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Massacres na Colômbia: a sombra do paramilitarismo

Na Colômbia, o governo não implementa sua parte dos acordos de paz, enquanto novos massacres e a atuação paramilitar assombram o país.
Na Colômbia, o governo não implementa sua parte dos acordos de paz, enquanto novos massacres e a atuação paramilitar assombram o país. Por André Ortega | Revista Opera
(Foto: Leon Hernandez)

Quatro anos depois de ratificado um tratado de paz entre o governo colombiano e o exército guerrilheiro das Forças Armadas Revolucionárias de Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), a Colômbia escurece sob a sombra da violência – a tinta lançada sobre os papéis apaga com o sangue derramado sobre a terra. Foram 55 massacres em 2020, nos quais  218 pessoas foram assassinadas.

Desde o dia 21 de agosto, o país entrou em uma jornada intensiva de massacres. Ocorreram três em menos de 24 horas, com o número de 17 vítimas. Estes primeiros acontecimentos foram respondidos por protestos em várias cidades, aos quais se opôs a repressão estatal. Mas os protestos não serviram para deter a onda de massacre, nem a onda de violência.

Entre os dias 5 e 6 de setembro, ocorreram dois massacres em menos de 24 horas. No dia 10 de setembro, dois irmãos camponeses foram assassinados em Bolívar, município do Departamento de Cauca.

Na terça feira, dia 9 de setembro, o advogado Javier Ordoñez foi morto por policiais de Bogotá enquanto estava imobilizado no chão, com o uso de diversas cargas elétricas, em um vídeo que causou grande indignação pública. Durante a noite ocorreram manifestações na capital colombiana, onde cinco manifestantes morreram. Foram presas 80 pessoas  e a capital foi militarizada, com o reforço de pelo menos 300 soldados da Brigada 13 do Exército e mais 850 policiais de outras regiões. Os protestos continuaram na quinta-feira, quando morreram mais duas pessoas em Bogotá e três em Soacha.

A unidade policial responsável pela morte do advogado – um posto de Comando de Ação Imediata (CAI) – foi incendiada e destruída por manifestantes. Pelo menos outros dez CAIs foram incendiados durante as manifestações.

Em abril, as tropas de choque também foram usadas contra manifestantes que pediam comida no distrito Ciudad Bolívar, no sul de Bogotá, e no oeste de Medellín, no 8º Distrito da cidade. Além das marchas reivindicando comida, ocorreram saques em várias partes de Medellín, na capital de Sucre, Sincelejo, e na capital de Vichada, Puerto Carreño. Também ocorreram saques de caminhões nas estradas que ligam Córdoba e Antioquia.

No sábado, 29 de agosto, Jorge Iván Ramos,  ex-combatente das FARC-EP, foi assassinado no município de Santa Rosa, totalizando em 225 o número de desmobilizados do grupo guerrilheiro assassinados após a ratificação do acordo de paz em 2016. Era o segundo membro da direção nacional do partido Fuerza Alternativa Revolucionaria del Común (FARC), e na época da guerrilha comandou a frente 37 usando o codinome “Mario Morales”. No dia 31 de agosto, outros dois líderes sociais ligados ao partido FARC, Fernando de Jesus Gaviria e Omaira Alcaraz, foram assassinados no sul de Bolívar. Até fevereiro deste ano, pelo menos 41 familiares de membros desmobilizados da guerrilha foram assassinados.

Na contagem geral de líderes e ativistas sociais assassinados, incluindo defensores dos direitos humanos, o instituto Indepaz falava do número 872 mortos desde a assinatura dos acordos de paz até fevereiro deste ano. Em setembro, o número de vítimas já ultrapassa mil.

Os assassinatos políticos parecem ter uma motivação clara – líderes comunitários, líderes políticos ou ativistas de direitos humanos seriam alvos por suas atividades. No entanto, os massacres inspiram terror por atingir pessoas não necessariamente notórias por sua atividade política ou social: em Samaniego, nove jovens que estavam em uma reunião foram assassinados em um massacre, a maioria deles estudantes universitários.

Em um dos massacres que gerou mais comoção, cinco adolescentes foram mortos em Cali (um deles com golpes de arma branca). Dois vigilantes de um canavial foram presos, acusados como responsáveis.

