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O que Corbyn não compreendeu a respeito do Brexit

O Brexit não era uma distração contra uma revolta contra o neoliberalismo, mas a forma que essa revolta tomou no contexto britânico.
por Lee Jones | Tradução de João Veloso para a Revista Opera*
(Foto: Sophie Brown)

É preciso ler com cautela o artigo de Jeremy Corbyn publicado no Observer no
último domingo (15/12/2019), no qual o autor dá a sua interpretação do motivo da derrota do Partido Trabalhista britânico nas eleições gerais de 2019, pois esse texto simboliza o erro grave que Corbyn e grandes segmentos da esquerda cometeram a respeito do Brexit.

Corbyn inicia caracterizando corretamente a era atual como uma de grande turbulência, onde o sistema político “está falhando em gerar apoio estável para o status quo depois da crise financeira de 2008″. A desilusão com o neoliberalismo “providenciou uma abertura para uma política mais radical e esperançosa que insiste em afirmar que as coisas não precisam ser do jeito que são, e que um outro mundo é possível.”

No entanto, Corbyn observa que as comunidades mais prejudicadas pelo neoliberalismo “lamentavelmente” votaram contra o Partido Trabalhista, porque “a política como um todo não recebeu confiança, mas a promessa de Boris Johnson de ‘concretizar o Brexit’ – vendida como um golpe ao sistema – sim. Infelizmente tal slogan em breve terá sua falsidade exposta, estilhaçando ainda mais a confiança. Apesar de nossos melhores esforços, e de nossas tentativas de deixar claro que esse poderia ser um momento de virada para o rumo tomado por nosso país, a eleição se transformou majoritariamente numa disputa envolvendo o Brexit.”

Isso expôs a principal fragilidade de Corbyn: ele não pode ver que o Brexit não era uma distração contra uma revolta contra o neoliberalismo, mas a forma que essa revolta tomou no contexto britânico.

Desde o começo, a maior parte da esquerda britânica somente pode entender a saída da União Europeia como um fenômeno direitista, reacionário, e seus apoiadores como apoiadores perversos – ou ingênuos – da direita ou até mesmo da extrema-direita. Que liberais de esquerda cometam esse erro é de se esperar, mas que um eurocético de esquerda de longa data faça isso é imperdoável.

O Brexit não foi “vendido como um golpe ao sistema”; ele foi um golpe ao sistema – comprovado pela resposta histérica desse sistema ao voto, suas tentativas desesperadas para prevenir o decreto do resultado do referendo desde então, e as provocações a todos aspectos da ordem política e constitucional da Grã-Bretanha. Todos partidos políticos, salvo UKIP e alguns grupos comunistas de menor expressão, fizeram campanha pela permanência da Grã-Bretanha, assim como o fizeram todas as instituições de negócios, a hegemonia cultural e educacional, apoiados pelo Fundo Monetário Internacional e pelo presidente dos EUA. O povo rejeitou a União Europeia e optou por “tomar o controle de volta”, pois ele pode notar que a elite política tinha se afastado dele em direção ao interior dos sistemas estaduais e interestaduais da União Europeia. O povo queria um fim para essa era pós-política, onde nada mudava, e os partidos políticos haviam convergido em um “centrismo” neoliberal. Ele queria que os políticos começassem a representá-lo de novo, a ouvirem-no e agirem de acordo com as queixas dele. Ele queria soberania popular (veja Analysis #6 – Why Did Britain Vote to Leave the EU?).

O auto-obituário de Corbyn sugere que ele era incapaz de reconhecer a enorme oportunidade que isso mostrou para a esquerda. Uma revolta antissistema dessa magnitude – brevemente liderada por mascastes da direita que rapidamente desapareceram ou apunhalaram as costas um dos outros depois do referendo – expôs o enorme vazio político com o qual a esquerda poderia ter se envolvido. Esse desejo por mudança fundamental, radical, na nossa ordem constitucional poderia ter sido canalizado em um programa político radical de reforma política, social e econômica.

