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Guerra Fria dos direitos humanos: Panteras Negras x Dissidência soviética

Em meio à distensão da Guerra Fria, URSS e EUA batalhavam no terreno dos direitos humanos: escritores dissidentes de um lado, ativistas negros do outro.
Em meio à distensão da Guerra Fria, URSS e EUA batalhavam no terreno dos direitos humanos: escritores dissidentes de um lado, ativistas negros do outro. Por Gabriel Deslandes | Revista Opera
(Imagem: Estúdio Gauche)

Entre os acontecimentos que fizeram do ano de 1968 um ponto de inflexão na história do século XX, está o começo da implementação da détente entre as duas superpotências da Guerra Fria, ou seja, a política de distensão no relacionamento hostil entre Estados Unidos e União Soviética, e de redução do risco de um conflito global declarado. Contudo, 1968 também contou com dois episódios mais representativos da situação política de ambos os países do que as negociações de cúpula: em abril, o assassinato de Martin Luther King e, em agosto, a invasão soviética da Checoslováquia.

Esses dois eventos são sintomas das crises políticas que engolfariam os regimes soviético e norte-americano nos anos seguintes. Enquanto a busca da distensão pelos líderes soviéticos e norte-americanos lhes permitiu se apresentarem mundialmente como pacificadores, as forças de segurança interna de cada um dos países se mobilizaram para enfrentar supostas ameaças domésticas: os dissidentes políticos na URSS e o movimento Black Power dos EUA. Embora ambos os movimentos tenham surgido em 1966, a morte de Dr. King na cidade de Memphis e a ocupação militar da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia consolidaram e impulsionaram suas pautas e reivindicações.

Tanto os dissidentes soviéticos como os ativistas do Black Power se enquadravam entre um grupo diversificado de atores políticos que, durante a segunda metade dos anos 1960 e no início dos anos 1970, acabou servindo de base para o que os estudiosos chamam de “revolução dos direitos humanos”, ascendente a partir de 1975. Porém, a abordagem de cada um desses movimentos políticos pela imprensa da superpotência adversária não só era, por óbvio, totalmente diferente, mas também revela as distintas concepções de direitos humanos e de segurança nacional vigentes nos EUA e na URSS.

Em sua pesquisa comparada sobre a cobertura dos jornais soviéticos entre 1968 a 1973 sobre a dissidência interna e nos EUA, a professora Meredith L. Roman, do Departamento de História da Universidade de Michigan, analisou o campo discursivo típico da Guerra Fria a respeitos dos dissidentes políticos na Era Brejnev e da luta antirracista norte-americana. Segundo ela, a imprensa soviética se concentrou na perseguição a ativistas negros como Angela Davis e os membros do Partido dos Panteras Negras a fim de questionar a moral das autoridades de Washington quanto às “lições” do discurso oficial norte-americano sobre “liberdade” e “democracia”.

Ao mesmo tempo, os dissidentes soviéticos definiram sua visão sobre direitos humanos de uma maneira que os jornalistas dos “mundo livre” consideravam essencialmente “americana”, focando-se em direitos políticos e civis, enquanto os Panteras Negras e Davis lutavam pelos direitos sociais e econômicos priorizados historicamente pelos líderes soviéticos e que as autoridades norte-americanos se recusavam a reconhecer como direitos humanos. As autoridades soviéticas, tais quais múltiplos ativistas do Terceiro Mundo e lideranças afro-americanos – incluindo Dr. King em sua militância na década de 1960 –, frisavam que direitos políticos e civis tinham pouco significado se as pessoas não dispusessem de comida, roupas, educação, moradia e emprego.

De acordo com Meredith L. Roman, o anticomunismo havia estigmatizado as preocupações sociais e econômicas de inspiração tipicamente soviética, enfatizando a emergência dos direitos civis na sociedade norte-americana como promotor de uma igualdade legal formal, enquanto, paralelamente, um grande número de afro-americanos permaneciam na pobreza e sob a repressão policial. Ao condenar a repressão aos ativistas do Black Power que buscavam corrigir essas desigualdades, a imprensa soviética expôs como sua superpotência rival não estava conseguindo promover a proteção aos direitos humanos sequer internamente.

