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“Muito fraca, muito tardia, muito falha”: A resposta fracassada do Reino Unido à Covid-19

A negligência política por parte de Boris Johnson, somada ao desmonte do Serviço Nacional de Saúde, explica o número de mortes por Covid-19 no Reino Unido.
por Gabriel Deslandes | Revista Opera
(Foto: Pippa Fowles / No 10 Downing Street)

O Reino Unido é quarto país com maior número de casos de Covid-19 no mundo e o primeiro em número de mortes na Europa. A negligência política por parte do governo Boris Johnson, somada ao desmonte do Serviço Nacional de Saúde – o NHS –, explicaria a posição britânica no ranking global da pandemia. É o que constata uma das mais conceituadas revistas científicas de medicina do mundo, The BMJ. A publicação buscou responder, em editorial, uma dúvida para muitos elementar: como um país com uma saúde pública de reputação internacional pôde errar tanto?[1]

O artigo – assinado pelos médicos Bobbie Jacobson (Universidade Johns Hopkins), Gabriel Scally (Universidade de Bristol) e o próprio editor-executivo da The BMJ, Kamran Abbasi –, que resume a reação do governo britânico ao coronavírus como “muito fraca, muito tardia, muito falha”, recorda que a debilidade do sistema de saúde britânico para enfrentar uma pandemia já era um fato conhecido. Um exercício de simulação de pandemia realizado pelo NHS em outubro de 2016 – chamado de Exercise Cygnus – expôs o despreparo do país para lidar com essa situação de calamidade.

Esse estudo, que, à época, envolveu os principais departamentos governamentais, mostrava a falta de leitos de UTI e a escassez de equipamentos de proteção individual (EPI). O exercício, porém, nunca veio à público porque o governo inglês considerou as descobertas “terríveis demais”. Outros envolvidos na simulação de 2016 alegaram que seu sigilo se justificava por preocupações com a “segurança nacional”. Assim, como ressalta o editorial, as medidas corretivas necessárias não foram tomadas pelas autoridades britânicas.

Lentidão e negligência

Enquanto a Covid-19 se espalhava no começo do ano pela Ásia, e a OMS declarava emergência de saúde pública de interesse internacional, Boris Johnson e seus assessores se mantinham confiantes de que seu país estava “bem preparado”, mesmo com o Exercise Cygnus tendo indicado o oposto anos antes. Estudos chineses começaram a ser publicados atestando a alta taxa de letalidade do novo coronavírus, mas o governo inglês parece ter ignorado esses alertas.[2] Em fevereiro, a doença já impactava a Itália, e as autoridades do Reino Unido ainda consideravam seu nível de ameaça como “moderado”.

No dia 3 de março, quando o país tinha 51 casos confirmados, o gabinete de Boris Johnson apresentou um plano de ação de quatro etapas: conter o vírus, atrasar seu contágio, investigar sua origem e mitigar o impacto da doença. Na semana seguinte, enquanto Itália, Espanha e França já implantavam medidas de confinamento total, o Conselho Consultivo Científico para Emergências (SAGE), órgão que provê apoio científico e técnico ao governo britânico, pediu ao primeiro-ministro que rejeitasse um lockdown semelhante ao da China. Para o conselho, “implementar um subconjunto de medidas seria o ideal”, e ações mais rígidas poderiam provocar uma “grande segunda onda epidêmica assim que fossem suspensas”. Liderado por Patrick Vallance, principal consultor científico do governo britânico, o SAGE apresentou essa posição ao Comitê de Contingências Civis (conhecido como comitê COBRA), responsável por coordenar a resposta do Estado às emergências nacionais ou regionais.

Em 12 de março, seguindo seu plano de quatro etapas, o governo britânico anunciou a mudança da fase de “contenção” para a de “atraso”, e o médico-chefe do Departamento de Saúde e Assistência Social, Chris Whitty, disse que o Reino Unido não testaria mais casos suspeitos leves, mas sim “focaria toda a capacidade de testagem para identificar pessoas com sintomas em hospitais”.[3] Conforme explica o editorial da The BMJ, as equipes do NHS 111 e da Public Health England que trabalhavam no rastreamento de contatos com a Covid-19 ficaram confusas e sobrecarregadas.

