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Mudar para que nada mude: Crise política e a hegemonia do neoliberalismo no Líbano

No Líbano, com a entrada de um novo governo e a continuação dos protestos, fica a mensagem de que as ruas ainda estão muito longe de serem ouvidas.
por Thomas Farran | Revista Opera
(Foto: Shahen books)

Em outubro de 2019, uma onda de protestos despontou no Líbano no que parecia mais um capítulo da disputa entre uma elite política já desgastada, e uma população consumida por um sistema de taxação regressiva e sucessivas medidas neoliberais que, no decorrer de 30 anos, construíram um cenário desolador de desemprego, infraestrutura decadente e violência.

As manifestações, embora com características demográficas variadas, tinham como algumas das demandas a derrubada completa do governo liderado por Saad Hariri, eleições diretas e uma reforma do sistema político do país que viabilizasse medidas anticorrupção.

Sob a bandeira de “Todos significa Todos”, os protestos abrangem ambos os blocos da política libanesa. Esses blocos, ou alianças, devem ser entendidos mais no contexto de parcerias por conveniências do que um alinhamento ideológico propriamente dito.

De um lado, a Aliança 14 de Março, liderada pelo sunita Saad Hariri, do Movimento Futuro, e com uma base de aliados composta por conservadores, neoliberais e nacionalistas. Fazem parte dessa base ex-senhores da guerra como Jumblatt e Samir Geagea. Ela tem grande representação entre cristãos, assume posições pró-Ocidente e é simpática à normalização das relações com Israel. Por meio de Saad Hariri, a Aliança 14 de Março representa em grande parte os interesses da Arábia Saudita no país.

Do outro lado, a Aliança 8 de Março, liderada pelo cristão maronita Gebran Bassil (embora amplamente controlada por Michel Aoun), do Movimento Patriótico Livre, e em conjunto com um leque de partidos que vão desde conservadores até comunistas. É nessa aliança que se encontra o Hezbollah – que, em número de representantes, é apenas a terceira força da aliança.

Apesar da narrativa oficial da mídia hegemônica, que retrata um Hezbollah submisso e mero representante da esfera de influência iraniana no Líbano, a realidade não poderia estar mais distante disso. Obviamente, o Irã vê no Hezbollah um importante parceiro regional e vice-versa. Contudo, embora esse tenha sido o caso na década de 1980 até finais de 1990 sob as lideranças de Tufayli e Musawi, o partido passou por uma grande reformulação sob Hassan Nasrallah – o que mudou a dinâmica entre o movimento libanês e o governo iraniano por completo. A coordenação de esforços e o apoio ainda existem, mas é notável a independência que o partido tem para traçar suas próprias políticas e mesmo ações militares.

A relação com o Irã é uma preocupação para a Arábia Saudita, enquanto a independência política e a capacidade bélica são as maiores preocupações para Israel, como ficou patente na humilhante derrota sofrida em 2006.

Embora muito se fale da influência iraniana na política libanesa, ainda não se soube de casos onde membros do governo tenham sido sequestrados e feitos reféns pelo Irã, o que não pode ser dito da Arábia Saudita. Ao mesmo tempo, comenta-se com certa frequência de como “os programas sociais do Hezbollah no sul do país são uma esforço de influência iraniana”, enquanto se ignora o fato da USAID ser a maior financiadora de ONGs e movimentos da sociedade civil no Líbano.

Dito isso, fazer parte de uma mesma aliança não implica em apoio irrestrito. No caso do Movimento Patriótico Livre (MPL), por exemplo, é muito mais uma recusa a submeter-se à liderança das Forças Libanesas de Samir Geagea na disputa do eleitorado cristão do que apoio ao movimento de resistência do Hezbollah.

Essa promiscuidade política desprovida de consistência ideológica, patrocinada por uma classe que constantemente manipula o discurso público com o único objetivo da manutenção do poder, passa a ser percebida então como parte da “corrupção” a ser combatida.