No contexto de 1968, a visão oficial nas esferas de poder interno dos EUA era de que as vitórias legislativas do movimento dos direitos civis de 1964 e 1965 já haviam redimido a imagem da América, agora vista como modelo de superioridade democrática. Da mesma forma, essas conquistas eram concessões que legitimariam uma maior repressão do Estado à luta de libertação negra no restante da década de 1960. De fato, a imprensa soviética se manteve atenta à questão racial nos EUA, focando na continuidade do racismo institucional norte-americano com a perseguição aos ativistas afro-americanos, de modo geral, e ao Partido dos Panteras Negras, em particular. Ainda que a maioria dos afro-americanos tivesse abandonado sua estreita aliança com a URSS no fim da década de 1960 – uma realidade agravada pela morte em 1963 do notável intelectual negro W. E. B. Du Bois e a retirada do ator e cantor Paul Robeson de sua militância política pública –, o combate ao racismo continuou a ocupar espaço no campo discursivo soviético.

Direitos humanos ao estilo americano (Pôster soviético de 1978)

Os jornalistas soviéticos e as próprias autoridades da KGB questionavam como tal repressão aos Panteras Negras era válida nos EUA sob o pretexto de segurança nacional, mas as mesmas prerrogativas eram desprezadas pelos norte-americanos quando Moscou reprimia o movimento dos dissidentes políticos. Nesse sentido, a abordagem da imprensa soviética quanto à ascensão do chamado movimento de direitos humanos em suas próprias fronteiras era diametralmente diferente.

“Antissoviéticos” e “traidores”

Em um exemplo evocado pela historiadora Meredith L. Roman, o Izvestia – antigo Diário Oficial na URSS de 1917 até 1991 – publicou, em sua edição de 18 de dezembro de 1970, uma longa declaração de protesto da chefe do Comitê de Mulheres Soviéticas e primeira mulher a ter ido ao espaço, Valentina Tereshkova, em que a cosmonauta condenava as acusações criminais contra a militante norte-americana Angela Davis como um “linchamento legal”. Por outro lado, no dia anterior, o Pravda, em um artigo intitulado “A Pobreza do Anticomunismo”, havia identificado os dissidentes soviéticos como um “grupo lamentável de renegados que imploram por uísque e cigarros em troca de vil invenções” sobre a vida na URSS. O autor desse artigo, I. Aleksandrov, insistiu que os jornalistas dos EUA somente elogiavam esses traidores como heróis a fim de distrair os norte-americanos quanto aos limites internos de suas liberdades, tais quais evidenciados na “vergonhosa perseguição a Angela Davis”.

Quando os principais veículos jornalísticos da URSS reconheceram a existência desse movimento, a referência predominante aos dissidentes era como “renegados”, “elementos antissociais”, “traidores” e “antipatriotas”. Acusados de estarem a frente de “atividades antissoviéticas”, muitos desses ativistas preferiam ser chamados de defensores de direitos (pravozashchitniki) em vez do termo ocidental “dissidentes” ou do termo russo inakomysliashchie (“aqueles que pensam de maneira diferente”). A partir da segunda metade dos anos 1960, eles se apresentavam como denunciantes do “retorno do país à violência stalinista e à ilegalidade”.

A imprensa soviética acusava esse “pequeno grupo de renegados que se autodenominavam ‘combatentes da democracia e dos direitos humanos’” de terem laços com organizações antissoviéticas, como a União Operária Popular (Narodno Trudovoi Soyuz, NTS), grupo de extrema-direita sediado na Alemanha, formado por russos emigrados e então ligada à CIA (“manchado com o sangue de cidadãos soviéticos”, segundo a Literaturnaia gazeta). Um caso representativo foi o dos escritores Aleksandr Ginzburg e Yurii Galanskov, principais réus no famoso Julgamento dos Quatro de janeiro de 1968 e denunciados como agentes pagos pela NTS. Ambos foram acusados de violarem o artigo 70 do Código Penal, que tipificava o crime de agitação e propaganda antissoviética.

