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Vamos fazer política fiscal!

O desastre decorrente do Covid-19 (coronavírus) e a iminente recessão global fizeram da política fiscal o clamor universal entre os economistas.
por Michael Roberts | The Next Recession – Tradução de Gabriel Deslandes
(Foto: Rafael Matsunaga)

Como lubrificar as sofridas engrenagens de uma economia capitalista mundial doente? Fazer política fiscal é o clamor universal entre os economistas e tomadores de decisões políticas. O desastre decorrente do Covid-19 (coronavírus) e a iminente recessão global estão forçando as autoridades a pensar em estímulos fiscais.

A política monetária está ficando sem munição e não vinha funcionando de forma alguma para recuperar o investimento, a produtividade e o crescimento das empresas, mesmo antes da epidemia de vírus. O Federal Reserve dos EUA reduziu sua taxa de juros (o piso para todas as taxas de juros) em 0,5% e planeja mais cortes. Ainda tem algum espaço para fazê-lo. O Banco Central Europeu (BCE) pode seguir esse caminho, e talvez o Banco da Inglaterra também. Contudo, esses bancos já têm suas taxas próximas de zero, não tendo, assim, muito mais a oferecer. O Banco do Japão está em zero há anos. O corte do FED não teve efeito algum em parar o colapso das bolsas de valores globais: tudo o que fez foi enfraquecer o dólar.

Portanto, há um clamor pelo estímulo fiscal: isto é, aumento dos gastos do governo e cortes de impostos por meio de déficits orçamentários. O FMI, a OCDE, o Banco Mundial etc., estão pedindo que os governos tomem medidas. O FMI ofereceu US$ 50 bilhões em financiamentos de emergência. Os italianos arrasados anunciaram uma injeção de US$ 4 bilhões, o que significa que o déficit orçamentário anual violará as regras do limite fiscal da Zona do Euro. O novo governo do Reino Unido apresenta seu orçamento e, por certo, deve aumentar os gastos, ainda que a “regra de ouro” de equilibrar as despesas atuais com os impostos seja quebrada. O Congresso americano aprovou um projeto de lei para fornecer recursos para lidar com o vírus e pode haver mais planos de infraestrutura em breve, embora o governo Trump já esteja enfrentando déficits orçamentários significativos graças a seus cortes em impostos corporativos. Até o governo alemão, fiscalmente prudente, anunciou aumento de gastos.

Porém, isso fará alguma diferença? A execução de déficits fiscais e o aumento de gastos evitarão uma recessão global ou, ao menos, reduzirão de forma significativa o impacto sobre os empregos, renda e comércio? Isso é certamente o que esperam os keynesianos e pós-keynesianos (incluindo os da escola da Teoria Monetária Moderna). Veja Paul Krugman, o economista keynesiano mais popular do mundo. Em seu blog no New York Times, ele nos diz que é hora de estímulos fiscais permanentes. Vamos fazer política fiscal!

“Eu proponho que o próximo presidente e o Congresso dos EUA passem a gastar permanentemente um adicional de mais de 2% do PIB em investimento público, em uma definição ampla (infraestrutura, sem dúvida, mas também em coisas como pesquisa e o desenvolvimento infantil) – e não paguem por isso”. Krugman ressalta que a política monetária não funcionará porque a economia dos EUA se encontra agora “em uma armadilha de liquidez, ou seja, uma situação em que a política monetária perde a maior parte de sua tração, se não quase totalmente. Ficamos em uma armadilha de liquidez por oito dos últimos 12 anos; o mercado agora parece acreditar que algo assim é o novo normal”. Engraçado que ele aponte isso após já ter defendido que o dinheiro barato estava tirando o Japão da sua “década perdida” nos anos 2000.

