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O verdadeiro Modi: Os assassinatos de muçulmanos representam a “Noite dos Cristais” da Índia?

O resto do mundo demora a perceber a gravidade dos acontecimentos na Índia porque o governo Modi minimizou seu projeto de afastar a Índia do secularismo.
por Patrick Cockburn | Counterpunch – Tradução de Caio Sousa para a Revista Opera
(Foto: Al Jazeera English)

De 9 a 10 de novembro de 1938, o governo alemão incentivou seus apoiadores a queimar sinagogas e destruir casas, lojas, empresas e escolas judaicas. Pelo menos 91 judeus –  e provavelmente muitos mais – foram mortos por apoiadores do partido nazista encorajados por Joseph Goebbels, ministro de esclarecimento público e propaganda nazista, no que ficou conhecido como Kristalnacht – “A noite dos cristais”. Tal fato foi um ensaio decisivo no caminho para o genocídio em massa.

No dia 23 de fevereiro de 2020, em Delhi, multidões de nacionalistas hindus percorreram as ruas queimando e saqueando mesquitas, casas, lojas e empresas muçulmanas. Eles assassinaram e queimaram vivos muçulmanos que não puderam escapar, e as vítimas foram amplamente ignoradas e desprotegidas pela polícia. Pelo menos 37 pessoas, quase todas muçulmanas, foram mortas, e muitas outras espancadas até a morte: um bebê de 2 anos teve suas roupas arrancadas por uma gangue que queria ver se ele era circuncidado – tal como os muçulmanos geralmente são e os hindus não. Algumas mulheres muçulmanas fingiram ser hindus para fugir.

A cumplicidade do governo não foi tão direta quanto na Alemanha 82 anos antes, mas foi relatado que ativistas do Partido Bharatiya Janata (PBJ), liderado pelo primeiro-ministro indiano Narendra Modi, foram a vanguarda dos ataques contra os muçulmanos. Foi publicado um vídeo mostrando homens muçulmanos, cobertos do sangue do espancamento, sendo forçados por policiais a deitar no chão e cantar canções patrióticas. Modi não disse nada por dias e depois fez um vago apelo por paz e fraternidade.

A verdadeira atitude do governo em relação à violência foi demonstrada quando ele transferiu instantaneamente de estado um juiz crítico das ações do governo enquanto o tumulto acontecia. O juiz Muralidhar, do Supremo Tribunal de Delhi, estava ouvindo petições sobre a violência quando disse que o tribunal não pode permitir que outro “1984” acontecesse, referindo-se ao assassinato de 3.000 sikhs por multidões em Delhi naquele ano, após o assassinato da ex-primeira ministra Indira Gandhi por seus guarda-costas sikh. Ele disse que o governo deveria fornecer abrigo para aqueles que foram forçados a fugir e questionou se a polícia estava registrando adequadamente as queixas das vítimas.

O governo diz que a transferência do juiz Muralidhar já havia sido anunciada e afirma que sua rápida realocação não teve nada a ver com as observações feitas pelo juiz.

Acusações de comportamentos fascistas por parte de líderes políticos contemporâneos, similares às dos regimes fascistas na Alemanha, Itália e Espanha nas décadas de 1930 e 1940 não deveriam ser feitas sutilmente. Tais comparações têm sido feitas frequentemente nos últimos anos contra nacionalistas autoritários dos EUA a Filipinas e da Polônia até o Brasil. Muitas vezes, as acusações são realmente críveis ao acusador, entretanto, outras vezes o termo é usado de forma abusiva. Ainda assim, Modi e o PBJ parecem mais próximos do que outros regimes de direita ao fascismo tradicional em seu extremo nacionalismo e prontidão para usar a violência. No centro da agenda do governo Modi está a marca do nacionalismo hindu e uma tentativa incansável de marginalizar ou expulsar os 200 milhões de muçulmanos da Índia. 