Para a imprensa soviética, o tipo de ativismo político praticado por esses dissidentes não poderia ser considerado um trabalho digno. Eles eram classificados como traidores, em primeiro lugar, por causa de sua suposta ganância, egoísmo e falta de ética no trabalho. Os artigos nos jornais informavam que eles viviam “modos de vida parasitários” e não queriam trabalhar nem estudar, acumulando vários empregos passados porque foram demitidos por absentismo ou eram impopulares entre os colegas de trabalho por indisciplina ou “comportamento antissocial”. Segundo esses editoriais, essa aversão ao trabalho e ao estudo os teria encorajado a fazerem qualquer coisa por dinheiro. Assim, as atividades criminosas dos dissidentes contra o povo soviético não significavam uma surpresa, pois eles haviam, há muito, abandonado os valores da moralidade comunista. Essa apresentação dos dissidentes como preguiçosos e desdenhosos buscava explorar o sentimento popular anti-intelligentsia entre a população soviética. Por exemplo, os jornais soviéticos reportavam que o físico e fundador do Comitê de Direitos Humanos de Moscou, Andrei Sakharov, expressava desprezo pela classe trabalhadora.

Essa hostilidade respingava, por certo, na imprensa e nas autoridades norte-americanas, ao transformarem os dissidentes em escritores e intelectuais brilhantes, que supostamente gozavam de um altíssimo prestígio entre os cidadãos comuns soviéticos. Como disse o escritor e editor da Literaturnaia gazeta, Aleksandr Chakovskii, é fácil ser rotulado como escritor soviético no Ocidente: “Tudo o que você precisa fazer é escrever alguns slogans antissoviéticos, e você já se torna escritor”. Já o primeiro-secretário da Organização de Escritores de Moscou, Sergei Mikhalkov, brincou que esses supostos escritores não contribuem para nenhum gênero literário, mas são versados ​​em “certos artigos do Código Penal”.

Apesar da dureza dos ataques e denúncias contra os dissidentes, a indignação popular contra o movimento de direitos na URSS foi menor do que o esperado pelos editores dos jornais soviéticos. A imprensa, de fato, recebia cartas de protesto furiosas enviadas por coletivos, estudantes, intelectuais e trabalhadores contra tais “traidores”. Todavia, muitos cidadãos soviéticos desprezavam esses ativistas políticos não por causa de sua representação negativa na imprensa, mas por estarem desinteressados em seu comportamento crítico ao governo. Grande parte da população soviética estava não só acomodada como também satisfeita com o status quo. No fim dos anos 1960, a maioria dos soviéticos confiava em seus líderes como sendo responsáveis por um padrão de vida mais elevado do país.

Além disso, mesmo outros dissidentes criticavam os membros da intelligentsia envolvidos na escrita e publicação da samizdat (literatura clandestina) como “filhos privilegiados que viviam andando com estrangeiros”. Um dos poucos dissidentes não provenientes da intelligentsia, Anatolii Marchenko, relatou como sua família de trabalhadores ferroviários pouco se importava com a “luta pela liberdade criativa” protagonizada por parte dos intelectuais e como zombava de suas queixas. Isso evidencia um ponto de fraqueza do movimento de direitos soviético, que era seu desinteresse em preocupações sociais e econômicas mais cotidianas da sociedade russa.

Por outro lado, a posição de isolamento da dissidência se intensificou graças à própria visibilidade dada a esses ativistas pela imprensa soviética. Apesar da predominância das mensagens de protesto, os jornais também receberam dos leitores cartas simpáticas às causas dos ativistas. Por isso, o então chefe da KGB, Iúri Andropov – que antes, ao tomar posse no cargo em julho de 1967, havia criado a Quinta Diretoria para neutralizar indivíduos envolvidos em sabotagem ideológica ou conduta antissoviética –, aconselhou os líderes do Partido Comunista soviético (PCUS) a não incluírem na imprensa os nomes de personalidades como Andrei Sakharov e a não fornecerem uma ampla cobertura de processos judiciais como o julgamento de Ginzburg e Galanskov em 1968. Tais práticas, alertou, atrairiam a atenção nacional e internacional para processos judiciais de rotina e dariam a eles um enviesamento político que poderia ser evitado.

