O território brasileiro abriga, sozinho, 20% da água de todo mundo. Ainda assim, neste país, pátria de 211 milhões de pessoas, aproximadamente 35 milhões não têm acesso à água tratada, e 100 milhões vivem sem acesso à coleta e ao tratamento de esgoto. Dados como estes, que demonstram que metade do Brasil do século 21 vive ainda no 19, foram usados como desculpa nesta semana para a aprovação do marco legal do saneamento básico no Senado, por 65 votos contra 13.
O projeto, que agora segue para sanção presidencial, facilita a privatização do serviço de água e esgoto, e extingue o atual modelo de contrato entre companhias estaduais e municípios, os chamados contratos de programa. Assim, para que determinado município feche um contrato para a prestação do serviço, obrigatoriamente terá de fazer licitações em que competirão empresas públicas e privadas – atualmente é possível fazê-las, mas não é obrigatório. “O que nos preocupa muito é que de fato essa concepção do projeto corre o risco de desestruturar as companhias estaduais de saneamento, com o setor privado se interessando mais pelas cidades grandes, pelas cidades ricas, e vamos ficar com o Estado sem a possibilidade de aplicar de maneira mais ampla o subsídio cruzado, que permite que cidades maiores, cidades mais ricas, apoiem o serviço das cidades menores”, diz Marcos Montenegro, coordenador do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS). Ele cita o exemplo do Tocantins: “Lá há um caso muito significativo, porque o Estado vendeu o controle acionário da companhia estadual e uma empresa privada assumiu todos os municípios, mas devolveu os menores ao Estado, para que ele resolvesse o problema dos municípios que são menos rentáveis.”
Outro ponto levantado para a aprovação do projeto foi a pandemia do coronavírus, que para alguns senadores demonstra os perigos da falta de saneamento e a urgência de expansão do atendimento à população. “Essa utilização da pandemia é um escracho, um deboche. Todos os exemplos internacionais dão conta de que a privatização dificultou o acesso à água e ao tratamento esgoto, porque houve elevação de tarifas”, responde o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ). Ele relembra o caso de sua cidade natal, Nova Friburgo, onde a distribuição da água e esgotamento sanitário foi concedida à empresa privada norte-americana no final da década de 90. “Com o aumento de preço da conta de água, essa empresa deixa de realizar os investimentos, porque as pessoas não pagavam a conta, que foi lá pra cima, e a empresa dizia que tinha um ‘desequilíbrio econômico-financeiro’ porque não se arrecadou aquilo que se pretendia”, diz. “Por anos ficamos como? Conta cara e sem os investimentos pactuados.”
Água e saneamento no mundo: público ou privado?
Uma pesquisa de 2017, intitulada “Mapa das Remunicipalizações”, realizada por onze organizações, dá conta de 267 casos de “remunicipalização” ou “reestatização” de sistemas de água e esgoto no mundo num intervalo de 17 anos. O aumento das tarifas, promessas não cumpridas e falta de transparência depois das privatizações são alguns dos efeitos que a pesquisadora Satoko Kishimoto apontou como razões para a decisão de reestatizar. A tendência foi observada em cidades como Berlim, Paris, Budapeste, Buenos Aires e La Paz.
De acordo com Kishimoto, um outro problema é que a reversão das privatizações costuma acarretar custos para o Estado. “Quando as autoridades locais entram em conflito com uma companhia, vemos batalhas judiciais sem fim. Em geral, as empresas podem mobilizar muito mais recursos, enquanto o poder público tem recursos limitados, e muitas vezes depende de dinheiro proveniente de impostos para enfrentar o processo”, diz. Ela cita ainda o caso de Berlim, onde metade do sistema hídrico foi privatizado em 1999. Depois de um referendo em 2011, a privatização foi revertida, em 2013 – mas com um custo de 1,3 bilhão de euros ao Estado. “É um caso muito interessante, porque a iniciativa popular conseguiu motivar a desprivatização. Mas isso gerou uma grande dívida para o Estado, que vai ser paga pela população ao longo de 30 anos.”
Esse custo é também lembrado por Marcos Montenegro, do ONDAS: “Essas medidas têm um custo social na sua implementação, e um custo social à posteriori, no seu desmonte, para uma política que seja mais democrática. Infelizmente esse quadro é o quadro que decorre no saneamento da prevalência da política neoliberal no País. Em vários países do mundo essa política já foi criticada, em especial nessa situação de pandemia – mesmo governos que tinham o credo neoliberal como sua cartilha estão revendo essa posição para o enfrentamento da pandemia.” Ele destaca que, no caso de privatizações, muitas das companhias que acabam por ganhar as licitações não são companhias de água e saneamento, mas fundos de pensão e de investimentos. “Não estão preocupadas em aumentar a cobertura.”