O resto do mundo demorou para perceber a gravidade do que está acontecendo na Índia porque o governo Modi minimizou seu projeto de afastar a Índia de seu status anterior de Estado secular e pluralista. O grande número de pessoas afetadas negativamente por essa mudança é gigante: se a minoria muçulmana na Índia fosse um país separado, seria o oitavo país mais populoso do mundo.

A violência em Delhi na última semana de fevereiro decorre do medo e do ódio gerado pelo movimento de pinças dirigido pelo governo contra os muçulmanos na Índia. Uma perna da pinça está na forma da Lei de Emenda à Cidadania, segundo a qual migrantes não-muçulmanos podem ganhar rapidamente a cidadania indiana, mas os muçulmanos não. Ainda mais ameaçador é o Registro Nacional de Cidadãos, que provavelmente privará muitos muçulmanos indianos de sua cidadania. Foram os protestos  e manifestações não violentas que se opuseram a essas medidas que levaram multidões de nacionalistas hindus a encenarem o que estava perto de ser um massacre no início da última semana de fevereiro.

O quão longe Modi e o PBJ irão em sua campanha anti-muçulmanos já está evidente nos estados de Jammu e Caxemira, os únicos estados indianos com uma maioria muçulmana. Regiões que foram sumariamente despojadas de sua autonomia em agosto passado e estão isoladas desde então. Detenções em massa e tortura são a norma de acordo com as poucas testemunhas capazes de relatar o que viram.

Por 150 dias, após o governo revogar o status especial de Jammu e Caxemira, a internet foi cortada e só foi restaurada em um grau muito limitado desde janeiro. As forças de segurança detêm quem eles querem e os membros das famílias desoladas reclamam que não conseguem encontrar seus parentes ou que são pobres demais para visita-los em prisões que podem estar a 800 quilômetros de distância.

O isolamento da Caxemira tem funcionado amplamente do ponto de vista do governo para isolá-la do mundo exterior. Mas faria muita diferença se os eventos fossem mais conhecidos? As queimas e assassinatos em Delhi no última dia 24 foram bem divulgados na mídia europeia e americana, mas considerados com uma certa tolerância internacionalmente: Modi pode fazer negócios com a reputação da Índia como uma democracia decrépita e fazer crer que o sentimento de “violência comunitária” é tradicional na Índia, tal como são os furacões na Flórida ou os terremotos no Japão, e ninguém é realmente o culpado.

Houve uma encorajadora, porém ferozmente reprimida, onda de oposição na Índia à degradação de suas tradições não sectárias. O perigo aqui – e as multidões em Delhi podem ser um sinal disso – é que Modi e seu governo respondem a esses protestos jogando a carta nacionalista hindu de maneira ainda mais forte.

Ao lidar com críticas estrangeiras, o governo pode dizer que, independentemente do seu programa político interno, a Índia está superalimentando o crescimento econômico e isso justifica suas outras falhas. Regimes autoritários, com controle sobre a maioria dos meios de comunicação, costumam fazer tais afirmações e, quando as estatísticas econômicas mostram o contrário, eles simplesmente inventam um novo conjunto de figuras. Um estudo recente da economia indiana observou que, embora o crescimento econômico geral tenha aumentado fortemente, o crescimento de investimentos, lucros, receitas tributárias, importações, exportações, produção industrial e crédito diminuíram muito nos últimos anos.

Em um aspecto, Modi está em uma posição mais forte do que a Alemanha depois da Kristallnacht. À época o presidente Roosevelt respondeu com uma declaração denunciando o antissemitismo e a violência na Alemanha e imediatamente tirando o embaixador germânico dos EUA. O presidente Trump, em uma visita de dois dias à Índia em um momento em que os muçulmanos estavam sendo caçados e mortos a poucos quilômetros de onde ele estava sentado, disse estar satisfeito por Modi estar trabalho “muito duro” para estabelecer a liberdade religiosa no país.

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