“A maior ameaça à segurança interna dos EUA”

No mesmo ano em que Andropov estabeleceu a Quinta Diretoria para monitorar as atividades antissoviéticas, o diretor do FBI, J. Edgar Hoover, iniciava uma nova operação de seu Programa de Contra-Inteligência (COINTELPRO) para “interromper e ‘neutralizar’ os chamados ‘grupos nacionalistas negros de ódio”. O Partido dos Panteras Negras e seus aliados, como Angela  Davis, se tornaram o alvo do COINTELPRO após Hoover, em junho de 1969, denunciar publicamente a organização como “a maior ameaça à segurança interna do país”.

Na mesma época em que os jornais da URSS demonstravam antipatia pelo movimento de direitos soviético, surgiram na imprensa expressões de solidariedade com as vítimas de perseguição política nos EUA. Para os soviéticos, a imprensa norte-americana e as autoridades de Washington só expressaram preocupação com o destino dos chamados “intelectuais dissidentes” na URSS porque isso lhes permitia desviar a atenção da repressão de vozes opositoras em solo americano.

Ao questionar as motivações por trás do interesse norte-americano pela justiça concedida a opositores políticos na URSS, Chakovskii perguntou por que a rádio Voz da América reportou avidamente o julgamento de Ginzburg e Galanskov, mas nunca mencionou o julgamento de LeRoi Jones, escritor afro-americano ativo no movimento Black Power. Jones enfrentou acusações de porte ilegal de armas, e parte de sua produção artística chegou a ser exposta pela acusação no tribunal, para condená-lo em janeiro de 1968. Embora a punição para esse crime nos EUA, em geral, não costume exceder seis meses de prisão, Jones foi condenado a três anos e obrigado a pagar uma multa de 1.000 dólares. À luz de tal injustiça, Chakovskii questionou “com base em que e com que direito aqueles que organizam e incentivam represálias nos países capitalistas tentam nos ensinar procedimentos legais e democracia”.

Chakovskii nada mais fazia do que ecoar as acusações dos militantes do Black Power, de que Jones era um prisioneiro político que não foi julgado por um júri de seus pares (todos os 12 membros do corpo do júri eram brancos) e cujo caso levantou preocupações sobre a violação do direito constitucional dos afro-americanos de possuírem armas de fogo. Para a imprensa norte-americana, entretanto, ele era culpado e merecedor de sentenças severas e, quando o escritor recorreu da decisão e foi absolvido de todas as acusações em julho de 1969, o New York Times continuou a sugerir que Jones era realmente culpado e que a Justiça norte-americana era muito indulgente com “criminosos” como ele. Já a Literaturnaia gazeta insistia na tese da “falência do procedimento legal norte-americano”.

Como sugere o exemplo de LeRoi Jones, a cobertura simpática dos ativistas do Poder Negro na imprensa soviética contrastava fortemente com sua criminalização na grande mídia americana. Muitos jornalistas americanos – alguns dos quais conspiraram diretamente com o FBI – difamaram militantes do Black Power e, sobretudo, os membros do Partido dos Panteras Negras como “criminosos violentos e antibrancos”.

Por outro lado, os jornalistas soviéticos retrataram os Panteras Negras como uma organização progressista radical que lutava por moradia decente, assistência médica, educação e emprego para os afro-americanos e todas as pessoas oprimidas. A imprensa da URSS explicava como o programa político dos Panteras Negras em benefício dos pobres e seus esforços para acabar com a brutalidade policial fizeram deles e de seus aliados brancos o alvo preferencial do terror policial. Desse modo, os soviéticos colocaram a repressão aos Panteras Negras em um contexto de maior esforços de Washington em reprimir toda a sua dissidência interna, como visto no Massacre de Kent State em maio de 1970, quando estudantes foram mortos pela Guarda Nacional de Ohio durante uma manifestação contra a Guerra do Vietnã.