Um caso interessante é o do Chile. No país, de 1875 até o começo da década de 1980, o saneamento e distribuição de água permaneceu majoritariamente nas mãos do Estado, que garantiu níveis crescentes de distribuição e saneamento. A partir dos anos 80, é adotado um sistema misto, em que mais empresas estatais são criadas e continuam provendo os serviços, mas a participação privada acionária é permitida. O desenvolvimento da infraestrutura em todo o período aumentou a cobertura de água e esgoto, ainda que, a partir de 1980, às custas de grandes aumentos tarifários. No final da década de 90, quando 95% do fornecimento de água e sistema de esgoto era público, a cobertura era de 99,3% e 91,6% respectivamente. É a partir daí que um processo de privatização mais amplo é realizado, com vistas a aumentar o nível de tratamento de água – ponto em que a lucratividade era maior e os investimentos eram menores -, sem se preocupar com fornecimento e esgotamento, que já tinha uma infra-estrutura básica.
Em um longo trabalho sobre o tema, os pesquisadores María Angélica Alegría Calvo e Eugenio Celedón Cariola avaliaram que as privatizações no Chile ocorrem em uma realidade bastante diferente da do Brasil. “As empresas puderam conectar de uma só vez todos os usuários [à água], o que tem uma altíssima rentabilidade, e é diferente de quando as empresas nascem do zero e têm de fazer todos os investimentos.” Em seu trabalho, notam também que “as informações demonstram que aqueles investimentos que são menos rentáveis foram sendo deixados de lado, como investimentos de substituição” depois das privatizações.
No país também prevalece uma grande variação nas tarifas de acordo com a região – mas as tarifas mais altas não significam apoio às regiões mais pobres. No geral, de acordo com a Superintendência de Serviços Sanitários do país (SISS), nas regiões mais populosas os serviços são mais baratos, enquanto as menos populosas – que costumam ser as mais distantes e mais empobrecidas – as tarifas são mais caras. Há também nessas regiões graves problemas de abastecimento. Um estudo publicado neste ano pela Fundação Amulén chamado “Seca no Chile: a brecha mais profunda”, demonstra que as regiões em que prevalece a falta de água potável são as regiões mais pobres do país. Em janeiro desse ano, quando Ministério de Obras Públicas do país decretou 88 comunas como zonas de escassez hídrica, o Senado chileno analisou um projeto que visava declarar a água como bem de uso público. 24 senadores votaram a favor, e 12 contra (todos da coalizão do presidente Sebastián Piñera, Chile Vamos), mas a matéria não foi aprovada porque necessitava de ⅔ dos votos.
68% do mercado da água chileno está nas mãos de quatro empresas privadas; outros 25% estão em mãos de oito empresas concessionadas (que têm o direito à exploração das concessões, mas não controlam os ativos diretamente); 5% do mercado está com a única empresa estatal ainda existente (no município de Maipú) e outros 2% do mercado estão em mãos de pequenas empresas. Isso demonstra que a privatização não necessariamente significa a maior concorrência – ele pode significar, pelo contrário, a monopolização e a formação de cartéis.
Estado e investimento
De acordo com o senador Tasso Jereissati, relator do marco legal do saneamento no Senado, para que o acesso ao saneamento e à água fosse universalizado no país seriam necessários investimentos entre 500 bilhões e 700 bilhões de reais. Com a abertura para o capital privado, a expectativa do marco legal é que esses investimentos sejam feitos pela iniciativa privada, com o fim de universalizar o acesso a água e esgoto até 2033. Ainda de acordo com o marco, caso as empresas não consigam fazê-lo até esse ano, terão a possibilidade de estender o prazo por mais sete anos. Tomando a maior previsão de investimentos – 700 bilhões – e o menor prazo – 13 anos – seria necessário um investimento de cerca de 58 bilhões/ano.
Para Marcos Montenegro, da ONDAS, a universalização dependerá da disponibilidade de recursos estatais para o financiamento, ainda que seja feita por empresas privadas. “O principal, que precisamos ter claro, é que o déficit atual tem uma cara: e essa é a da população mais pobre, que vive nas periferias da cidade, em pequenas cidades isoladas e no campo. Esse tipo de déficit as empresas privadas não têm vocação a atender, porque é uma população que tem dificuldade para pagar o custo do serviço. Precisaria garantir recursos do Estado para que isso pudesse acontecer”, diz. “Em muitos lugares nós temos problemas mais complexos do que simplesmente instalar a rede de água e esgoto. Em locais como a Baixada Fluminense, por exemplo, onde há problemas de alagamentos e inundações frequentes, nós temos situações onde o não-equacionamento da drenagem não vai permitir que o esgoto sanitário funcione adequadamente. Então é uma questão mais complexa, que o tratamento do saneamento como negócio não vai resolver”.
Para o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), essa é uma das razões pela qual a universalização pode ser tocada pelo Estado. “Por que não fazer um grande programa nacional público de investimento e de liberação de recursos por parte dos bancos públicos brasileiros? Não existe nenhuma vedação para que as empresas privadas ou as estatais de outros países que venham a assumir o setor de água e de saneamento no Brasil façam empréstimos com os bancos públicos brasileiros. Se essas empresas ou estatais de outros países podem, por que esses empréstimos para ampliação, com metas de universalização, não podem ser feitos para as estatais brasileiras? Podem, mas aí tem que ter vontade política e um projeto de desenvolvimento voltado para isso.”