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O Estado no imaginário latino-americano

A evidência nos diz que apesar da publicidade de posições individualistas, os latino-americanos mantêm o desejo por um Estado presente.

A evidência nos diz que apesar da publicidade de posições individualistas, os latino-americanos mantêm o desejo por um Estado presente. Por Sergio Pascual | Celag – Tradução de Ciro Moreira para a Revista Opera
Uma criança pedala sua bicicleta em uma comunidade na periferia da cidade de Ica, no Peru. (Foto: grayeme)

Os campões do consenso neoliberal desejaram criar durante décadas um imaginário em que as democracias haviam deixado de ser funcionais em relação à disputa ideológica e o conflito entre as classes. As regras da economia política teriam se fossilizado e as eleições seriam meros instrumentos na divisão do poder para gerir essas regras do Estado, e não para muda-las. A denominaram “fim da história”.

Mas a realidade é teimosa. As imensas desigualdades existentes na América Latina impossibilitaram às suas elites econômicas sufocarem as demandas por mudanças nas regras da divisão dos recursos nacionais. O fim da história não acabou de chegar a um continente em que as oscilações nos ciclos políticos demonstraram que, por trás da mera disputa eleitoral entre os partidos, existe algo mais profundo: as regras de divisão da riqueza de uma nação. E falar de nação, desde seu surgimento em Vestfália, é falar de Estado.

Deste modo, os aparatos político-comunicacionais das oligarquias econômicas latino-americanas capturaram o Estado e o destinaram a manter seu modus vivendi (modo de vida) histórico, o rentismo extrativista. Para eles, os recursos administrativos do Estado se destinaram a duas funções prioritárias: 1) garantir o direito da propriedade e a seguridade jurídica conexa e 2) combater, de forma policial, a instabilidade e o descontento ou, o que é o mesmo, manter a segurança da produção.

Entretanto, ainda que se tenha gastado recursos e somas incontáveis para convencer aos cidadãos de que estas deveriam ser as funções do Estado e não outras, o exemplo das sociais-democracias europeias e as experiências bem sucedidas de redistribuição latino-americanas demonstravam pertinentemente o contrário. O ideal neoliberal conseguiu penetrar eficazmente neste contexto?

No CELAG, temos desejado entender o status quo da disputa ideológica central da política latino-americana e temos feito essa pergunta em nossas últimas enquetes em três nações do continente com trajetórias históricas muito diferentes e democracias consolidadas: México, Chile e Argentina. Deveria existir um Estado protetor ou este deveria se colocar de lado e liberar as forças do mercado? O bem-estar e o progresso de cada um depende do papel redistributivo do Estado ou exclusivamente do esforço pessoal? O governo do Estado deveria ser dirigido por especialistas – meros gestores – ou em políticos com orientação ideológica?

A primeira surpreendente conclusão é que, apesar da heterogeneidade das populações estudadas, encontramos padrões similares no que se refere à concepção geral do papel do Estado como ferramenta chave para a redistribuição da riqueza. Ou, o que é o dizer o mesmo, mexicanos, argentinos e chilenos têm uma concepção comunitária da vida em sociedade, uma concepção em que o Estado é o principal instrumento articulador das vontades coletivas; o principal agente para a realização de horizontes compartilhados. Dois de cada três mexicanos e quatro em cada cinco argentinos pensam que deve contribuir mais quem mais tem e 93% dos chilenos estariam de acordo com um imposto sobre as grandes fortunas.

Em termos mais abstratos, a convicção se mostra consistente. Dois de cada três mexicanos pensam que o Estado deve intervir na economia para corrigir as injustiças. Esta cifra sobe a 84% dos chilenos que consideram o Estado como o impulsor necessário da economia e 90% no caso da Argentina.

No que se refere à corrente liberal de opinião que aponta a tecnocracia como o horizonte desejado de governo, um governo de gestores e técnicos frente aos problemas e misérias da difamada política, o padrão de comportamento nos mostra uma resposta vinculada com a conjuntura política. Efetivamente, a classe política com governos com alto respaldo recebem o apoio de seus cidadãos, ao invés dos especialistas. Assim, incluindo tempos de pandemia, em momentos de forte demandas de certezas e do auge de opiniões científicas, apenas quatro de cada dez mexicanos e um de cada cinco argentinos (um de cada três no caso dos jovens) depositariam as decisões em mãos de especialistas.

No caso chileno, pelo contrário, com um governo muito golpeado e com a avaliação de sua gestão a um nível baixo mínimo, a tendência se inverte e dois de cada três chilenos são partidários de arrancar o controle do governo e depositar as decisões em mãos de especialistas.

Finalmente, o indicador que nos trouxe resultados mais heterogêneos foi aquele que indaga sobre a penetração do que podemos denominar de american way of life (modo de vida americano), uma espécie de calvinismo sociológico segundo o qual o progresso individual corresponderia exclusivamente ao esforço pessoal e não às condições de contexto social e ao papel do Estado na redução de desigualdades e na provisão de oportunidades iguais.

Frente a esta questão, até dois de cada três mexicanos creem que os resultados na vida dependem exclusivamente do esforço individual, uma cifra que sobe para sete de cada dez entre os jovens. E no oposto extremo encontramos o caso argentino, em que os individualistas se reduzem a quatro de cada dez com uma correlação evidente com a educação e classe social. No caso do Chile, muitas vezes identificado como o país exemplo do paradigma neoliberal na América Latina, há uma situação intermediária, com sua população dividida em duas partes iguais entre os individualistas e os comunitaristas. No caso do país andino, a tendência está fortemente enviesada pela posição ideológica: apenas um de cada três chilenos de esquerda para cada dois de três chilenos de direita têm posições individualistas no que se refere ao sucesso pessoal.

Finalmente, quando abordamos a filosofia política no concreto e perguntamos pelo papel do Estado na garantia de direitos como saúde, educação, a resposta se torna unânime. É absolutamente hegemônica a demanda dos latino-americanos por um Estado que garanta e providencie estes direitos, e há um grupo residual daqueles que defendem a gestão individual dos mesmos.

A evidência empírica estaria nos dizendo, portanto, que apesar do esforço comunicativo, publicitário e elaborado de marketing político em favor de posições individualistas, de um Estado mínimo e de uma versão liberal da sociedade em que o Estado se limite a garantir os direitos de primeira geração, os cidadãos latino-americanos mantêm viva a esperança de construir sociedades igualitárias e reconhecem o papel fundamental do Estado para seu sucesso.

A hora da luta para as forças progressistas latino-americanas parece pronta. Não será no espaço de discursos floreados, na construção de complexos relatos e na obsessão pelo novo linguajar da pós-política que se conseguirá o apoio das maiorias.

As maiorias, contrariamente, parecem seguir encantando-se com suas antigas demandas, por questões materiais concretas e a defesa da justiça. Talvez já seja a hora de voltar a levantar as suas bandeiras e reivindicações históricas.

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