Entretanto, a imprensa soviética ressaltava que a prática de “extermínio sistemático” tinha como objetivo principal o Partido dos Panteras Negras. Os jornalistas recorrentemente empregavam o termo “pogrom” para frisar a natureza organizada e bárbara da repressão sofrida pelos Panteras Negras nos EUA, com o propósito de promover a “aniquilação física dos líderes do partido, a intimidação de seus partidários e sua eliminação da arena da luta política”. O Pravda chegou a declarar em uma manchete que a polícia norte-americana atirava nos negros “como se estivesse praticando tiro ao alvo”.

A atenção voltada para a situação racial nos EUA cresceu na URSS a ponto de, em dezembro de 1970, os principais nomes da imprensa soviética apresentarem nas Nações Unidas uma petição com denúncias de genocídio promovido pelo Estado norte-americano contra os Panteras Negras. Após chamar os militantes do partido de “bando de criminosos”, o vice-presidente dos EUA no governo Nixon, Spiro Agnew, foi denunciado pelo editor do Izvestia, Melor Sturua, por ter justificado essas medidas repressivas. Sturua argumentou que a repressão violenta aos afro-americanos e a ofensiva dos EUA no Vietnã eram manifestações de uma mesma política beligerante de racismo e genocídio, e o Izvestia publicou uma edição justapondo uma fotografia dos Panteras Negras presos com uma de prisioneiros de guerra vietnamitas sob a manchete “Ianques em casa e no exterior”.

Todo o duro discurso tratando da situação política interna norte-americana se apoiava na visão hegemônica sobre os EUA como uma sociedade capitalista violenta e depravada, na qual a vida negra não tinha importância. Essa imagem era referendada por muitos dos próprios afro-americanos. Nas décadas anteriores, W.E.B. Du Bois e Paul Robeson tratavam os EUA nos termos de “terror” e “genocídio”, e os Panteras Negras e outros militantes do Black Power continuaram a reproduzir essa perspectiva, atribuindo toda a violência daquele período histórico às forças do Estado norte-americano.

“Angela livre”: Campanha soviética pelos direitos humanos?

Em outubro de 1970, o FBI prendeu Angela Davis por acusações de assassinato, conspiração e sequestro. Nesse momento, os soviéticos encontraram a personagem perfeita para relatar a repressão estatal interna dos EUA. Enquanto o rosto dos membros do movimento de direitos da URSS era majoritariamente masculino, o perfil carismático de uma jovem comunista afro-americana reforçava os relatos soviéticos de que a perseguição política dentro dos EUA era ampla e abrangente. Davis passou a ser saudada pelos jornalistas soviéticos como a “filha do povo americano”.

Estamos com você, Angela! (Pôster soviético de 1972)

Davis foi a única ativista proeminente do movimento Black Power que era membro do Partido Comunista dos EUA e havia se recusado a renunciar à filiação ao partido para manter sua carreira de instrutora na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Assim como as autoridades de Moscou voltaram sua atenção em busca de aliados no Terceiro Mundo no decorrer dos anos 1960, a maioria dos ativistas do Black Power também buscava inspiração nos revolucionários de Cuba, Argélia, Gana, China, Vietnã e Coreia do Norte, deixando a URSS de lado. Davis representava uma exceção na relação com PCUS, o que lhe valeu o título de “corajosa patriota americana” por parte da imprensa soviética. Artigos e cartuns enfatizavam a falsidade das acusações de assassinato, sequestro e conspiração contra Davis, mas que elas poderiam resultar em sua execução caso fosse condenada.

