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Os usos (e abusos) do populismo

A luta de classes também é travada no terreno dos conceitos. A última batalha parece ocorrer em torno do termo “populismo”.
por Prabhat Patnaik | Peoples Democracy – Tradução de Luiz Lima
(Foto: Hernán Piñera)

A luta de classes também é travada no terreno dos conceitos. O Banco Mundial, por exemplo, sistematicamente se contrapõe aos conceitos da esquerda por meio de uma novidade tática: utiliza os mesmos conceitos criados pela esquerda, porém conferindo a estes um significado totalmente diferente, o que resulta em significados completamente diferentes daqueles originalmente propostos pela esquerda, ou, no mínimo, torna tais termos suficientemente confusos para que se tornem inúteis para a esquerda. Em qualquer dos casos, o poder conceitual do termo criado para a esquerda é neutralizado.

Por exemplo, o termo “estrutural” costumava ser parte integrante do léxico da esquerda. Enquanto a teoria econômica burguesa da direita preconizava tão somente “deixar as coisas para o mercado [resolver]”, a esquerda nos países do Terceiro Mundo sempre se opôs a tais soluções de mercado, com base na ideia de que, em tais países, os problemas eram “estruturais”; argumentava-se que as estruturas desses países tinham de ser modificadas, acima de tudo, por meio de reformas agrárias que impusessem a redistribuição de terras. As táticas sorrateiras do Banco Mundial garantiram que o termo “ajustamento estrutural” fosse capturado e utilizado, ironicamente, para promover “reformas” pró-mercado, em vez de mudanças nas estruturas agrárias.

Da mesma forma, examinemos o termo “liberalização”. A teoria burguesa de direita sugere que quem quer que se oponha a ela é “não liberal” e, portanto, implicitamente “autoritário” e “antidemocrático”; isto, a despeito do fato de que a “liberalização” tem precisamente o efeito oposto, o de desencadear um período de acumulação primitiva de capital, ao levar a efeito à privação em massa e suprimir os direitos de pequenos produtores, tudo de forma violentamente antidemocrática. É por isso que temos, ironicamente, afirmações como as de que Bolsonaro (que é impiedosamente antidemocrático) está a perseguir “políticas liberais”!

Porém, o desdobramento mais descarado desse método e também o mais malicioso, porquanto influencia parcelas significativas da esquerda, relaciona-se ao termo “populismo”. Esse termo foi utilizado por membros do Partido Operário Social-Democrata Russo, em particular pela ala bolchevique, para referir-se às concepções dos Narodniki em seus debates sobre a estratégia da transformação revolucionária da Rússia. Os Narodniki preconizavam uma transição direta das comunidades rurais (mir) existentes no país ao socialismo. Os bolcheviques, em resposta, argumentavam que os mir não mais existiam como entidades uniformes, pois o capitalismo se desenvolvia rapidamente, e esse desenvolvimento destruía os mir e que, portanto, o recém-surgido proletariado urbano deveria liderar a revolução. O livro O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, de Lênin, sublinhava este ponto.

O termo “populismo” era então empregado para descrever a tendência a enxergar o “povo” como uma entidade uniforme. E a crítica marxista ao “populismo” argumentava que essa visão tinha lugar precisamente em uma época durante a qual cresciam as diferenciações entre o “povo”. Naturalmente, os marxistas utilizam o termo “povo”, como em “ditadura democrática do povo”, mas enxergam o “povo” a ser composto por diferentes classes sociais e não como uma massa indiferenciada.

Bem mais tarde, nos anos 1920, voltou a emergir a visão de que o campo russo era composto de maneira uniforme por camponeses, sem diferenciação em classes sociais. Argumentava-se que as diferenças entre os camponeses correspondiam aos tamanhos das famílias, de tal sorte que o tamanho dos ativos per capita era mais ou menos o mesmo. Um expoente dessa visão foi A. V. Chayanov, que era justamente chamado “neopopulista”, já que ressuscitava a velha concepção populista de um campesinato sem diferenças de classe entre si.

Contudo, pode-se perceber que o termo “populismo” é usado, nos dias de hoje, com sentido muito diferente. De acordo com tal sentido, o “povo” é visto em oposição à “elite”, e, portanto, medidas com apelo “popular” que estejam em desacordo com as concepções da “elite” são defendidas como desejáveis. Esse conceito de “populismo” é de tal forma confuso, que se pretende que dê conta de tudo, desde medidas redistributivas no terreno econômico ao ódio social dirigido contra grupos minoritários.