No município de Aguachica, do departamento de César, três pessoas foram mortas dentro de uma casa; uma mulher grávida, seu marido e um menor de 17 anos.

No dia 7 de setembro, cinco pessoas foram executadas em um salão de bilhar na zona rural do município de Zaragoza, no departamento de Antioquia.  Uma das vítimas era o responsável pelo salão e as outras quatro, segundo informações preliminares de um integrante do Processo Social de Garantias, eram mineiros da região. O massacre possivelmente foi cometido pelo grupo narco-paramilitar Clan de Golfo, e segundo autoridades regionais a zona é disputada por este grupo e o grupo Los Caparros, que é um racha do primeiro.

A maioria dos massacres foi em Antioquia, que na lista de departamentos com mais massacres é seguida por Cauca e Nariño. Massacres do mesmo tipo ocorreram nos anos anteriores, colocando em dúvida a implementação dos acordos de paz, mas este ano eles têm se destacado pela intensidade com que vêm ocorrendo desde agosto.

O presidente Iván Duque e sua equipe fazem questão de corrigir a mídia, argumentando que não se deve usar o termo “massacre”, e sim o nome “correto”, que seria “homicídio coletivo”; uma operação semântica aparentemente desesperada, porém acompanhada de dados que dizem que ocorreram mais “homicídios coletivos” entre 2010 e 2018 do que entre 2018 e 2020.

Andrei Gómez Suárez, pesquisador da Universidade de Bristol, disse em entrevista à RT que os massacres revelam uma “aliança perversa entre estruturas ilegais e legais do Exército colombiano, da polícia e setores políticos regionais” e acusou o governo de não financiar a implementação dos acordos de paz.

A revista Asuntos Legales, pertencente ao jornal colombiano La Republica, publicou no dia 9 de agosto que as fontes de financiamento do Acordo de Paz “executaram menos recursos do que o estipulado”. A própria Controladoria Geral da República chegou à conclusão de que a execução de orçamentos inferiores aos previstos para 2019 e 2020 podem atrasar a implementação dos acordos.  Além disso, a não aprovação e quantificação dos Planos Nacionais Setoriais impede até mesmo a avaliação dos recursos necessários para a implementação do Acordo Final. A CGR também notou a paralisação do processo de transferência de terras nos programas de reincorporação, bem como a ausência de recursos para “implementação de mecanismos de participação eleitoral”. Para o órgão, os Planos de Ação de Transformação Regional também correm riscos de sustentabilidade financeira.

Os Planos Nacionais Setoriais estipulam projetos em diversas áreas como eletrificação, moradia, conectividade, polidesportivos, infraestrutura sanitária e educacional e transporte em áreas rurais. Os Planos de Ação de Transformação Regional, por sua vez, contêm Programas de Desenvolvimento com Enfoque Territorial (PDET), que deveriam conduzir programas especiais nas regiões mais afetadas pela pobreza e pelo conflito armado, com 170 municípios priorizados e organizações participativas que compõem o sistema. Sem financiamento, esse sistema tende a ruir.

Em 2017, o Marco Fiscal de Médio Prazo estipulava que 85% do orçamento de paz seria destinado à Reforma Rural Integral (RRI), que é o primeiro ponto do Acordo Final e a questão política mais importante das negociações de paz, por se referir ao problema central na origem do conflito colombiano: o problema da terra e do campesinato. A RRI foi a mais afetada pela falta de recursos.

Apesar da proposta inicial se referir aos mais pobres e à participação comunitária, a direita colombiana tenta mudar os programas na direção contrária. Assim, empresas privadas poderão receber recursos e executar programas da implementação da paz, que já são redistribuídos em formas controladas por grupos políticos regionais e municipais, incluindo clãs oligárquicos historicamente ligados à violência paramilitar.