Nesse sentido, o governo soviético fez da jovem comunista afro-americano o centro de uma enorme campanha de protesto mundial. Jornais apresentavam expressões de solidariedade a Davis por trabalhadores, agricultores coletivos, estudantes e intelectuais de todos os cantos do país em comícios, resoluções, telegramas e cartas, e essas mensagens chegaram até a irmã de Angela, Fania Jordan Davis, quando esta visitou a URSS por quatro dias no outono de 1971. Cientistas e personalidades da cultura demonstraram sua admiração pela coragem de Angela, e o envolvimento dos intelectuais soviéticos unificados na campanha “Angela livre” foi útil para a URSS rebater as acusações, reproduzidas pelos dissidentes políticos e seus aliados no exterior, de que toda a intelligentsia no país era vítima da repressão.

O slogan “Angela livre” consistiu na primeira vez que o governo soviético pediu a seus cidadãos para que protestassem pela liberdade de uma pessoa desde a campanha pela libertação dos Scottsboro Boys, quando nove adolescentes negros do estado do Alabama foram injustamente acusados de estupro em 1931. Como uma jovem militante que ostentava um icônico cabelo black power, Davis personificou na URSS um estereótipo de celebridade negra anteriormente popularizado por Paul Robeson. Sua imagem jovial era um símbolo importante para convergir os sentimentos internacionalistas e antirracistas vigentes no seio da sociedade soviética. Quando ela visitou o país em agosto de 1972 (tendo sido absolvida de todas as acusações em junho) e agradeceu ao povo russo pela campanha internacional, a aliança entre soviéticos e afro-americanos passou a estar encarnada em sua figura.

Valentina Tereshkova e Angela Davis no 10º Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes em Berlim, em 1973.

A luta pela libertação de Davis angariou apoio de estudantes e intelectuais em toda a Europa e se somou às demais causas internacionalistas dos jovens soviéticos junto à oposição à Guerra do Vietnã, ao apartheid sul-africano e à ditadura militar do Chile. A repercussão global da campanha fez com que o Pravda e outros jornais da URSS noticiassem que milhões em toda a África, América Latina, Ásia e Europa, assim como milhões de “americanos honestos” de várias cores, idades, posições políticas e origens socioeconômicas, se mobilizaram em nome da ativista presa. Por certo, em 6 de junho de 1972, a imprensa soviética elogiou a absolvição de Davis como uma “vitória das forças progressistas do mundo” e como prova do “poder da solidariedade internacional”.

Segundo Meredith L. Roman, havia um claro esforço por parte de veículos de comunicação e autoridades do Kremlin em ver os valores socialistas como triunfantes sobre os capitalistas mesmo dentro dos próprios EUA. Por isso, jornalistas soviéticos discutiam de forma exagerada a popularidade que Angela Davis e os Panteras Negras gozavam dentro da sociedade norte-americana. Apesar do apoio de estudantes, intelectuais de esquerda e celebridades de Hollywood à causa racial nos EUA, o engajamento do FBI para não só criminalizar como também difamar os militantes afro-americanos foi eficaz. No fim dos anos 1960 e início dos anos 1970, a representação midiática dos Panteras Negras era marginal para a maioria dos cidadãos norte-americanos. Nesse sentido, a imprensa dos EUA foi mais exitosa em vender uma imagem negativa acerca dos ativistas negros em seu próprio país e fomentar uma animosidade contra eles do que havia sido a imprensa da URSS contra seus próprios dissidentes.

Paralelamente, os dissidentes soviéticos passaram a menosprezar a perseguição ao movimento Black Power nos EUA. Ao contestarem a representação na imprensa soviética de si mesmos como “traidores” e a dos Panteras Negras e de Angela Davis como “vítimas”, eles adotaram “certezas da Guerra Fria” com sinal invertido e replicavam explicitamente a narrativa ocidental sobre acontecimentos políticos nos EUA. Ou seja, para eles, os militantes afro-americanos não passavam de criminosos e mereciam estar presos, e a imprensa soviética mentia em sua cobertura sobre o tema, enquanto os jornalistas norte-americanos falavam a verdade.