Assim, a abordagem padrão da OMS – contenção, localização, teste, tratamento e isolamento – foi abandonada, enquanto portos e aeroportos permaneciam com entrada aberta. No dia 14 de março, não havia qualquer plano futuro para localização de casos, testagens e rastreamento de contatos a nível comunitário, e a aquisição e a entrega de testes se tornaram limitadas. O Reino Unido, um dos primeiros países a desenvolver um teste preciso para detectar o coronavírus em pacientes, havia realizado, ao todo, apenas 25 mil testes até o dia 11 de março. Além disso, ao contrário do exemplo da Coreia do Sul, que usou uma rede de laboratórios públicos e privados para o processamento dos testes, os britânicos recorreram a somente um laboratório – a unidade de Colindale da Public Health England, no norte de Londres, que estava processando cerca de 500 testes por dia.

Em 19 de março, o governo rebaixou o status de ameaça do coronavírus do nível 4 – o mais alto nível de ameaça – para o 3 e deixou de considerar a Covid-19 como doença infecciosa de alta consequência. Como resultado, o padrão de equipamentos de proteção exigido para trabalhadores em hospitais e para pacientes com doenças não infecciosas foi baixado.

Somado a isso, sob o pretexto de liberar leitos hospitalares, o Departamento de Saúde manteve uma política desastrada de mandar idosos de hospitais para casas de repouso mesmo sem que tivessem feito o teste da Covid-19. As autoridades de saúde britânicas alegaram que esses idosos poderiam ser admitidos nas casas de repouso, “desde que fossem mantidas diretrizes rígidas para impedir a propagação do vírus”. Essa política, feita sem testagem, permitiu que o coronavírus se espalhasse e iniciasse uma segunda epidemia a nível comunitário.

De acordo com os editorialistas da The BMJ, a piora definitiva da situação aconteceu graças à recusa inicial de Patrick Vallance de propor o fechamento de escolas e a proibição de aglomerações. O principal conselheiro científico alegava que o governo tinha razões bem pensadas para não implementar “medidas atraentes”. Como resposta às críticas que recebia, Vallance passou a defender a abordagem de que era preciso desenvolver a “imunidade do rebanho”, afirmando que só será possível conter o impacto da Covid-19 se parte da população a contraí-la, criando assim resistência à doença. Por esse modelo, cerca de 60% da população do Reino Unido poderia ser infectada e, desse modo, ocorreria naturalmente uma imunização total, já que o vírus não passaria para uma pessoa cujo organismo já tivesse desenvolvido defesa imunológica ao patógeno.

A aplicação dessa política muda após ser publicado um estudo da Imperial College com a estimativa de que 250 mil pessoas poderiam morrer nesse cenário, algo que poderia ser revertido com os medidas efetivas de distanciamento social.[4] Quando Boris Johnson anunciou oficialmente medidas restritivas para controlar a circulação de pessoas, já era tarde. Os editorialistas da The BJM acreditam que essa demora significou dois meses de tempo desperdiçados sem preparação e prevenção por parte do governo britânico, enquanto, na Itália, o lockdown fez com que a transmissão do coronavírus fosse reduzida pela metade.[5]

Além do mais, segundo a The BJM, o governo não conseguiu proteger os funcionários do NHS e os assistentes sociais ao não fornecer corretamente quantidades suficientes de EPIs. De acordo com um levantamento da British Medical Association, mais da metade dos médicos que trabalham em ambientes de alto risco denunciaram escassez ou falta de suprimento de máscaras faciais adequadas. No início de abril, 65% desses profissionais não tinham acesso à proteção ocular, e 55% disseram sentir-se pressionados a trabalhar mesmo sem os EPIs. Somente 12% dos médicos nos hospitais afirmaram se sentir protegidos contra o vírus em seus ambientes de trabalho

Austeridade ou só incompetência?

Ao questionar a razão por trás da sucessão de erros que levou o Reino Unido a esse ponto dramático, The BMJ ressalta que toda a resposta britânica à pandemia foi coordenada centralmente por um conjunto de grupos científicos consultivos, liderados por Patrick Vallance e Chris Whitty. O problema é que o SAGE e o Grupo Científico de Influenza Pandêmica de Modelagem (SPI-M), responsáveis por monitorar epidemias futuras, são dominados por modeladores matemáticos e epidemiologistas e não contam com especialistas em implementação de políticas públicas de saúde. Também há a denúncia de interferência política de consultores do governo Boris Johnson nas deliberações internas do SAGE. O principal assessor do primeiro-ministro, Dominic Cummings, e o consultor de dados científicos, Ben Warner, participaram de reuniões do SAGE, o que compromete a independência do órgão.