O Eldorado paramilitar

O governo teme que estes acontecimentos sejam situados como prova de que a paz fracassou, de que há uma extensão da guerra, por isso tenta enquadrar os acontecimentos em uma dinâmica restrita de segurança pública, falando em grupos criminosos e disputas de tráfico, citando disputas territoriais envolvendo os criminosos e guerrilheiros; quer a todo custo evitar o tema do paramilitarismo. Primeiro devido ao posicionamento de direita e extrema direita desses grupos, segundo que o uribismo reivindica o êxito de ter desmobilizado o paramilitarismo em 2006 e não quer admitir o próprio fracasso. Da mesma forma, se evita questionar a possibilidade dessa violência ser sistemática e estar associadas a máfias políticas locais e regionais, que fazem parte de uma articulação nacional maior com o uribismo.

As infames Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC)  podem ter se dissolvido como uma entidade política e seus principais líderes podem ter se retirado da vida pública, mas o paramilitarismo prossegue como estratégia contrainsurgente e de afirmação de poderes econômicos diversos, especialmente em relação ao controle da terra. Em suas várias fases, o paramilitarismo deixou de ser um sujeito político nacional coeso e de face pública como na época das AUC; quando se desmobilizou; passou por uma reorganização e crise no período Juan Manuel Santos, crise que se traduziu em uma aproximação de novo tipo com o mundo criminoso narcotraficante, para se reafirmar agora no governo Duque.

Sobre a relutância do governo em tratar do conflito e sua insistência em falar de “homicídios coletivos”, Maria Clara Calle Aguirre escreveu para o France 24 e comentou em seu Twitter que há uma disputa na qual o governo tenta atribuir como causa dos massacres as disputas de narcotráfico, enquanto especialistas refutam dizendo que está não é a única causa e que o termo “massacre” é o mais correto por se referir ao conflito que o governo quer negar.

Os massacres na Colômbia surgiram nos anos 80 como tática de forças paramilitares para intimidar populações de territórios controlados pela guerrilha, em algumas regiões do norte e do centro do país. Nos anos 90, ressurgiram com mais força e por todo país, marcando a estratégia paramilitar de contra-insurreição. Seu resultado principal, no entanto, não foram as chacinas e as milhares de vítimas assassinadas, mas os deslocamentos forçados nos quais os paramilitares obrigaram populações diversas a abandonar suas terras.

Do ponto de vista estratégico, a lógica era privar a guerrilha da sua base de apoio e limpar zonas para ofensivas do Exército, que vinham em seguida. Mas os despovoamentos também correspondiam a interesses econômicos e empreendimentos agroindustriais. A 17ª Brigada Militar ajudou as AUC a realizar a primeira grande tomada de terra em 1997. A Operação Genesis deixou 25 mil hectares sob o controle paramilitar, terra que foi dividida entre os comandantes e vendida para companhias privadas. As vítimas foram comunidades afrocolombianas de Cacarica, no departamento do Chocó. O Bloco Norte das AUC, comandado por Rodrigo Tovar (codinome “Jorge 40”), cumpriu um papel especial para os interesses da Chiquita Brands (antiga United Fruit Company).

O testemunho do fazendeiro e líder paramilitar Raúl Hasbún, condenado por assassinato em 2011 (processo relativo ao assassinato Alirio de Jesús Alzate Arroyave e Pedro Antonio Mosquera, trabalhadores bananeiros e militantes da União Patriótica, em 1996) foi muito importante para a exposição da chamada “paraeconomia”: a relação de fazendeiros, mineradores, latifundiários e companhias privadas com o paramilitarismo. A Glencore e a Chiquita facilitaram o uso de navios para traficar armas, por exemplo; empresas de áreas diversas, de lingeries a refrigerantes, também ajudaram a financiar o paramilitarismo colombiano. Mais de 7 milhões de pessoas tiveram que abandonar suas casas e se tornaram migrantes internos.

Mas se o paramilitarismo surge nos anos 80 com esquadrões da morte dedicados a proteger narcotraficantes contra grupos rebeldes que faziam sequestros e para exterminar os membros do partido político Unidade Patriótica (primeira grande tentativa das FARC passarem à legalidade), nos 90 ele cresce em importância política e militar. As elites políticas regionais encontram no paramilitarismo uma forma de resistir tanto aos guerrilheiros como aos efeitos de negociações e reformas nacionais. O paramilitarismo cumpriu um papel fundamental na desarticulação dos partidos liberal e conservador, o que por sua vez foi pré-condição para o surgimento do uribismo.