Assim, os dissidentes soviéticos, enquanto reivindicavam o direito de manifestantes nos países ocidentais realizarem protestos em massa, costumavam banalizar casos de brutalidade policial e repressão estatal comuns nessas sociedades. O apoio desses dissidentes a indivíduos que o Kremlin identificava como inimigos os levavam a alianças com ditadores anticomunistas que cometeram violentos abusos dos direitos humanos. Por exemplo, quando ocorreu famosa troca de prisioneiros entre a URSS e o Chile de Pinochet – os chilenos libertaram o secretário-geral do Partido Comunista do Chile, Luis Corvalán, em troca do escritor dissidente soviético Vladimir Bukovsky – em dezembro de 1976, a libertação de Bukovsky foi fruto de um contato do Comitê Sakharov na Dinamarca e do próprio Andrei Sakharov em Moscou com os diplomatas da ditadura militar chilena. Em 1973, ao enviar uma carta a Pinochet expressando sua preocupação com a saúde de Pablo Neruda, Sakharov comentou que a morte do poeta poderia “ocultar o renascimento e a consolidação do Chile” proclamados pelo golpe militar de 11 de setembro.

Por causa dessas posturas, ativistas de esquerda nos EUA se indignaram com a forma como os dissidentes soviéticos compartilhavam da mesma visão de “lei e ordem” que o governo Nixon e deixavam isso claro em samizdats e entrevistas a jornalistas ocidentais. Por outro lado, a imprensa soviética aproveita tal posição ambígua para acusar os dissidentes como “antipatriotas que se alinhavam às mesmas forças desprezíveis que ameaçavam mandar Angela Davis para a câmara de gás”. Nesse caso específico, Sakharov foi uma exceção entre seus correligionários, ao enviar um telegrama em dezembro de 1970 ao presidente Richard Nixon pedindo um julgamento justo para Davis.

Andrei Sakharov – Tocha da Consciência (Pôster de 1990)

Em um movimento inverso, muitos jornalistas e editores norte-americanos contribuíam para a construção, no Ocidente, de uma imagem imaculada dos dissidentes soviéticos. Era comum que editores e tradutores de livros que trabalhavam na produção e distribuição de memórias de dissidentes removessem e modificassem das edições ocidentais trechos polêmicos, hoje só encontrados nas obras originais em russo. Um caso emblemático foi a série de intervenções editorais feitas na edição em inglês do livro History’s Carnival: A Dissident’s Autobiography, do dissidente ucraniano Leonid Plyushch. A tradução retirou uma frase excessivamente honesta em que o autor afirmava: “Em nossa juventude, nós tínhamos apenas uma coisa em comum: o antissemitismo”.

No confronto entre aquilo que o historiador Odd Arne Westad chama de “Império da Justiça” (União Soviética) vs. “Império da Liberdade” (Estados Unidos), as duas superpotências da Guerra Fria empreenderam uma pesada disputa de narrativas sobre a temática dos direitos humanos mesmo durante a détente. O que domesticamente era encarado, por um país, como questão de segurança nacional, era visto como repressão política pela potência adversária e vice-versa. Segundo Meredith L. Roman, o fato de Moscou enquadrar o movimento de direitos como um problema para sua estabilidade interna jogou os dissidentes no colo da Casa Branca. Simultaneamente, o governo Nixon e o FBI identificaram os Panteras Negras e Angela Davis como um perigo por exigirem os direitos sociais necessários para promover significativamente a liberdade dos afro-americanos.

Nessa dinâmica, a imprensa de ambos os países reverberava as diretrizes políticas oficiais de seus Estados. Enquanto os jornalistas dos EUA e da URSS disputavam a construção da imagem pública dos seus respectivos dissidentes, a imprensa norte-americana foi mais bem-sucedida em galvanizar sua própria sociedade contra o movimento Black Power. Por outro lado, a campanha “Angela livre” prova que a imprensa soviética não só conseguiu denunciar as alegações hipócritas de Washington de que suas preocupações com a segurança nacional eram legítimas e as do Kremlin não. Ela também contribuiu para reposicionar a URSS na dianteira da luta antirracista mundial nos anos 1960 e 1970.

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