Em vez disso, a estratégia de Corbyn foi simplesmente se esconder da questão do Brexit, forçando os conservadores a “se apossarem” dessa demanda. Mas isso se tornou insustentável quando Theresa May perdeu a sua maioria [no parlamento britânico], se tornando dependente de que outros partidos aprovassem seu acordo de saída da União Europeia. Isso colocou o Partido Trabalhista em posição de poder impedir o Brexit, o que eles fizeram. Em consequência, as pessoas que tinham se revoltado contra o sistema agora veem com razão o Partido Trabalhista como um obstáculo para mudanças fundamentais.

Agora Corbyn diz que “nós pagamos um preço por termos sido vistos por alguns como os que tentavam ficar em cima do muro, ou como defensores de que se refizesse o referendo.” Isso categoriza erroneamente o problema como uma questão de perspectiva, e não de realidade. Pelos últimos três anos, o país encarou uma escolha binária: deixar a União Europeia, através da decisão democrática do referendo, ou permanecer nela. Em vez de lutar com a maioria dos cidadãos, e ganhar daqueles eleitores que tinham seguido as lideranças trabalhistas pela permanência, Corbyn se esquivou do problema. Ele tentou persuadir o povo a não se ver como eleitores a favor ou contra a saída da Grã-Bretanha da União Europeia, mas como “os muitos versus os poucos”. Isso funcionou apenas nas eleições de 2017, porque ambos os partidos pareciam aceitar o resultado do referendo, e o Brexit estava sendo implementado. Mas diante da pressão causada pelo colapso do governo de Theresa May, as afinidades com a permanência na União Europeia compartilhadas tanto pela maioria dos apoiadores de Corbyn, quanto pelos centristas seguidores de Tony Blair, direcionaram o Partido Trabalhista ao apoio de um segundo referendo. Corbyn permaneceu desprotegido. A estratégia dele para as eleições de 2019 continuou a tratar o Brexit como uma distração irritante, o relegando para a parte final do programa eleitoral enquanto punha ênfase nos planos empolgantes do Partido Trabalhista para mudança econômica. Foi claramente sugerido o que agora Corbyn expressa explicitamente: Brexit é uma distração sem sentido, que podemos guardar numa gaveta enquanto nos concentramos no trabalho verdadeiramente importante de lutar contra o neoliberalismo.

Para os eleitores da proposta de saída da União Europeia, isso cheirava a políticos os ignorando – ou pior, sendo condescendentes com eles –; justamente as coisas contra as quais eles se revoltaram em 2016. Para esses eleitores, um primeiro passo necessário em direção à transformação política era forçar a ordem política a parar com isso. Por conta disso, eles estavam prontos para votar no único partido grande comprometido a respeitar o seu voto.

Esse fracasso tem lições importantes para a esquerda do mundo todo. Em uma era em que os tradicionais partidos de esquerda e social-democratas enfraqueceram tragicamente seus laços com as suas antigas bases na classe trabalhadora, eles raramente poderão, se alguma vez poderão, decidir as formas com as quais o povo se revoltará contra a ordem neoliberal. Precisamente porque eles não lideram o povo. O povo está, na verdade, marchando adiantado em relação a esses partidos. Se assim a esquerda reage horrorizada, e se afasta do povo e da possibilidade de mudança fundamental, a liderança das revoltas contra o sistema vai cair, simplesmente por falta de opção, nas mãos da direita.

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*Nota do editor: Os resultados das últimas eleições britânicas trouxeram discussões sobre a razão por trás das votações que deram a vitória para o Partido Conservador em detrimento do Partido Trabalhista. Alguns argumentos culparam o “extremismo de esquerda”, o que consideramos errôneo e uma forma de ignorar o papel do Brexit nessa contenda. Ademais, existe uma demanda por argumentos favoráveis ao Brexit a partir de uma posição de esquerda – no sentido de que isso aparece em discussões, mas não no publicismo brasileiro -, o que nos levou a publicar este artigo publicado originalmente no portal The Full Brexit, uma plataforma política de esquerda favorável à saída do Reino Unido da União Europeia. Isso não implica, no entanto, em uma posição da Revista Opera sobre o tema. O autor, Lee Jones, é professor de Política Internacional na Queen Mary University of London e co-fundador da plataforma.

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