No final da década, a opção das elites locais foi se aliar ao paramilitarismo como forma de resistir e sabotar o acordo de paz que o governo nacional de Andrés Pastrana tentava fazer com as guerrilhas, o que incluía largas “zonas desmilitarizadas” sob controle da guerrilha e onde ela poderia fazer uma tentativa mais profunda de aplicar seu projeto político e se aproximar da população civil. Ao mesmo tempo, os paramilitares interviram na política municipal e estadual através de ameaças e assassinatos, chegando a impor candidaturas únicas. Em Medellín, Diego Murillo Bejarano (codinome “Don Berna”) tomou o controle da segurança da cidade e passou a exercer influência nos nichos eleitorais periféricos. No departamento de Meta, as eleições de 2002 e 2003 foram escandalosamente marcadas pelo paramilitarismo: de cinco candidatos ao cargo de governador, três deles foram obrigados a renunciar às suas candidaturas por ameaças, e logo depois das eleições o candidato perdedor é assassinado por não ter obedecido às ordens de retirada. No departamento Norte de Santander, Salvatore Mancuso impôs o controle na capital e nos municípios, assassinando o ex-prefeito de Cucúta, Pauselino Camargo, e o candidato a governador Tirso Vélez. Em Arauca, os paramilitares pavimentaram o caminho para as eleições de 2003 obrigando mais de 7 mil pessoas a saírem de suas casas e cometendo 432 assassinatos, incluindo dois congressistas entre as vítimas. No Magdalena Medio, no sul da Antioquia, frustraram as negociações do governo com o ELN, elegeram deputados nas eleições nacionais e fizeram o prefeito do principal município da região, Barrancabermeja. Os exemplos se multiplicam conforme passamos por cada região.

Os grupos evoluíram de uma posição taticamente reduzida à do esquadrão da morte. As Autodefensas Campesinas de Córdoba y Urabá (ACCU), fundadas pelos irmãos Castaño, lideraram um processo de unificação ou, melhor dizendo, federalização, centrada em seu grupo a partir de 1997, criando as Autodefensas Unidas de Colombia (AUC). Em maio de 1998, organizam uma segunda cúpula entre as autodefesas e emitem um documento declaratório, assinado pelo líder Carlos Castaño, que define a organização como um “movimento político-militar de caráter anti-subversivo em exercício do direito à legítima defesa, que reclama transformações do Estado, mas não atenta contra ele”. Os paramilitares tinham uma rede política que ia desde prefeituras até a assembleia nacional, contando com pelo menos 35% dos parlamentares – frequentavam lugares da alta sociedade, fizeram discursos no parlamento e participaram de programas de televisão.

Castaño, com suas incursões e massacres, conseguiu acima de tudo mudar completamente o cenário político em Urabá, intimidando sindicatos e outros tipos de organização social, acabando com a União Patriótica e acuando as FARC para uma posição isolada, defensiva e periférica.

O surgimento das AUC também se deve a um mecanismo estatal de legitimação de milícias privadas a mando de latifundiários e empresários rurais, do projeto CONVIVIR, que foi criado pelo presidente César Gavíria em 1994 e encontrou seu principal defensor em Álvaro Uribe, à época governador da Antioquia.

Álvaro Uribe, que virou presidente em 2002 e governou por oito anos, tem amplas relações com o paramilitarismo, consolidadas antes de chegar à presidência e mantidas depois. Seus projetos econômicos, a estratégia militar e o Plano Colômbia tinham um vínculo causal com a atuação paramilitar, mas Uribe mesmo mantinha vínculos mais próximos com os chefes paramilitares, a ponto de quase ter se comprometido em 2006 com o escândalo da parapolítica, que derrubou vários membros de seu grupo político. Por isso, Uribe usou seu poder e influência nos meios paramilitares para promover uma desmobilização da AUC; ao mesmo tempo, ajudou a “queimar” alguns dos velhos líderes paramilitares que estavam se tornando um problema por diversos motivos, tanto por sua relação com o uribismo como por seu controle do narcotráfico.