Décadas do mais do mesmo

A atual crise não é nova e muito menos repentina, mas integra uma sucessão de crises que assolam o país desde 2005 e que foram escalando proporcionalmente a queda da qualidade de vida, o aumento da desigualdade social e a manutenção da situação pós-guerra civil.

Por exemplo, desde 2005, não houve uma só formação de gabinete que tenha conseguido chegar ao fim do mandato, e protestos acontecem de forma quase ininterrupta desde 2006. Em 2014, o impasse político chegou a tal ponto que a cadeira da presidência ficou vazia por quase dois anos e meio. Essa classe política apenas tem sobrevivido graças ao constante apelo ao argumento sectário – um tema sensível para os libaneses – para dominar o discurso público.

No centro dessa questão, está o próprio sistema político do país. Desde o Acordo de Taif de 1989, é determinada em 50:50 a reserva alocada para nomeação de cristãos em ministérios e no parlamento. Essa reserva teve a finalidade de reverter políticas de favorecimento aos cristãos durante o período do Mandato Francês. O acordo em si é uma versão reestruturada do Pacto Nacional de 1943, que já determinava que o presidente deveria ser cristão e o primeiro-ministro sunita. Isso acontece porque o Líbano é adepto do confessionalismo, que em tese distribui posições entre os mais variados sectos religiosos com a finalidade de evitar a concentração de poder por determinado secto.

A grande questão é que o Líbano não tem um censo oficial desde 1932, quando os cristãos eram supostamente maioria. O próprio censo que serve de base para esses planos é cercado de suspeições, uma vez que o Alto Comissariado Francês manipulou a legislação vigente na época para avaliar o status de cidadania de acordo com a filiação religiosa, inflando consideravelmente o número de cristãos em detrimento de muçulmanos.

Hoje, a partir de extrapolação estatística com base em dados disponíveis como taxa de natalidade, fecundidade, mortalidade, imigração e expectativa de vida, pode ser considerado fato consumado que o Líbano é um país de maioria muçulmana, sendo que pende para a proeminência do xiismo.

Com a justificativa de que a manutenção do sistema garante a estabilidade nacional, cria-se um problema incontornável: sob um sistema de representação proporcional, a maior parte da população está sub-representada, enquanto uma minoria super-representada consegue legislar em causa própria. Ou seja, se essa suposta estabilidade existe, ela é excludente.

Entre classes e sectos

O reflexo desse problema pode ser ilustrado pelo cruzamento de dados como o de poder de voto por distrito eleitoral e a incidência de investimentos em infraestrutura e serviços públicos, que resulta na conclusão óbvia de que os distritos mais sub-representados – ao sul e de maioria xiita – são os mais precarizados. Tal desigualdade ainda é mais visível em Beirute, onde o contraste entre bairros periféricos como Dahieh e centrais como Achrafieh é um lembrete constante da crescente lacuna entre classes.

Esse contraste por vezes se traduziu em violência entre manifestantes nas ruas. Ao contrário da narrativa propagada pelos “especialistas” dos grandes meios, a violência esteve presente nas manifestações tão logo as mesmas começaram em outubro de 2019. Na maior parte das vezes, pelas mãos do governo.

A repressão e agressões contra apoiadores do Amal, Hezbollah e do Partido Comunista Libanês em Nabatieh – por exemplo – não geraram teorias da conspiração sobre infiltrados e especulações sem qualquer substância por parte daqueles mesmos “especialistas”. Aparentemente, a eles tudo depende de quem é o agredido e quem é o agressor.

Em outubro, quando manifestantes de classe média que bloqueavam as principais vias de acesso à capital foram agredidos, o antagonismo em questão não estava concentrado necessariamente no alinhamento político, mas na condição social. Após semanas de bloqueio, era visível a irritação dos moradores de zonas periféricas e vilas ao sul de Beirute que estavam sendo economicamente prejudicados pela falta de liberdade de movimento. Pessoas pobres estavam impossibilitadas de irem ao trabalho ou à universidade, chegarem aos hospitais e movimentarem mercadorias, enquanto o mesmo bloqueio pouco parecia afetar as atividades das classes média-alta e alta.

