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30 anos da Reunificação: um crime contra a Alemanha

A reunificação da Alemanha, da forma como ocorreu, foi um crime antipopular, antidemocrático e antiprogressista.
A reunificação da Alemanha, da forma como ocorreu, foi um crime antipopular, antidemocrático e antiprogressista. Por Bronwyn Cragg | YCL-LJC – Tradução de M.A dos Santos com revisão de Rebeca Ávila
Crianças alemãs em comemoração do Primeiro de Maio em Dresden, 1987. (Foto: phillygdr)

O ano de 2020 marca os 30 anos da reunificação formal da Alemanha – sem dúvida, no dia 3 de outubro, haverá celebrações e queima de fogos de artifício por parte da maioria das pessoas. No entanto, para muitos alemães, a Ostalgie persiste. Embora legalmente unificada, a Alemanha ainda se encontra dividida de várias maneiras, com a antiga porção oriental apresentando uma enorme defasagem em termos de emprego e crescimento econômico, além de, atualmente, estar atormentada por uma retórica racista e de extrema direita. A maioria culparia – de maneira abstrata – a “frugalidade” e as “atitudes” socialistas da Alemanha Oriental por esse fracasso, mas, tanto do ponto de vista estatístico quanto do anedótico, surge uma outra história. A “reunificação” alemã foi simplesmente a absorção da RDA (República Democrática Alemã – Alemanha Oriental) pela RFA (República Federal da Alemanha – Alemanha Ocidental), e a imposição da cultura, economia e leis capitalistas ao antigo estado socialista. Assim, quase que da noite para o dia, metade do país testemunhou o desaparecimento de sua moeda, sua indústria e até mesmo seus direitos humanos mais básicos, enquanto ocorria, a toque de caixa, uma onda rápida e suja de privatizações e vendas de empresas para o Ocidente. De uma hora para a outra, mais de 16 milhões de pessoas viram desaparecer a estabilidade financeira, a igualdade de gênero, os direitos no local de trabalho, além das garantias básicas que haviam visto se desenvolver e avançar ao longo de quatro décadas. A reunificação alemã, da maneira como se materializou, foi um crime; um crime não apenas contra os alemães da antiga RDA, mas contra a Alemanha como um todo, que experimentou um retrocesso de anos em seu progresso, afundada até os joelhos e remando contra a corrente.

A vida do cidadão comum andou para trás a passos largos quando a RDA foi formalmente absorvida pela RFA, no dia 3 de outubro de 1990. Após a reunificação, a maioria esmagadora das empresas (anteriormente públicas) da Alemanha Oriental foi vendida para empresários ocidentais, mas os alemães orientais receberam apenas 5% do que elas valiam. Isso, aliado ao golpe da redefinição da taxa de câmbio entre as moedas, foi a deixa para o colapso econômico. À medida que os alemães orientais perdiam a estabilidade oferecida pelas leis trabalhistas estatais, autoridades da Alemanha Ocidental tiravam proveito da situação. Como os sindicatos da RDA não estavam preparados para lidar com a predação capitalista, e a fim de evitar os acordos coletivos de trabalho com sindicatos mais fortes no Ocidente, trabalhadores da antiga RDA eram contratados para trabalhar em condições menos seguras, por valores mais baixos e períodos mais longos. Essa perda também causou um aumento das sensibilidades racistas na porção Oriental do país, conforme os trabalhadores, lutando para entender a repentina perda de estabilidade, tornavam-se presa fácil de partidos da extrema direita, como o Alternative für Deutschland.