Para tornar plausível esse conceito incrivelmente elástico e pretensamente abrangente, traça-se uma distinção entre o “populismo de esquerda” e o “populismo de direita”: o primeiro serve para categorizar medidas redistributivas no âmbito econômico, enquanto fomentar o ódio social é classificado como “populismo de direita”.

Entre esses “populismos”, ambos desmistificados, há supostamente um caminho virtuoso livre do “populismo”, e esse caminho do meio, quando o examinamos de perto, nada mais é do que a execução das políticas clássicas neoliberais no reino da economia, e a subserviência à ideologia burguesa no reino da política. O termo “populismo”, nesse sentido e em resumo, está inserido no discurso liberal burguês.

Ao chamar medidas redistributivas de “populismo”, e, portanto, desaconselháveis, pois desperdiçam recursos às custas do crescimento econômico, esse discurso sugere implicitamente que o crescimento econômico é, em última análise, benéfico aos pobres; em resumo, acredita-se no efeito de “gotejamento” (“trickle down”) do crescimento, mesmo com toda a evidência de que tal “gotejamento” é um conceito absolutamente falso.

Ainda assim, muita gente, mesmo na esquerda mundial, utiliza o termo “populismo” nesse sentido liberal burguês. Em particular, utiliza-se tal termo para caracterizar a irrupção da direita que agora ocorre em escala global. Assim, todos os tipos de movimentos fascistas, semifascistas e quase-fascistas e que defendem a supremacia deste ou daquele grupo religioso e deste ou daquele grupo étnico são tratados da mesma forma que movimentos e governos progressistas, que exigem ou implementam medidas redistributivas em favor dos pobres.

Uma consequência de tal caracterização é que ela oblitera por completo o carácter de classe de tais movimentos, e por obscurecer a natureza de classe de tais movimentos ou regimes, acaba por desencorajar toda análise de classe dos mesmos. Assim, o fato de um determinado grupo étnico ou religioso se tornar preponderante e espalhar o ódio na sociedade parece sempre ocorrer de forma súbita ou inexplicável, ou na melhor das hipóteses como algo transitório, sem relação com o capitalismo ou com a configuração de classes que prevalece na sociedade.

Há também uma caracterização paralela de tais movimentos, nomeadamente, como “nacionalistas”. Isso também oblitera distinções de forma crucial, particularmente a distinção entre o nacionalismo anticolonial e o nacionalismo supremacista. Quando se reserva o termo “nacionalismo” para esses movimentos e se “desmistifica” o nacionalismo como se fosse um supremacismo por si só, os nacionalismos anticoloniais ou anti-imperialistas são igualmente “desmistificados”. Com isso, glorifica-se implicitamente a globalização imperialista e trata-se qualquer desvio dessa globalização, qualquer tentativa de pôr em marcha políticas diferentes daquelas determinadas pelo capital financeiro internacional, como “nacionalismo” e, por isso mesmo, reacionário.

No entanto, é um absurdo tratar o “nacionalismo” como uma categoria homogênea. O “nacionalismo” de um Hitler era fundamentalmente diferente de um “nacionalismo” como, por exemplo, o de Gandhi. Temos aqui a utilização de uma categoria homogênea para descrever fenômenos diversos e contraditórios, o que cria enormes dificuldades para os movimentos progressistas emancipatórios. Ainda assim, vastos setores da intelligentsia, em particular da esquerda, são levados a pintar todos os “nacionalismos” com as mesmas cores.

Por vezes, utiliza-se um termo composto, como “nacionalismo populista”, para descrever os movimentos supremacistas de direita que atualmente varrem o mundo. Isso é duplamente equivocado, pois condensa ambas as ambiguidades: a do “nacionalismo” como um mal indiferenciado e o “populismo” como outro mal também indiferenciado.

O termo “populismo” foi assim transformado de seu significado original, ou seja, da visão de um “povo” indiferenciado em termos de classes sociais, em algo muito diferente, que suaviza a violência do supremacismo de direita e a reúne com medidas redistributivas em favor dos pobres, como se pertencessem à mesma tendência. Nesse processo, abandona-se, ainda, o pano de fundo da rica tradição marxista de análise dos movimentos fascistas, semifascistas, protofascistas e supremacistas sob o capitalismo, que percebe o florescimento de tais tendências como uma fortaleza em defesa do capitalismo em tempos de crise aguda. Não é preciso dizer que a burguesia liberal não vai aceitar a análise marxista. Porém, quando setores da esquerda a ignoram e aceitam os termos liberais-burgueses de análise, isso é o equivalente conceitual ao desarmamento.

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