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O dia que Gaza torna-se inabitável

De acordo com a ONU, em 2016, o principal aquífero fornecedor de água de Gaza se tornaria “inutilizável” e em de 2020 estaria completamente comprometido.
por Anna Majavu | New Frame – Tradução de Júlia Menezes para a Revista Opera
(Foto: Muhammad Sabah / B’Tselem)

O acadêmico palestino sul-africano Haidar Eid falou ao New Frame sobre o dia que a ONU relatou que a densamente povoada Faixa de Gaza se tornaria oficialmente inadequada para habitação humana.

Em 2012, a Organização das Nações Unidas publicou uma pesquisa sugerindo que em meados de 2016, o principal aquífero fornecedor de água para mais ou menos dois milhões de palestinos residentes da Faixa de Gaza se tornaria “inutilizável” e em meados de 2020, o aquífero estaria comprometido de forma irreversível.

Então para muitos moradores de Gaza, o fim da década passada não é um momento para celebrar. Ao invés disso, é uma contagem regressiva para o dia em que não será mais possível sobreviver.

Israel ocupou Gaza em 1967 e o território está sob uma ocupação militar internacional sem lei desde então. É uma curta faixa de terra no Mar Mediterrâneo, de apenas 365km². É também o lugar mais densamente populoso no mundo. O mais de um milhão de  habitantes de Gaza são refugiados das cidades e vilas da Palestina que Israel ocupou e purgou em 1948, quando se tornou um estado.

Décadas após a ocupação de Gaza, em 1967, uma série de assentamentos israelenses construídos através da costa litorânea de Gaza assegurou que o acesso ao mar seja negado aos palestinos, mesmo eles vivendo apenas a dois quilômetros da costa. Israel finalmente retirou-se de Gaza em 2005, mas dois anos depois, quando o Hamas [Ḥarakat al-Muqawamah al-ʾIslamiyyah] ganhou as eleições da Autoridade Palestina em Gaza, Israel impôs um cerco que permanece desde então. A área é cercada por uma barreira extremamente fortificada, um ponto de controle e uma fronteira com o Egito que está praticamente sempre fechada. Mais de um milhão de pessoas em Gaza agora vivem com menos de 3,45 dólares por dia.

“Um mortal bloqueio medieval”

O acadêmico palestino sul-africano Haidar Eid ensinou Literatura Inglesa na antiga Universidade de Vista no campus de Soweto em 1990, e foi recebeu seu doutorado na Universidade de Joanesburgo. Ele é agora professor-associado de Literatura Inglesa na Universidade Al-Aqsa de Gaza, músico e o principal propagandista de Gaza pelo movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel.

“O Apartheid israelense tem sustentado um mortal bloqueio medieval em Gaza desde 2007, quando Hamas assumiu controle da pequena faixa após ganhar legitimamente as eleições do Conselho Legislativo da Autoridade Palestina em 2006”, disse Eid. “A ONU deixou absolutamente claro que em 2020 Gaza se tornaria inabitável. Nós já estamos lá.”

Em 2012, um relatório das Nações Unidas dizia que o fornecimento de água de Gaza havia alcançado níveis críticos porque o aquífero (a única fonte de água de Gaza) havia esvaziado tanto que estava enchendo de água do mar. A situação está muito pior agora, com 97% da água de Gaza não potável, de acordo com Eid.

“A maioria de nós não bebe água da torneira porque é de péssima qualidade. Ao invés disso, nós compramos água cara de empresas privadas seis vezes mais que a taxa padrão. Muitos de nós recorremos a poços privados. Na verdade, nós cavamos poços e conseguimos água não filtrada para tomar banho e nos lavar”, diz ele.

Especialistas em seca na África do Sul têm alertado contra o uso excessivo de água subterrânea durante períodos de seca; se muitos poços são escavados próximos do litoral, há um risco do lençol freático esvaziar e a água do mar escorrer para dentro dele, contaminando o restante de água subterrânea fresca. Mas diferente da África do Sul, em que há numerosas alternativas, como dessalinização ou tratamento de águas residuais, Gaza perdeu toda inovação.