Essa desmobilização foi aceita pelos líderes nacionais do paramilitarismo por, dentre outras razões, as FARC-EP terem sofrido sérios revezes em comparação com a potência nacional que representavam dos anos 90 até o início dos anos 2000, controlando vastos territórios e se organizando mais como um exército do que como uma guerrilha. No entanto, a desmobilização não foi um sucesso total: ela acabou com a AUC como um ator político nacional com face pública, mas alguns setores não entregaram as armas¹ e os paramilitares conservaram parte de sua força militar.

Pessoas foram pagas para se apresentar no processo de desmobilização como “ex-paramilitares”, enquanto comandantes médios preservavam suas forças de forma clandestina e cada poder municipal preservava um núcleo duro de combatentes. Aí reside a origem dos “novos” grupos paramilitares que hoje voltam a dar as caras, sendo o maior deles um sucessor do paramilitarismo de Urabá, as Autodefensas Gaitanistas de Colombia (AGC), chamada de “Clã do Golfo” (nome que estaria mais de acordo com a especialização deste grupo no narcotráfico).

A AGC também é associada à reorganização do negócio das drogas em Medellín, da rota Colômbia-México-EUA.

A manutenção do paramilitarismo não ficou evidente só quando passou a se falar das AGC, mas já estava clara pelo menos no caso dos Aguilas Negras

Estes novos grupos paramilitares (de história diretamente ligada aos velhos) tem uma predileção por punições contra civis, ao usar recursos como panfletos e cartazes que ameaçam abertamente retaliações, além de anunciar “limpezas” de “ladrões, viciados e subversivos”.

O Aguilas Negras já realizou atentados individuais na capital colombiana, Bogotá. Em 2016, professores, líderes sociais e professoras do Cauca receberam panfletos ameaçadores assinados pelo grupo. No panfleto se lê: “Sentença de morte para guerrilheiros, têm o tempo contado, ou se vão ou morrem. Os seguintes filhos-da-puta estão declarados objetivo militar junto de suas famílias e colaboradores.

Jornalistas servis do castrochavismo, sabemos que se encontram camuflados em todos os meios de comunicação que servem a um processo de paz onde o traidor Santos está entregando o país ao narcoterrorismo.

Declaramos objetivo militar a toda Marcha Patriótica Cauca, professores da Unicauca (…) dirigentes Asoinca, ASPU, CIMA, ACIN, Rota Pacífica das Mulheres, ACIT, Cococauca, Junta Patriótica. (…)”.

Nos dias de hoje, na primeira semana de setembro, 751 camponeses foram expulsos de suas terras em Isla Amargura, em Cáceres, Antioquia, por obra do “Clã do Golfo”, que deu um prazo de duas horas para que os habitantes se retirassem. O acontecimento foi relatado pelo jornalista Alex Macias e por uma reportagem da TeleAntioquia. Nos últimos anos, se efetivaram episódios do mesmo tipo – em 2016, ocorreram 46 migrações forçadas.

Os grupos justificam o nome de “auto-defesas” dizendo que não escolheram as armas por vontade própria, mas por legítima defesa frente a “um Estado incapaz de garantir a vida e os bens de seus associados”. Esta é a principal marca discursiva e retaliações são justificadas por esta chave: vilarejos são punidos por “ameaçar a vida” dos paramilitares ou “contribuir com a ameaça”, ao permitir, por exemplo, penetração de outros grupos. Não possuem, dessa forma, um programa ideológico ou mesmo um projeto de poder da mesma natureza dos grupos de guerrilha.

Vemos agora o uso da ferramenta de terror contra comunidades em processo de paz e transição, contra as organizações territoriais, as comunidades desmobilizadas, juntas comunitárias, entidades indígenas e entidades responsáveis pelo processo de mudança de cultivos (da coca para algum outro tipo de lavoura).