A pergunta desses moradores afetados era simples: que manifestação por justiça social pune os pobres para passar uma mensagem aos ricos? Esse atrito criou pequenas divisões entre manifestantes, e a imprensa libanesa – em grande parte, propriedade da elite política – se apoia nessas divisões para reforçar divisões sectárias.

Assistir grandes canais televisivos como MTV e LBC deixa perceptível a retórica virulenta contra apoiadores do Amal e do Hezbollah, que são rotineiramente retratados como bandidos, brutos e ignorantes. Essa desumanização sistemática tem um impacto direto em como pobres e a classe trabalhadora em geral (base desses dois partidos) são vistos pela classe média: alienados.

A imprensa internacional pega carona nessa narrativa e, em vez de mostrar o Líbano como vítima das contradições de sua realidade, apela para o orientalismo tosco, preferindo apresentar o país como um dos berços “daquela gente que briga desde tempos imemoriais”.

Independentemente desses esforços por parte da elite e da interferência internacional, a maior parte dos protestos ficou alheia às provocações sectárias, e manifestantes abriram diálogo entre diferentes setores, aos poucos acumulando pequenas vitórias. A primeira delas, a renúncia do governo de Saad Hariri no final de outubro, foi um duro golpe para a Aliança 14 de Março, que, desde então, está em modo de controle de danos e passa por uma crise de credibilidade.

Com a entrada de um novo governo e a continuação dos protestos, fica a mensagem de que as ruas ainda estão muito longe de serem ouvidas.

No Grand Serail, quem governa é o FMI

O novo governo libanês liderado por Hassan Diab já começa cumprindo com as expectativas de qualquer empreitada “tecnocrata”. Formado por banqueiros, entusiastas da austeridade e apologistas do lawfare, esse governo já é apresentado com uma salada de pastas sob o disfarce de “desinchar a máquina pública”, que nos traz pérolas como “Ministério da Reforma Administrativa e Meio Ambiente”, “Ministério dos Assuntos Sociais e Turismo” e – o meu favorito – “Ministério da Agricultura e Cultura”. Assume-se que esse último se deva ao fato de “agricultura” ter “cultura” no nome. “Tecnicamente”, deve fazer sentido manter as duas sob um mesmo ministério.

Até agora a opinião pública tem se dividido em duas partes: a primeira pergunta ao redor de quem são metade desses nomes e por que, em um governo formado por técnicos, não são especialistas nas matérias que assumiram. Por que a pasta do Meio Ambiente está sob um economista? Porque a pasta do Turismo está sob um ortopedista? Por que o Ministério do Interior está sob o chefe de segurança de um banco internacional? A outra parte desconsidera a formação desse governo feita justamente por aqueles que perpetuam a miséria libanesa como sendo uma solução, e pede por eleições diretas e gerais.

Para contornar a negatividade da opinião pública tanto domesticamente quanto no exterior, a estratégia de Diab aqui está na questão da representatividade feminina. São seis mulheres que compõe o governo, o maior número na história do país.

É nisso que o governo aposta para amenizar as reações contra as medidas de austeridade que já estão em pauta, como a reforma previdenciária, o aumento do imposto sobre valor agregado, o congelamento de salários e a suspensão da progressão de carreiras no setor público.

Apenas um dia após a nomeação, o ministro das Finanças Ghazi Wazi já anunciou a intenção do governo em buscar empréstimos que totalizem algo entre 4 e 5 bilhões de dólares. Anúncio que foi bem recebido por representantes da UE, Reino Unido e Estados Unidos – todos reforçando a mensagem de que o sucesso do governo depende exclusivamente de sua capacidade em implementar “reformas estruturais”.

Independente do número de mulheres no governo, da coalizão que dominou essa formação ou da função técnica de seus membros, quem está mesmo representado nesse governo é o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em um documento de 62 páginas, fruto da consulta ao Artigo IV do FMI pedida então pelo ministro das Relações Exteriores e líder da Movimento Patriótico Livre, Gebran Bassil, em outubro, está – para além das medidas já citadas – uma “reforma do setor de energia elétrica”, o que significa a privatização da fornecedora estatal Électricité du Liban (EdL) e a liberalização do mercado.

