em garrafões de água com bicarbonato e soda cáustica. É um dos piores trabalhos, e seus pulmões estão cheios de químicos. O aplauso de seus companheiros é o único pagamento por cada bomba desativada.

Na manifestação não se passa fome. Menos ainda na linha de frente, porque se organizam panelões comunais e a comida é repartida em carrinhos tomados de supermercados. Lentilhas e batata nunca faltam. Às vezes, contingentes de ciclistas chegam com ajuda, outras vezes são eles que a necessitam.

Que aconteceria se não existisse essa linha de frente? Há alguns dias tentava chegar à Praça da Dignidade, antes conhecida como Plaza Italia, centro nervoso das mobilizações, uma marcha organizada por professoras de jardim de infância, e a polícia as atacou com bombas de gás lacrimogêneo. A linha de frente serve para que elas e outras como elas possam chegar à praça e manifestar-se pacificamente.

Os estilingues e baionetas improvisadas são as armas da linha de frente. Barricadas de pedras, placas, pneus, tudo o que servir como obstáculo aos carabineros, cuja missão é romper a linha, atravessar as barricadas e ir atrás dos manifestantes. Mais de 40 dias depois, a mecânica é clara. Rompem a linha, os jovens saem correndo, se dispersam, disparam e logo retomam seus lugares. Até que aja um novo ataque. E assim segue.

“Fechem, fechem!”, gritam, quando os guanacos vêm dos dois lados. Não há muito o que fazer a não ser se abaixar e se proteger com os corpos. Fazem avisos similares quando um deles, com um coquetel molotov, está a ponto de jogá-lo. “Abram, abram!”, gritam para que os companheiros abram espaço. A bomba artesanal voa pelos ares e cai perto dos carabineros. O júbilo se expande, o que os dá algum tempo para se aproximar dos carabineros e continuar o combate com pedras.

A batalha é organizada. Uns enfrentam, outros fazem barricadas, alguns recolhem suprimentos, outros levam comida e água, alguns atendem os feridos. Tudo para que o resto da mobilização contra um sistema que os privou do mais elementar possa caminhar sem muitos tropeços.

Em meio ao ataque, não falta batucada ou um saxofonista que se aproxime tocando “El derecho de vivir en paz“, inundando o ambiente com suas notas. Anoitece e os bloqueios se vão desfazendo. Por ruas escuras, aparecem grupos de carabineros patrulhando. E das sombras, como de fantasmas, se escutam gritos: “Milicos de merda! Assassinos!”. Uma garota com um enorme pedregulho em mãos passa perto da fileira de carabineros. Os insulta, com a pedra escondida atrás das costas. Os carabineros seguem em frente. E ela também.

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