A Alemanha Oriental, em visível contraste com a Alemanha Ocidental, já imediatamente após o final da guerra, fez com que seus cidadãos passassem por um processo minucioso de desnazificação. Ao extirpar e destruir os resquícios do nazismo e do antissemitismo nos âmbitos ideológico, cultural e individual, a RDA substituiu rapidamente a ampla maioria dos advogados, professores e outras autoridades do país, culpadas pela propagação da ideologia fascista. O Livro Marrom, uma lista de antigos nazistas e seus respectivos paradeiros e empregos, organizado pela Frente Nacional por uma Alemanha Democrática, da RDA, jogou um holofote sobre aqueles ex-colaboradores que fugiram para o Ocidente ou ali foram acolhidos – fatos que o Ocidente negou continuamente até a reunificação. A RFA (Alemanha Ocidental), por sua vez, continuou empregando a vasta maioria desses fascistas: em 1957, 77% dos principais membros do Ministério da Justiça haviam sido oficiais do governo nazista. Segundo um estudo endossado pelo atual Ministério da Justiça, havia uma proporção surpreendentemente maior de nazistas no sistema judicial da RFA do que durante a própria era nazista. Fatos similares podem ser mencionados a respeito do Ministério do Interior da Alemanha Ocidental. Como se não bastasse, essas autoridades recebiam aposentadorias vultosas, ao passo que aqueles que foram aprisionados nos campos de concentração e prisões nazistas recebiam pouco ou nada por “não terem trabalhado” sob o Terceiro Reich. De fato, a Alemanha Ocidental não fez nada formalmente para tornar ilegal o discurso de ódio até a década de 1960, quando o Volksverhetzung (“Incitamento ao Ódio”) foi incluído na legislação. Porém, essa lei simplesmente criminaliza a “incitação do público”, sem especificar a ilegalidade do ódio étnico, religioso ou racial. É claro que o processo de desnazificação da RDA por si só não erradicou todos os resquícios do passado fascista da Alemanha (e o fascismo continua presente até hoje em boa parte do país). Apesar de alguns oficiais terem permanecido sob o novo estado socialista, a RDA tinha a prerrogativa de realizar denúncias públicas, e isso foi, na maioria das vezes, extremamente eficaz. Enquanto a RFA desembolsava montantes vultosos para “antigos” nazistas, a Alemanha Oriental reconstruía sinagogas para seus aproximadamente 500 judeus praticantes, oferecendo reparações e ajuda humanitária, além de afirmar que “a luta contra o racismo e o antissemitismo pertence à tradição antifascista da Alemanha Oriental” e que eles “jamais se esqueceriam de que muitos judeus, junto com comunistas e social-democratas […] tiveram um papel ativo na luta contra a ditadura nazista”.

Imediatamente após a reunificação, a comunidade LGBT viu uma redução em seus direitos. Seria muita generosidade afirmar que os direitos LGBT eram avançados em qualquer lugar do mundo no final da década de 1980; no entanto, a Alemanha Oriental tinha um histórico bem melhor do que o de muitos outros países. A RDA foi a primeira das Alemanhas a descriminalizar a homossexualidade (em 1968), tendo fundado vários grupos sociais de gays e lésbicas financiados pelo estado na década de 1970. Em 1987, a Suprema Corte do país ratificou direitos iguais para seus cidadãos gays, declarando formalmente que a homossexualidade era uma variante natural da sexualidade humana. Segundo informações compiladas pelo ativista trans Lou Sullivan, a RDA também oferecia cirurgias de redesignação sexual patrocinadas pelo estado, além de terapia de reposição hormonal. Já na década de 1980 – como em outros lugares do mundo – a RDA também passou por mudanças culturais, tendo aberto até mesmo uma discoteca gay patrocinada pelo estado, além de lançar filmes que retratavam gays de maneira positiva, como o filme “Saindo”, de 1989. Na Alemanha Ocidental, a história foi bem diferente: pessoas que haviam sido presas pelos nazistas com base no homofóbico Parágrafo 175 do Código Penal Alemão (1871-1994), não só cumpriram suas penas integralmente na RFA, como podiam até mesmo ser condenadas novamente por homossexualidade durante todo o período de divisão das Alemanhas. Na verdade, após a absorção da Alemanha Oriental pela Alemanha Ocidental, durante a reunificação, a homossexualidade foi mais uma vez criminalizada para todos os cidadãos alemães – inclusive aqueles que anteriormente haviam desfrutado de direitos iguais na porção socialista da Alemanha –, e o Parágrafo 175 só foi revogado em 1994. Essa não foi simplesmente uma legislação “esquecida”: no ano anterior, 44 prisões haviam ocorrido com base nessa lei, segundo estatísticas compiladas pelo ativista Rainer Hoffschildt.

Para as alemãs-orientais, a reunificação também foi terrível. Graças ao encorajamento pela igualdade de gênero, as mulheres na RDA desfrutavam de maiores níveis de emprego do que suas congêneres ocidentais, e contavam com um nível de independência financeira muito maior. Era maior a probabilidade de que as alemãs-orientais buscassem compatibilizar a maternidade com o emprego em tempo integral do que as alemãs-ocidentais, provavelmente devido a um sólido sistema de apoio e infraestrutura de creches e cuidados infantis, que incluía uma licença-maternidade paga com duração de 18 meses. Hoje em dia, embora ainda seja mais provável que as mulheres da antiga RDA estejam empregadas em tempo integral, elas encontram uma dificuldade cada vez maior em conseguir acesso a serviços de planejamento familiar e de cuidados infantis – segundo entrevistas realizadas pela pesquisadora Pamela Fisher, as mulheres da antiga RDA frequentemente citam o acesso limitado a creches a preços acessíveis na agora reunificada Alemanha como uma barreira ao trabalho e à vida familiar, e reconhecem que isso leva à marginalização da mão de obra feminina. Elas também testemunharam uma redução mínima na licença maternidade para 4 meses  – na verdade, esse máximo de 14 meses pagos só foi introduzido no final da década de 2000. Além disso, atualmente, a Alemanha apresenta uma defasagem salarial geral entre os gêneros na ordem de 21%, mas de apenas 7% na antiga Alemanha Oriental – ainda assim, 7% maior do que no período anterior a 1990. Estatisticamente falando, fica claro que a reunificação representou um golpe traumático para os direitos das mulheres alemãs.