De qualquer forma, a questão é que “a política monetária convencional (ou mesmo a não convencional?) não funciona em uma armadilha de liquidez, mas a política fiscal é altamente efetiva. O problema é que o tipo de política fiscal que você realmente almeja – um investimento público que tire proveito de taxas de juros muito baixas e fortaleça a economia a longo prazo – é difícil de conseguir em curto prazo”. Então, o que também precisamos é de “estímulo fiscal, como o levado a cabo por Jason Furman, que significa, basicamente, distribuir dinheiro – uma boa ideia, dadas as circunstâncias”. No entanto, esse “helicóptero de dinheiro” tem efeito limitado com o tempo, na medida em que chega ao bolso dos consumidores quando é preciso “investir no futuro”.

Portanto, a resposta de Krugman é manter “estímulos centrados no investimento o tempo todo. Isso amorteceria a economia quando ocorressem choques adversos” por meio de déficits orçamentários permanentes com gastos em infraestrutura e emergências. Não há necessidade de se preocupar com o aumento da dívida pública, ainda que ela atinja mais de 100% do PIB nos EUA e os custos de manutenção já estejam sugando recursos dos serviços públicos. Veja bem, as taxas de juros são tão baixas que o serviço da dívida não é problema. Mesmo a 100% do PIB e a taxas de juros nominais de 2%, o custo dos juros é metade do crescimento nominal (real mais inflação) de 4% da economia dos EUA. Portanto, “a longo prazo, a política fiscal é sustentável se estabilizar a relação dívida/PIB. Como as taxas de juros estão abaixo da taxa de crescimento, nossa economia hipotética pode, de fato, estabilizar a relação de endividamento enquanto ocorrem persistentes déficits primários (déficits que não incluem pagamentos de juros)”. Assim, podemos ter um déficit de 2% para gastar em um programa de investimento público sem aumentar o ônus da dívida. “Meu plano de estímulo permanente aumentaria a relação dívida/PIB para apenas 150% até o ano de 2055. Esse é o nível que o Reino Unido excedeu em grande parte de sua história moderna”. Então, tudo bem.

Krugman segue seu habitual pensamento keynesiano de que o efeito “multiplicador” no crescimento devido ao aumento dos gastos mais do que pagaria suas próprias despesas: “o investimento público extra terá um efeito multiplicador, aumentando o PIB. Com base na experiência da década passada, o multiplicador provavelmente ficaria em torno de 1,5, o que significa, em tempos ruins, uma alta de 3% no PIB – e uma rendimento adicional considerável desse bom nível de PIB”.

O problema desse argumento é múltiplo. Em primeiro lugar, pressupõe que o crescimento econômico dos EUA possa ser sustentado em 2% em termos reais, com inflação de 2%. Em uma queda, essa taxa nominal mergulhará e, portanto, a relação dívida/PIB aumentará acentuadamente. Isso poderia levar ao aumento dos custos do serviço da dívida, mesmo com as taxas de juros sobre os títulos tão baixas.

Segundo, não há provas de que déficits “permanentes” funcionem para estimular a economia capitalista. Krugman defendeu essa política para o Japão, e o país asiático tem déficits permanentes há 20 anos, mas não tem conseguido sustentar um crescimento real do PIB – de fato, estava entrando em outra queda imediatamente antes da epidemia. O aumento dos gastos governamentais vai salvar do colapso as companhias aéreas, empresas de energia e outras operações baseadas em viagens? Como isso parará a dramática queda do preço do petróleo, que leva ao colapso do investimento em empresas de xisto e energia em todo o mundo?

Alguns argumentam que os preços mais baixos dos combustíveis vão impulsionar os gastos dos consumidores, tal qual a transferência de renda do governo para as famílias. Contudo, se dizem a você para não viajar, os preços mais baratos das bombas não terão muito impacto. E o que também é esquecido é que 2/3 das transações em uma economia capitalista moderna são de empresa para empresa, não de empresas para consumidores. Então, o que importa são as decisões de investimento e negociação das empresas. Caso sua empresa o demitir devido a uma queda nos lucros, é improvável que você receba do governo uma quantia em dinheiro que o estimule a comprar mais bens e serviços.