Ao mesmo tempo que ocorrem esses massacres, o uribismo passa por uma crise. O ex-presidente Álvaro Uribe é o centro de um longo processo legal precisamente por seus vínculos com o paramilitarismo – como se não bastasse o processo legal, em 2020 foi lançada através do Telegram uma série produzida pela atriz e roteirista britânica Emma Thompson sobre Uribe e seus vínculos com a guerra suja, Matarifeː Un genocida innombrable. Na primeira semana de agosto, a Corte Suprema da Colômbia decretou a prisão domiciliar preventiva de Álvaro Uribe por “possíveis riscos de obstrução da justiça”, suspeitando de manipulação e intimidação de testemunhas. Os Estados Unidos se manifestaram pedindo que Uribe possa se defender em liberdade – o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, chamou Uribe de “herói” em seu comunicado.

Os pactos foram feitos para serem observados?

A violência gera uma dinâmica de sabotagem do processo de paz, não só pelo clima sangrento que paira sobre toda sociedade, mas por estabelecer a insegurança entre aqueles que estavam em processo de transição; tanto a organização política dos ex membros das FARC-EP como as comunidades afetadas. O problema fundamental de ausência do Estado nas comunidades e rincões segue o mesmo, como era antes do acordo de paz.

Os assassinatos de membros do novo partido FARC e dos desmobilizados, bem como de outras partes envolvidas como signatárias do processo de paz e transformação, são sintomas do fracasso do ponto 2 do Acordo Final, especialmente a seção 2.1.2.1, que dispõe sobre a criação de um Sistema Integral de Segurança para o Exercício da Política.

Enquanto os dirigentes do partido FARC cumprem com o ponto 3.3 do Acordo Final, de reintegração na vida civil, o ponto 3.4, que fala das “garantias de não-repetição”, não está sendo implementado. Ele reconhece o fenômeno do paramilitarismo e propõe medidas concretas para combatê-lo, incluindo a criação de uma Unidade Especial de Investigação. Em suas palavras, o acordo dispõe sobre “garantias de segurança e luta contra as organizações criminosas responsáveis por homicídios e massacres, ou que atentam contra defensores e defensoras dos direitos humanos, movimentos sociais ou movimentos políticos, incluindo as organizações criminosas que foram denominadas como sucessores do paramilitarismo e suas redes de apoio, e a perseguição de condutas criminosas que ameacem a implementação dos acordos e a construção da paz”.

A despeito dos acordos, o governo atual reluta em sequer reconhecer o fenômeno paramilitar e se baseia em uma plataforma política hostil aos processos de paz. O governo tenta despolitizar os acontecimentos recentes falando de narco-criminalidade ou atribuindo o problema aos remanescentes e dissidências das FARC-EP, ou ainda da guerrilha ELN.

Pacta sunt servanda (os pactos devem ser observados), como dizem há muito tempo, e o Acordo Final deveria se fazer valer como uma realidade instituinte. Rebus sic stantibus, alguém acrescentou todavia, lembrando que pactos devem ser respeitados “estando assim as coisas” – “as coisas” mínimas, no caso, é o serviço à segurança dos desmobilizados que o Estado deve ao pacto que assinou, mas pelo visto nem segurança, nem reforma rural, nem as estruturas previstas pelo acordo estão sendo implementadas.

Paz e dissidência 

É possível estabelecer uma correlação entre a onda de violência e a desmobilização das FARC-EP? Em regiões como o Vale do Cauca, o fim do exército guerrilheiro gerou um vácuo de poder e uma nova dinâmica de violência, em que vários grupos armados passaram a competir pelo território, especialmente grupos despolitizados concentrados na questão do controle de fatores econômicos.

Do antigo grupo armado restam dissidentes, continuístas e renegados (isto é, tanto elementos que pretendem continuar de alguma forma a luta das FARC-EP como elementos que se “desideologizam” mas não depõem as armas).  Os continuístas são os que se separaram do processo de paz para continuar na insurgência de bandeira política, liderados por Iván Marquez e agora também por Jesús Santrich, que anunciaram uma “Segunda Marquetalia” (referência à república camponesa de Marquetalia que está nas origens das FARC).