Ao todo o novo governo conta com seis membros que fazem parte de conselhos de bancos privados e/ou firmas de consultoria financeira e que ocupam áreas estratégicas como o Ministério das Finanças, Ministério da Economia e do Comércio, do Meio Ambiente e Reforma Administrativa, da Energia e do Interior.

Apesar desse governo ser propositalmente descaracterizado pela imprensa como sendo um projeto do Hezbollah (é uma formação liderada por Nabih Berri e Michel Aoun), o importante papel do partido na articulação política durante a crise acaba por ter um efeito direto sobre a imagem do partido na percepção pública.

Na atual fórmula, a posição do Hezbollah pode custar caro para a resistência no longo prazo. Ela pode ser entendida em quatro fases representadas pelos pronunciamentos de Nasrallah desde o avanço dos protestos. No início de outubro, era entendimento do Hezbollah que os protestos eram legítimos, mas que o partido não apoiaria a renúncia do governo.

Ainda no final de outubro, Nasrallah questiona a legitimidade dos protestos e de maneira vaga apontou para uma conspiração que visa atingir o partido e que supostamente tomou conta dessas manifestações. Nesse mesmo discurso, ele fez um apelo para que os apoiadores do partido deixassem de sair às ruas para se juntar aos protestos.

Em novo pronunciamento, em novembro, Nasrallah apela ao diálogo e pede apoio irrestrito à formação imediata de um governo. Mais tarde, cede às divergências com Gebran Bassil e caracteriza esse futuro governo como “tecnocrata”.

Finalmente, em dezembro, Nasrallah anuncia que cedeu a todas as demandas de Saad Hariri – ex-primeiro-ministro e agora líder da oposição – em busca de um compromisso para a formação de um governo e para evitar o boicote da Aliança 14 de Março ao processo. Mesmo com toda a abertura do Hezbollah, o boicote ocorreu e, como gesto de boa fé, é anunciado um “governo de salvação” de natureza “técnica”, que inevitavelmente tomará “medidas impopulares”.

O grande problema para a Aliança 8 de Março em se mobilizar para a formação de um novo governo sem um projeto apropriado, é que acabou-se por adotar políticas que a Aliança 14 de Março adotaria sem que os mesmos carreguem o ônus dessa implementação. Essa capitulação foi uma estratégia do partido para lidar tanto com a pressão política interna quanto com a externa e, ao mesmo tempo, se manter politicamente relevante no atual contexto.

Todo o processo foi desgastante para a popularidade do partido fora da própria base, e essa transferência de responsabilidade imposta pela Aliança 14 de Março de Hariri poderá fortalecer esse sentimento negativo em relação ao mesmo.

Se o governo funcionar de acordo com o esperado, uma onda de reformas, medidas de austeridade e privatizações a fim de cumprir as obrigações de uma eventual intervenção do Banco Mundial ou FMI empurrarão a economia libanesa ainda mais para o precipício e colocará o país em um ciclo de convulsão social beirando o conflito civil.

Se o governo falhar, reforçará o discurso da oposição de que a Aliança 8 de Março (entenda-se: o Hezbollah) é incapaz de articular politicamente qualquer saída para a crise. Nesse caso, o melhor cenário para o partido é de que a mobilização das ruas continue, novas eleições sejam convocadas e assim não haja tempo para o novo governo implementar suas medidas – mas, para isso, também seria necessário deixar de lado a retórica sobre os perigos do vácuo político.

A insistência do Hezbollah para que seja emitida uma declaração ministerial por parte do novo governo que garanta o “direito à resistência” é justamente um sinal de que o partido espera algum tipo de revés no que toca à legitimidade de seu status, fruto direto da interferência internacional liderada por Israel, Arábia Saudita e Estados Unidos. Se esse aborto político durar, o resultado será o desastre.

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