Na esfera internacional, a reunificação da Alemanha também apresentou impactos devastadores. Ao longo de sua história, a Alemanha Oriental provou-se uma firme aliada dos países recém-independentes no Oriente Médio, África e Sudeste Asiático, estabelecendo rapidamente relações comerciais com vários países, como Argélia e Moçambique; criando programas de intercâmbio para oferecer treinamento para professores, profissionais de saúde e trabalhadores industriais em toda a África; e treinando os exércitos de libertação populares da Palestina, África do Sul e Zimbábue, além de construir infraestrutura em troca de muito pouco ou nada. De 1970 a 1982, mais de 50.000 cidadãos de países em desenvolvimento foram treinados por equipes da Alemanha Oriental em trabalhos especializados e, apenas em 1981, cerca de 13.000 estudantes do Terceiro Mundo iniciaram treinamento vocacional na RDA. Esses números excluem os cerca de 2.100 estudantes de países em desenvolvimento matriculados em faculdades e universidades da Alemanha Oriental. No mesmo ano, o apoio financeiro e material da RDA para movimentos de libertação e governos de países em desenvolvimento era superior a 1,5 bilhão de marcos, ou 0,78% do PIB líquido do país. Após ajustes cambiais e inflacionários, isso equivaleria atualmente a mais de US$ 1,83 bilhão. É importante notar que, segundo o Dr. Peter Dietze, Diretor da Divisão de Organizações Econômicas Internacionais e representante no Ministério das Relações Exteriores da RDA, “[A Alemanha Oriental] não era dona de nenhuma fábrica, mina, poço de petróleo nem de nenhum dos recursos naturais [desses] países em desenvolvimento.”

A RDA também passou a ser membro integral das Nações Unidas a partir de 1973, ficando conhecida como uma lutadora ferrenha de inúmeras causas, como a paz no Oriente Médio, a luta contra o apartheid na África do Sul, as lutas anticoloniais no Terceiro Mundo, a defesa do desarmamento e da limitação de armamentos, e a expansão da lei internacional, a fim de remover limitações a ações penais contra crimes de guerra. Embora, certamente, esses esforços na arena internacional não tenham sido em vão – o treinamento, a ajuda e a participação da Alemanha Oriental na ONU resultaram no fortalecimento da paz e levaram infraestrutura, saúde e educação para todo o mundo – após a reunificação, esse estado que buscava a paz foi absorvido por um defensor do imperialismo e um dos mais violentos criminosos da OTAN. Desde o “colapso” do socialismo na Alemanha, temos visto uma rápida deterioração nas relações internacionais entre estados europeus e o Terceiro Mundo, aumento nas quantias enviadas da Alemanha para Israel, bombardeios e intervenções devastadoras da OTAN em uma ampla gama de países, entre eles a Iugoslávia, o Afeganistão e a Líbia. Atualmente, a Alemanha desembolsa 313 milhões de euros com a OTAN anualmente e, em novembro de 2019, prometeu igualar a contribuição dos EUA, aumentando esse montante em cerca de 33 milhões de euros. Tendo sido um país que anteriormente buscava a justiça, a RDA foi engolida pelo herdeiro aparente do Terceiro Reich e, desde a reunificação, foi reduzida a mais um país assassino e beligerante, aliado dos EUA.

Embora estudos ocasionais sejam publicados, alegando que os alemães da antiga RDA apresentam níveis mais elevados de satisfação com a vida pós-1990 (estudos que, certamente, ganharão força devido ao aniversário de 30 anos da reunificação), vale a pena questionar o que exatamente foi ganho, e o que foi perdido ao longo desse processo. É fácil seguir a narrativa dominante de que a onda de levantes populares e contrarrevoluções que varreu o Leste Europeu de 1989 a 1991 levou à “democratização” de antigos estados socialistas, mas será que esse realmente é o caso quando mulheres e minorias sexuais perdem seus direitos e são ainda mais marginalizadas, quando judeus agora vivem envoltos por um sistema que financia seus assassinos, e quando a classe trabalhadora vê tudo o que construiu ser vendido rapidamente a empresários estrangeiros? Isso dificilmente é democrático. À medida que a Alemanha Oriental era engolida pela porção Ocidental capitalista e apoiada pela OTAN, muitos perderam tudo em troca de muito pouco ou nenhum ganho. Assim, em 3 de outubro de 2020, é preciso reconhecer o outro lado da história, o lado que entende que a reunificação alemã, como ocorreu, foi um crime antipopular, antidemocrático e antiprogressista não apenas contra a antiga Alemanha Oriental, mas contra todo o país – e todo o mundo.

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