Camisa suada, bafo de cerveja, fumaça de cigarro, braços se encostando nas arquibancadas, os sons característicos de uma pelada de futebol, os passos, a bola rolando e chutada, a vibração da trave, o vento que graças a deus bate de vez em quando, trazendo cheiro de mato, no usual calor do Rio de Janeiro… interrompido por uma bomba que explode, toucas ninjas portando armas que sobem uma quadra, crianças, adolescentes, adultos e idosos correndo, e tiros disparados em direção a corpos negros.
Caio Gabriel Vieira de Silva foi assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro na madrugada de domingo (16), no Morro dos Macacos, com quatro tiros de fuzil pelas costas. Estava assistindo um campeonato de futsal quando os policiais realizaram o assalto. A versão policial é que Caio era um traficante, apesar de inexistirem antecedentes. Sua tia contesta, afirma que ele havia sido parado pela polícia na semana anterior, e mesmo assim foi liberado. Os demais familiares e amigos apontam que era trabalhador, ia ser pai em alguns meses, era querido na lanchonete que fazia bicos, e tinha até entrevista de emprego marcada para a semana, o que, no mínimo, não parece ser o perfil de um soldado do tráfico.
Mais um caso de violência policial no Rio. Mais um caso em que as instituições republicanas, que alguns insistem em defender como norte estratégico, funcionam normalmente. O governador se omite, como que reafirmando o ensejo que sempre deu, desde as eleições, à barbárie policial. A Polícia dá umas declarações aqui, uma nota ali, esconde os autores como pode, os defende de todas as formas e deixa que o tempo produza esquecimento. O MP pega uma pá, vê que o tapete já está cheio de poeira, e nada sequer esconde; deixa como está.
O novo personagem dessa história, porém, retira a localidade da trama tragicamente repetida. Desde junho, o Supremo Tribunal Federal, o mesmo que “defende a República, a democracia e as instituições” dos ataques do governo de Bolsonaro, vem reiterando decisões que proíbem operações policiais nas favelas enquanto durar a pandemia. A trama é complexa. Demonstrar fraqueza não parece ser uma boa forma de “enfrentar” os ataques do presidente, que já chegou a pedir a destituição dos ministros em uma conversa com generais. Por outro lado, a facilidade com que alguns policiais, de um batalhão qualquer, em uma comunidade qualquer, desobedecem a decisões “supremas” de nosso “supremo” tribunal, não parece ser uma boa demonstração de força.
Um tribunal de papel
Vejamos a cronologia da decisão que, do ponto de vista carioca, parece ser a mais ignorada da República.
O Supremo Tribunal Federal, desde 05 de junho, proibiu, por meio de liminar, todas as operações policiais durante o estado de pandemia. A forma jurídica, porém, não comporta a desnaturalização de uma instituição de repressão como a polícia. Por isso, escondido de olhos inocentes, naquele espaço que não cabe nas manchetes das notícias online, vinha que as operações poderiam sim acontecer, desde que “excepcionais” e com autorização do Ministério Público. O mesmo Ministério Público que sempre pede o arquivamento de assassinatos cometidos a sangue frio, com bala na nuca de cima para baixo. Um belo critério.
Desde então, a liminar foi confirmada pelo presidente do STF, Dias Toffoli, em 21 de julho, e referendada por maioria de 9 a 2 em 05 de agosto, no início deste mês. O ministro Fachin disse ainda que, caso seja realmente necessário fazer uma operação durante a pandemia, que seja feita com “cuidados especiais para preservar a saúde dos moradores”. A morte se aproxima com balas esterilizadas com álcool em gel.
Ou seja, uma decisão fraca. Fadada a ser ignorada e mostrar debilidades ao inimigo. No Rio de Janeiro, e provavelmente nos demais estados, o Ministério Público e a Polícia Militar são um organismo só, numa eterna ciranda sobre caveiras, corpos e sangue. É como se o Supremo Tribunal assinasse a berros para todos ouvirem que é um tribunal pífio, débil, carcomido, capenga, mequetrefe, em definhamento… E me faltam adjetivos que não sejam passíveis de processo.
Os dois que votaram contra, na votação de 05 de agosto, foram Alexandre de Moraes, recém tornado querido de um certo “progressismo” por “combater o bolsonarismo das redes”, e Luiz Fux, que em maio deste ano disse que o Tribunal está “vigilante” contra “agressões às instituições” da democracia, além de estar empenhado em construir “uma visão republicana de país”. Na visão das excelências, nossas instituições estão a salvo.
As instituições funcionam normalmente
Em uma curta fala, carregada de indignação, Maria da Conceição Vieira, uma das tias de Caio, mostra que sua compreensão da sociedade é superior à dos ministros. Não uma superioridade técnica, com artifícios argumentativos que fazem valer seu ponto. Mas uma superioridade real, que em poucas palavras faz a realidade se materializar na mente do leitor.
“Meu sobrinho foi morto covardemente. A voz superior fica sendo de quem tem o poder, que no caso são os policiais. Por que morando dentro de uma favela a pessoa não tem dignidade, não tem personalidade e é bandido? Não é assim”, disse.
