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Num dia como este, em outubro de 1966, as garras do falcão perdiam um pouco de seu fio: nascia, na cidade de Oakland, na Califórnia, o Partido dos Panteras Negras para a Autodefesa. Juntos a Bobby Hutton, Reggie Forte, Sherman Forte e Elbert Howard, os jovens Huey P. Newton, à época com 24 anos, e Bobby Seale, de 30, decidiam fazer patrulhas armadas pelos guetos negros para impedir a brutalidade policial.
Eram filhos de um contexto nem um pouco afável. A nível global, a Guerra Fria e seus conflitos restritos estavam em seu pico. Na África, o regime do apartheid se desembrulhava aos olhos do mundo, e a Guerra de Independência da Angola seguia em duros combates. Na América Latina, a ascensão de reformadores nacionalistas e de esquerda começava a ser suplantada por ditaduras militares – com a exceção de Cuba que, em 1959, se libertava de Batista. Enquanto isso, na Ásia, a Guerra do Vietnã chegava a seu 11º ano.
Nos Estados Unidos, o crescente Movimento pelos Direitos Civis começava a ser parado a balas. Malcolm X havia sido assassinado há pouco mais de um ano, destino que, em dois anos, se repetiria com o reverendo batista Martin Luther King.
O Partido dos Panteras Negras nascia como uma vanguarda. Por um lado, se dispunham às armas e aos “quaisquer meios necessários” predicados por Malcolm X. Por outro, eram organizadores de primeira, que tomavam o exemplo de Luther King e Mao Tsé-Tung quando se tratava de “servir ao povo com todo coração”. Mao, aliás, era um dos vários nomes lidos e publicados pelo partido: figuravam também Lênin, Stálin, Che Guevara, Marx, Engels, Fidel, Kim Il-Sung e Fanon. Fizeram com que o jornal The Black Panther contasse com 250 mil leitores, organizaram programas sociais de café da manhã para crianças antes da escola, ambulâncias comunitárias, educação política, doação de roupas, cuidados médicos gratuitos e reabilitação para dependentes químicos. Também se mobilizavam ao lado de outras organizações, inclusive de jovens brancos, sem abrir mão da denúncia e da ação inflexível contra o racismo vigente.
Apenas dois anos depois de sua fundação, o partido já estava presente em mais de 20 cidades. De acordo com algumas estimativas, em 1969, já contava com mais de 10 mil membros.
Mas apesar do crescente apoio nas comunidades em que atuava, o Partido dos Panteras Negras também tinha mirado contra si os binóculos – e armas – de figuras dispostas a destruí-lo. O diretor do FBI, J. Edgar Hoover, considerou-o “a maior ameaça à segurança interna dos Estados Unidos” e usou a complexa rede do COINTELPRO (Programa de Contrainteligência) para destruí-lo, como fizera com Martin Luther King. Infiltrações, roubos, escutas telefônicas, invasão domiciliar, assassinato e uma série de outras operações clandestinas foram os métodos usados contra o partido. E tudo funcionou muito bem: em 1980, o partido restavam 27 membros.
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É sobre uma faceta pouca conhecida dessa história, no entanto, que trato neste artigo: da música.
Para além de sua organização militar e da presença política e social nas comunidades pobres e negras dos Estados Unidos, o Partido dos Panteras Negras manteve uma ousada frente nas artes e cultura. Com isso, conseguiram o apoio – inclusive financeiro – de figuras como Marlon Brando, Jane Foda, John Lennon e a banda de rock Grateful Dead.
Mas o partido não se restringia a colher apoios no campo da arte: também a produzia. A música “Free Bobby Now”, do The Lumpen, foi produzida pelo partido com o apoio de Bill Calhoun para a campanha pela libertação de Bobby Seale em 1970. O lado A do disco, uma mistura de soul, jazz e R&B, anunciava:
“He walked the streets and carried a gun
To save his people, and family
From those who’ve killed us for four hundred years,
We say, Bobby must be set free,
Bobby must be set free.”
“Ele andava pelas ruas e carregava uma arma,
Para salvar seu povo e família
Daqueles que nos mataram por 400 anos
Nós dizemos: Bobby deve ser libertado,
Bobby deve ser libertado.”
No lado B, em uma batida mais suave, com piano e guitarra ao fundo, a belíssima “No More”.
O partido também estimulara uma de suas militantes, Elaine Brown, que chegaria anos depois à direção da organização, a gravar um disco. Com isso, veio “Seize the Time”, que em sua capa – desenhada por Emory Douglas, lendário Ministro da Cultura do partido e responsável pelas míticas ilustrações do jornal – ostentava, embaixo de um fuzil: “BLACK PANTHER PARTY”.
Depois da extinção do partido, que marcou profundamente o destino e a luta das comunidades negras nos Estados Unidos, sua história continuou a ser cantada. Em 2000, o rapper Common lançou o álbum “Like Water for Chocolate”, com a canção “A Song for Assata“, em homenagem a Assata Shakur, fugitiva desde 1979 e exilada em Cuba desde ao menos 1984.
Também em 2000 a música “Mumia 911” saía pelo disco “The Unbound Project Volume 1”, com a participação de figuras como Chuck D (Public Enemy), Zack de la Rocha (Rage Against the Machine) e Dead Prez. Ela homenageia Mumia Abu Jamal, ex-Pantera Negra até hoje preso nas masmorras norte-americanas.
“Free Mumia means all Africans let go /
‘Cause just livin in the ghetto puts you on death row /
You don’t know? You seen how the tried to do Assata /
Till some real niggas organized theyselves and went and got her /
Lotta crackers verbalize if Mumia dies, put fire in the skies /
But only time’ll tell the truth from the lies.”
“Libertem Mumia significa deixar todos os africanos livres /
Porque viver no gueto já te coloca no corredor da morte /
Não sabia? Veja como eles tentaram com Assata /
Até que uns pretos de verdade se organizaram e a pegaram /
Vários dizem que se Mumia morrer, é fogo nos céus /
Mas só o tempo separará as verdades das mentiras.”
A música “Panthers“, uma remix do Dj Manuvers com Dead Prez e Common, e o clipe “These Are the Times“, do Dead Prez, também merecem menção.