Os renegados passaram por um processo de conversão ao paramilitarismo, transformando até mesmo sua estética e se utilizando da capacidade militar para realizar atividades de delinquência, se opondo à substituição de plantios

Existe um tipo de dissidência em uma espécie de lugar de transição, cujo principal exemplo é o grupo liderado por Gentil Duarte, que tem as Frente Primeira e a Sétima sob seu comando. Gentil Duarte se retirou das negociações de Havana por considerar que faltavam garantias de segurança. Seu projeto político não é tão claro, apesar de disputar com o grupo da Segunda Marquetalia e manter uma identidade rebelde. É lugar de transição pois provavelmente levará para uma das duas opções anteriores. Em março de 2020 a pesquisadora ambiental Estefania Ciro comentou que Gentil Duarte mostrou uma “permissividade em relação à propriedade de larga escala que não existia nas antigas FARC”; especula-se se Gentil Duarte estaria se associando a interesses pecuários.

Os grupos diversos variam na sua identificação com a antiga bandeira das FARC-EP. São chamados de “Grupos Armados Organizados Residuais” (GAOR) ou Grupos Armados Pós-FARC (GAPF). Atualmente, as dissidências representam cerca de 10% do efetivo do antigo grupo.

Com a falta de garantias de segurança para desmobilizados, pode se esperar que mais deles voltem a se levantar em armas. Aqui, na lógica do “pacta sunt servanda, rebus sic stantibus”, podemos imaginar que a própria direção do partido FARC pode retornar para a luta armada por considerar que o Estado não cumpriu sua parte do acordo. Mas a realidade governa antes das leis escritas, e a correlação de forças escreve as leis: dificilmente o partido FARC pode simplesmente voltar à estaca anterior. Grandes grupos de seus ex-combatentes, desmobilizados e desarmados, estão confinados em assentamentos de reincorporação que são devidamente guardados pelo Exército. Outros, que não estão nessas estruturas, podem simplesmente preferir outro meio de vida: seja outra forma de militância política ou prosseguir em suas vidas privadas por qualquer outra parte do país. Mesmo os que continuam armados ou tenham disposição em retomar armas não necessariamente responderão a um chamado político da direção do partido FARC, e podem procurar outras opções de vida também na criminalidade. É preciso atentar para a palavra “desmobilização”: a situação mudou e as formas anteriores de hierarquia, articulação e coerção não existem mais, e uma das provas disso é precisamente a existência dos grupos armados residuais; pequenas colunas que não entregaram as armas se “libertaram” das FARC-EP e agora podem usar suas armas para perseguir objetivos individuais, econômicos.

O pacto degenerou? As FARC-EP cumpriram mais que 98% do que acordou, sendo o ponto mais importante o fim das hostilidades; o governo não cumpriu cerca de 75%. Para os acordos, a participação política não é só uma questão de segurança para quem depõe as armas e faz parte de movimentos sociais: o acordo também tem propostas de reforma política, mas só 12% das medidas desse campo foram cumpridas, segundo o Instituto Kroc, e somente em mudanças técnicas. A reforma abrangente incluía garantias de acesso e participação nas eleições, transparência, reforma eleitoral e ampliação do acesso à política.

A implementação do Acordo Final inclui mudanças nas condições que causaram o conflito, como a Reforma Rural, que deveria alocar não só ex-combatentes, mas camponeses de toda a Colômbia, priorizando a legalização de terras já ocupadas. Existem tópicos mais específicos para a reinserção de desmobilizados, mas que ainda assim dizem respeito ao desenvolvimento dos territórios onde estão situados: construção de vias de acesso, centros polidesportivos, postos de saúde e serviços de água. Aqui se incluiria no mínimo o arrendamento de terra para produção. Cada vez mais desmobilizados abandonam as zonas sem auxílio, o que pode gerar instabilidade no futuro.

É difícil falar de degeneração do pacto quando ele mal pôde florescer. Quando as FARC-EP assinaram o Acordo Final, não o fizeram esperando um arroubo fascista de obsessão pela ordem, limpeza e unidade nacional – nem tão pouco o acordo, com sua instituição democrática, é compatível com essa lógica do terrorismo de direita.

Enquanto pequenos patrões locais e oligarcas regionais dominarem a política com apoio paramilitar, o Acordo Final terá sido um fracasso. Pior do que isso, a paz serviu para o avanço agressivo de latifúndios em terras inexploradas, a perversão de propostas reformistas e o recrudescimento de tendências paramilitares.

Notas:

¹ – Vide também: https://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-8964100

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