Numa operação, o poder está nas mãos dos policiais. Numa favela, parece que tudo é uma operação policial. E é essa a instituição encarregada, pelo menos desde a ditadura militar, de apontar quem tem e quem não tem personalidade. Personalidade, aqui, não é o jeito ou a característica de alguém. É a própria capacidade de ser uma pessoa, dotada de direitos; um sujeito. Aquele que tem direitos, deveres, vontades. Maria é categórica: na favela, a polícia nega a subjetividade das pessoas. É como se o instituto da personalidade não tivesse eficácia segundo a cor, a classe e o território. Se a personalidade não tem eficácia, todo o Direito é ineficaz, visto que a subjetividade jurídica – a capacidade de ser pessoa – é a base de todo direito.
Se o jurista marxista Pachukanis identifica que a base do sistema jurídico burguês é a reprodução das noções de igualdade e liberdade, escondendo uma realidade de brutais desigualdades, no Brasil o buraco é mais embaixo. Aqui, o Direito diz quem tem direitos e quem não tem; separa os iguais dos desiguais. A desigualdade é prescrevida e garantida pelo próprio direito. Não é escondida, mas escancarada.
Como um charlatão que sabe da farsa prestes a ser descoberta e, por isso, desenvolve a farsa ainda mais, nossos ministros se apressam a determinar, no dia 17 de agosto, dia seguinte ao assassinato de Caio, uma nova proibição. Agora, serão banidos os helicópteros. Mas claro, da mesma forma que antes, sempre podendo ser utilizados em “excepcionalidades” – mas para a polícia tudo é sempre excepcional! Não questionam, em momento algum, o fundamento da operação. Não dizem que a operação que resultou na morte de Caio seguiu sem nenhuma “irregularidade” em relação às decisões anteriores.
Questionados pelos jornalistas, os policiais apontaram que não houve “operação”, mas “confronto”, que algumas horas antes haviam sido atacados por bandidos e, então, se esgueiraram pela favela para achá-los e abatê-los. Só que todo morador de comunidade bem sabe que as operações continuam acontecendo, fato que é possível ver, ouvir, sentir e cheirar por toda a cidade maravilhosa.
Para os que creem – e é uma religião bem desenvolvida, com seus messias e santos – que o extermínio da população negra pode ser juridicamente resolvido, cabe dizer que não há medida jurídica que possa conter um exército em guerra. Numa guerra, ao direito cabe proteger seus soldados que atuam na intenção de aniquilar o inimigo, negando a estes sua personalidade e permitindo que as armas sejam disparadas em acordo com as instituições e com álcool em gel.
Sim, as instituições estão funcionando normalmente. Não como dizem alguns, sob um conceito abstrato e ridículo, mas na sua forma real de existência, com seus aparelhos de dominação inscritos numa realidade em que existem uns e outros, nós e eles, trabalhadores e patrões, traficantes e cidadãos de bem, polícia e bandido. Em que uns matam e outros morrem, e outros deixam matar e fingem que não veem. O sonho do progressismo infantil que deseja uma “volta à normalidade” se refere apenas a substituir um presidente tosco por um que saiba fingir melhor. E, talvez, o sonho do conservadorismo, segundo o qual o socialismo é mal pois “não permite a diferença”, seja esse: que a diferença seja tamanha que uns tenham direitos e outros não. Que uns possam viver, e outros não.
Um guardião sem armadura, escudo e espada
Diz qualquer guru do “centrão” e da esquerda – esta às vezes se confunde com aquele – que nossa democracia depende, hoje, das supremas decisões de nossos supremos ministros. Que são eles os guardiões da constituição e os paladinos da defesa das instituições normais. A verdade é que a nossa Suprema Corte não consegue proibir uma lógica de extermínio apenas com papéis. Não consegue, tampouco, impedir o meio com que essa lógica se materializa, por meio de operações policiais semanais em comunidades periféricas.
Por que conseguiria, então, impedir um golpe ou “arroubo autoritário”? Se o ministro Dias Toffoli realmente impediu uma articulação golpista em maio de 2019, não consta em auto nenhum; não se utilizou de caneta e papéis. Também não fez uso de mobilização popular alguma. Do que se utilizou, então, o ministro Dias Toffoli? Seriam suas palavras doces o suficiente para desencorajar um militar prestes a mobilizar tropas para destituir o presidente? Infelizmente, nenhum “grande” veículo de mídia se pôs a descobrir o que aconteceu nesta reunião.
O que sabemos, porém, é que dela não saíram decisões judiciais. Essas só valem para reafirmar a dominação sobre o povo, mas são incapazes de “conter o poder”, típico de um “Estado de Direito”. O Supremo Tribunal Federal já não é capaz de impedir nem mesmo “um cabo e um soldado” em uma operação policial qualquer. As “frentes” que afirmam que repousam nas togas a defesa de nossa democracia devem se perguntar porque aqueles que não garantem sequer uma defesa mínima da vida poderão garantir, agora, a defesa de nosso povo.