Krugman defende um acréscimo de 2% nos investimentos do governo por meio de financiamento do déficit. Caso implementado, isso elevaria o investimento do governo no PIB americano para cerca de 5% – uma alta no pós-Guerra. Todavia, o investimento empresarial e imobiliário é de 15 a 20%. Se ele caísse 25% em uma recessão, o impacto negativo seria o dobro do pacote de estímulos de Krugman. Portanto, a menos que houvesse uma grande mudança do investimento capitalista para o Estado, esses gastos com déficit seriam insuficientes para reverter ou evitar uma queda no investimento capitalista. A China é o único país que já adotou um investimento do governo tão grande e conseguiu de fato reduzir ou evitar uma recessão – como fez em 2008-2009.

Krugman e a maioria dos keynesianos falam apenas sobre estímulos fiscais nas economias do G7. É factível esperar que todas as chamadas economias emergentes recorram a estímulos fiscais? A desaceleração global do comércio e dos investimentos já atingiu as economias emergentes, várias das quais caíram em absolutas recessões. Os mercados emergentes enfrentam um sério problema de “estagnação secular”. O crescimento em quase todos os casos foi muito menor nos últimos seis anos do que nos seis anos anteriores à Grande Recessão. E na Argentina, Brasil, Rússia, África do Sul e Ucrânia, não houve crescimento. Os mercados emergentes que cresceram em 2019 menos do que os mercados desenvolvidos foram Brasil, Uruguai, Turquia, África do Sul, Equador, México, Arábia Saudita e Argentina. Os emergentes que quase superaram os mercados desenvolvidos foram Rússia, Nigéria e Tailândia. O acúmulo de enormes déficits orçamentários nesses países é condenado por instituições como o FMI e provavelmente induziria uma corrida maciça às suas moedas nacionais por investidores estrangeiros. Em vez disso, os governos estão impondo mais medidas de austeridade.

Mais importante, não é correto supor que o multiplicador keynesiano (a proporção entre o aumento unitário do PIB real e o aumento unitário dos gastos reais do governo) seja, de toda forma, alto. Há muitos estudos que o colocam abaixo de 1, ou seja, um aumento de 1% nos gastos governamentais adiciona menos de 1% no crescimento real do PIB. [1]

Como argumentei em publicações anteriores, a chave para restaurar o crescimento econômico é o investimento, e isso depende da lucratividade. Em uma economia predominantemente capitalista, aumentar a lucratividade do capital tem um impacto muito maior no crescimento (o multiplicador marxista) do que os gastos do governo (o multiplicador keynesiano). De fato, mais despesas governamentais com base em mais dívidas ou taxação podem ameaçar a lucratividade do capital. O bloqueio aos gastos do governo pode não ser proveniente de uma dívida pública alta e crescente quando as taxas de juros estão próximas de zero; mas o bloqueio ao investimento empresarial pode muito bem ser causado por dívidas corporativas altas e crescentes quando a rentabilidade do capital é baixa e segue caindo.

A flexibilização monetária fracassou, como já aconteceu antes. A flexibilização fiscal, se adotada, também fracassará. Uma recessão destrói empresas capitalistas mais fracas e demite trabalhadores menos produtivos. O custo de produção diminui, e as empresas sobreviventes à queda têm maior lucratividade como incentivo para reinvestir. O capitalismo só pode sair de uma recessão pela própria recessão.

Notas:
[1] Confira todos esses estudos: https://voxeu.org/article/fiscal-multipliers-during-european-sovereign-debt-crisishttps://voxeu.org/article/fiscal-multipliers-and-fiscal-positions-new-evidencehttps://voxeu.org/article/government-spending-multipliers-and-business-cyclehttps://voxeu.org/article/world-war-ii-america-spending-deficits-multipliers-and-sacrifice.

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