Israel descreve a si mesmo como “um líder do mundo” em tecnologia de dessalinização e a maioria de sua água vem de quatro grandes usinas de dessalinização. E também fornece jipes de dessalinização portátil para o exército Indiano, que faz a dessalinização da água enquanto se movimenta. Mas Israel retém e impede que essa tecnologia seja usada em Gaza. O bloqueio, ou cerco, israelense em Gaza significa que a Autoridade Palestina não pode estabelecer suas próprias usinas de dessalinização enquanto Israel simplesmente a baniu de importar qualquer nova tecnologia, diz Eid. Além disso, Israel não permitirá que a Autoridade Palestina na Cisjordânia forneça água para Gaza. Isso deixa Gaza sem nenhuma opção além de usar em excesso seu aquífero.

Falta de poder

Em Gaza também falta eletricidade. Com apenas uma rede elétrica que, ainda antes de Israel bombardeá-la repetidamente, só fornecia 40% de eletricidade para Gaza.
“O resto era pra ser fornecido pelo poder ocupante, Israel. Mas permitiu apenas 40 watts de energia para ser providenciado para a Faixa [de Gaza], com total conhecimento de que eram necessários 400 watts para o mínimo indispensável de sobrevivência necessitado por Gaza” diz Eid.

Moradores vivendo nos prédios de Gaza dificilmente conseguem água porque os geradores que bombam água aos níveis mais altos das edificações “só funcionam por poucas horas ao dia. Mesmo os poços não podem funcionar integralmente. A falta de eletricidade também impossibilita que as usinas de tratamento de esgoto da Faixa funcionem, possibilitando águas residuais não tratadas irem diretamente para o mar”, diz Eid. Em 2012, a ONU estimou que 90.000m³ de esgoto por dia estava sendo descarregados dentro do Mar Mediterrâneo.
“Cortar eletricidade é uma sentença de morte para os quase dois milhões de gazeanos vivendo no bloqueio israelense da faixa”, diz Eid.

Eid diz que palestinos em Gaza vivem uma “existência tenebrosa” não somente por causa dos regulares bombardeios de Israel. O mais recente bombardeio de destaque aconteceu em Novembro de 2019, quando Israel bombardeou a casa da família Sawarka quatro vezes, matando cinco crianças e quatro adultos. No dia de Natal, Israel admitiu ter cometido um “erro”.

“O terror disso é que os gazeanos morrem todos os dias de doenças que poderiam ser prevenidas como resultado da água suja e da falta de operações salva vidas, ou fome devido às plantações que não crescem sem irrigação suficiente, ou bebês morrendo porque não podem ser mantidos aquecidos em seus poucos primeiros dias de vida”, diz Eid.

“As condições médicas causadas pelos ferimentos dos projéteis de tipo expansivo proibidos internacionalmente e outras armas ilegais de Israel, também as condições médicas causadas pela água contaminada não podem ser tratadas por causa do cerco. Junto à proibição aos materiais de construção, Israel também evita a importação de muitas outras necessidades: lâmpadas elétricas, velas, caixa de fósforos, livros, refrigeradores, sapatos, roupas, colchões de molas, lençóis, cobertores, chá, café, salsichas, farinha, bovinos, massas, cigarros, combustível, lápis, canetas, papéis e outras coisas. Em Gaza, o povo se pergunta quando o atual governo israelense, o mais fascista na história do país, pode discutir inclusive a proibição ao oxigênio!”.

“Genocídio incremental”

Ilan Pappé, um acadêmico israelense que ensina na Universidade de Exeter no Reino Unido, descreve a política israelense em Gaza como uma política de “genocídio incremental”.

De acordo com Eid, o movimento BDS é fundamental para ajudar os palestinos a derrotar a ocupação militar israelense. No final de Dezembro, o primeiro ministro britânico Boris Johnson apresentou um projeto de lei destinado a enfraquecer o movimento de Boicote BDS que “proibiria” os conselhos locais britânico de “impor campanhas de boicote, desinvestimento e sanções, diretas ou indiretas” a Israel ou qualquer outro país.

Eid diz que isso é um indicativo do poder do BDS. “sul-africanos vão se lembrar de quando a primeira ministra britânica Margaret Thatcher decidiu proibir os conselhos locais de praticar boicotes contra o sistema de apartheid. E agora você tem Johnson planejando tomar uma decisão parecida. Em 1980, o mundo inteiro levantou-se contra o apartheid e seus aliados. O mesmo está acontecendo contra o apartheid israelense.

“É o nosso momento sul-africano”, disse o acadêmico palestino.

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