Para a The BJM, tal interferência direta de políticos do governo dentro do SAGE é consequência de um processo de desmonte da infraestrutura da saúde pública britânico. Uma reorganização do sistema de saúde, resultante da Lei de Saúde e Assistência Social de 2012, gerou uma perda crítica de funcionários e cargos sêniores.[6] Essa legislação de 2012 consiste em uma reforma organizacional no NHS que fez com que a administração de departamentos de saúde se descentralizasse e passasse para autoridades locais. Embora pouco tenha modificado o atendimento básico prestado à população, a medida multiplicou os agentes intermediários privados atuando no NHS, entre compradores e prestadores de serviços.

Assim, a Agência de Proteção à Saúde, as equipes regionais de saúde e os observatórios regionais foram abolidos, e os funcionários remanescentes acabaram incorporados a uma agência do Departamento de Saúde, a Public Health England. Essa agência, criada pela própria Lei de Saúde e Assistência Social, não dispõe de autonomia e liderança na gestão da saúde pública. A estrutura do NHS pós-reforma de 2012, marcada pela extinção dos modelos básicos de saúde territorial, representou um novo estágio no processo de liberalização dos serviços públicos, iniciado por Margaret Thatcher em 1979. Desde 2012, quase 1 bilhão de libras esterlinas (ou 1,2 bilhão de dólares) também foram cortadas dos orçamentos de saúde.

Como reerguer a saúde pública britânica na pandemia

Os editorialistas da The BMJ consideram que a pandemia da Covid-19 tornou flagrante no Reino Unido o impacto de décadas de austeridade. A situação se tornou ainda mais grave quando o governo do país retardou a aplicação de políticas de isolamento social e foi obrigado depois a minimizar os danos iniciais causados pelo relaxamento nas medidas de distanciamento físico.

Entre as ações recomendadas pela The BMJ combater o coronavírus, estão: 1) a contratação de técnicos especialistas para o SAGE, excluindo consultores políticos; 2) a apresentação de uma estratégia clara para a descoberta de casos, testagem, rastreamento de contatos e isolamento social; 3) recursos adequados para equipes locais de saúde, que conhecem suas comunidades e a natureza dos surtos em suas localidades, com suporte do NHS e da Public Health England; 4) a realização dos testes, monitoramento de dados e produção de relatórios otimizados a partir dos hospitais e da atenção primária de saúde.

Para os autores, uma resposta eficaz à pandemia requer não só rapidez e clareza, mas passa também pelo comprometimento do governo para com a cooperação internacional. Dessa forma, seria necessário compartilhar informações científicas e dúvidas com outros países que implantaram medidas duras para enfrentar a Covid-19. Essa seria uma maneira de restaurar a confiança pública perdida, assumindo a responsabilidade de tomar decisões políticas difíceis.

Acima de considerações sobre o achatamento da curva de contágio ou a modelagem da epidemia, The BMJ reitera que combater a Covid-19 significa proteger vidas e comunidades. Para isso, o Reino Unido demanda um governo realmente comprometido com o bem-estar da população. Esse comprometimento passa necessariamente pela reconstrução urgente das infraestruturas frágeis e fragmentadas de seu sistema de saúde pública, o que impediria de fato que mais dezenas de milhares de vidas fossem perdidas.

Fontes:

[1] – Scally Gabriel, Jacobson Bobbie, Abbasi Kamran. The UK’s public health response to covid-19. BMJ 2020; 369:m1932.
[2] –  Xu XW, Wu XX, Jiang XG, et al. Clinical findings in a group of patients infected with the 2019 novel coronavirus (SARS-Cov-2) outside of Wuhan, China: retrospective case series. BMJ 2020; 368:m606.
[3] – Mahase E. Covid-19: UK holds off closing schools and restricts testing to people in hospital. BMJ 2020; 368:m1060.
[4] – Imperial College COVID-19 Response Team. Report 9: impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce covid-19 mortality and healthcare demand.
[5] – Gatto M, Bertuzzo E, Mari L, et al. Spread and dynamics of the COVID-19 epidemic in Italy: Effects of emergency containment measures. Proc Natl Acad Sci USA 2020; 117:10484-91.
[6] – Devakumar D, Mandeville KL, Hall J, Sutaria S, Wolfe I. Government changes are jeopardising public health. BMJ 2016; 352:i1662.

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