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O Terceiro de Maio de 1808, de Francisco Goya

Um quadro antiguerra de Francisco de Goya, pintado sobre a invasão de Bonaparte à Espanha, representou uma revolução em estilo e conteúdo.
Um quadro antiguerra de Francisco de Goya, pintado sobre a invasão de Bonaparte à Espanha, representou uma revolução em estilo e conteúdo. Via The Morning Star | Tradução de Caio Sousa para a Revista Opera
O Terceiro de Maio de 1808, de Francisco Goya.

Em 1814, o artista Francisco Goya pintou o quadro “O Terceiro de Maio de 1808”, também conhecido como “Os fuzilamentos do Monte Príncipe Pio”.

O quadro comemora a resistência espanhola aos exércitos de Napoleão durante a ocupação de 1808 na Guerra Peninsular, e se tornou uma imagem arquetípica dos horrores do conflito.

Foi uma comissão que Goya solicitou aos Bourbons, que estavam prestes a ser restaurados ao trono da Espanha após o calamitoso interlúdio da invasão napoleônica durante a guerra de 1807-1814.

Embora fosse um liberal no coração, Goya foi um pintor da corte real em todas as épocas. Ele foi funcionário dos Bourbons por algumas décadas, bem como um retratista requintado e perspicaz, depois na corte do irmão de Napoleão, Joseph – uma conexão que ele negou veementemente –, e depois pintou para os Bourbon novamente.

Napoleão representou um aríete para a nascente burguesia europeia contra o antiquado feudalismo continental e suas instituições e Goya, como a maioria dos liberais espanhóis, sentia afinidade com os objetivos modernizadores da revolução francesa, de secularidade e democracia vinculados pelo lema “Liberdade, igualdade, fraternidade ou morte.”

Mas quando as tropas de Napoleão entraram na Espanha em novembro de 1807, foram mais como invasores do que como libertadores e, embora inicialmente não tenha havido oposição, eles aplicaram uma repressão brutal a qualquer sinal de resistência, como a revolta fútil de fevereiro de 1808 incitada pelos partidários de Fernando VII, que resultou na imposição do irmão de Napoleão, Joseph, como rei da Espanha.

Joseph Bonaparte como rei da Espanha, pintura de François Gérard, 1808.

Os liberais da Espanha de repente se viram face a uma escolha impossível: entre a esperada modernização e colaboração com as forças francesas de ocupação ou a resistência patriótica.

A subsequente insurgência popular de 2 de maio de 1808 em Madrid foi reprimida com grande ferocidade. Centenas de rebeldes capturados foram baleados pelos franceses no quartel militar do Monte Príncipe Pio e em outros lugares da metrópole.

Na época, Goya estava na cidade e embora quase surdo, deve ter ficado profundamente comovido ao testemunhar seus horrores. Dois anos depois, ele secretamente começou a trabalhar em uma série devastadora de gravuras intituladas “Consequências fatais da guerra sangrenta da Espanha com Bonaparte e outros caprichos enfáticos” (Desastres da Guerra).

Elas foram fortemente influenciadas pelo livro de Jacques Callot de 1633 com 18 gravuras, “As misérias e infortúnios da guerra”, uma coleção que é o primeiro exemplo de arte antiguerra na Europa. “Desastres” foi tão escaldante que a série não seria publicada até 1863, 35 anos após a morte de Goya.

Uma das gravuras do livro de Callot, de 1633.

O dia 3 de maio de 1808 antecede a “Balsa da Medusa” de Theodore Géricault em apenas cinco anos, mas tem a mesma carga emocional e envolvimento com a política da época. Segundo o historiador da arte Kenneth Clark, ”foi a primeira grande imagem que pode ser chamado de revolucionária no estilo, no assunto e na intenção”.

Em termos de composição, a divisão dramática da tela em áreas de escuridão e luz separa o monólito sem alma e ameaçador das figuras distintas de soldados com rifles de suas vítimas desesperadas.

Enquanto os carrascos sem rosto estão de costas para o observador, a figura central da tela – de mãos estendidas em incredulidade com o assassinato que está sendo cometido –  tem as características de um trabalhador comum, assim como seus companheiros.

Eles resumem o terror elementar da guerra e seu massacre indiscriminado. Os cadáveres aparecem em primeiro plano e as figuras no fundo aguardam sua vez neste ato desenfreado de assassinato à queima roupa.

Uma cicatriz na palma da mão estendida da figura principal, embora não centralizada, foi interpretada como estigma em uma possível alusão ao martírio de Cristo. Seu sentimento de indignação com sua humanidade profundamente sentida emana cada centímetro da tela, com os principais elementos de composição ensaiados em várias gravações de “Desastres”.

Goya parece estar pintando com grande urgência, usando da “memória muscular” onde as anotações do pincel com pinceladas rápidas mas precisas definem de forma deslumbrante as formas ou a anatomia. A paleta de cores noturnas e restritas aumenta um pavor palpável.

Em um afastamento técnico radical de seu elaborado retrato da corte e anunciando suas últimas “pinturas obscuras”, Goya abraça o espírito de liberdade emocional e filosófica inaugurada pelo Romantismo. Ele articula isso com a paixão crua nesta visão de tirar o fôlego.

O impacto subsequente da pintura pode ser rastreado desde “A Execução do Imperador Maximiliano” de Eduardo Manet até o “Massacre na Coreia” de Pablo Picasso, a série “Execução” de Andrzej Wroblewski ou a “A execução de 26 comissários de Baku” de Isaak Brosky.

A Execução de Maximiliano, de Édouard Manet. 1808.
Massacre na Coreia, de Picasso. 1951.
A Execução dos 26 Comissários de Baku, de Isaak Brosky. 1925.

As rebeliões populares, mesmo aquelas em seu apoio, como a de maio de 1808, não quebraram muito o gelo com os Bourbon. Eles mantiveram a pintura longe da vista do público por quase 40 anos.

Mas a poderosa mensagem antiguerra do Terceiro de Maio de 1808 permanece inalterada até hoje e, tragicamente, o mesmo acontece com sua pertinência. O quadro vai ressoar até depois que a última guerra for travada.

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