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Bolívia: o interregno autoritário e a disputa pela legitimidade

Vésperas das eleições na Bolívia são marcadas por expectativa de novo ciclo de violência e conflitos.
Vésperas das eleições na Bolívia são marcadas por expectativa de novo ciclo de violência e conflitos. Por Pedro Marin | Revista Opera
Parada em El Alto. (Foto: Pedro Szekely)

Neste domingo (18) a Bolívia passará pelo processo eleitoral mais complexo e tenso de sua história. Por um lado, porque ocorre sob a excepcional situação de pandemia, que motivou contínuos adiamentos da data das eleições. Por outro, porque se realizará sob o que o sociólogo boliviano Yuri F. Tórrez classificou como uminterregno autoritário”, isto é, um intervalo entre dois “reinados”, que se iniciou com o golpe que derrubou Evo Morales logo após sua vitória em novembro passado, consolidando a auto nomeada presidente de facto Jeanine Áñez no poder, com o amparo da Organização dos Estados Americanos (OEA) e o apoio das Forças Armadas bolivianas.

Vale notar que este período foi inaugurado por uma fraude. Não pela fraude eleitoral para beneficiar o Movimento Ao Socialismo (MAS), denunciada pela OEA e pelos jornais de todo o continente, mas precisamente pela fraudulenta denúncia de fraude, revelada já por pesquisadores do CEPR, MIT e CELAG. É curioso que haja hoje um esforço de representantes do TSE boliviano e da ONU para lembrar a população de que o sistema de contagem rápida dos votos, implementado nas eleições passadas, “não é parte do procedimento eleitoral”, mas somente um sistema para informar à população as tendências preliminares dos resultados no dia das eleições (o que de fato é), já que foi precisamente sob o argumento de que esse sistema de contagem rápida teria demonstrado um aumento “inexplicável” a favor do então candidato do MAS, Evo Morales, que a OEA se mobilizou e o golpe que iniciou o interregno marchou.

Seguiram as perseguições, os exílios e os massacres – como os de Senkata e Sacaba, assim reconhecidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde ao menos 36 pessoas foram mortas pela polícia e Forças Armadas. O então vencedor das eleições, Evo Morales, está exilado e impossibilitado de concorrer – de fato, desde o golpe tem sido recorrentemente denunciado nos juizados do país. E mesmo às vésperas das eleições, as perseguições não cessam; na última quinta-feira (15) dirigentes sociais e sindicais que convocaram manifestações e bloqueios em agosto, junto à COB (Central Obrera Boliviana) e o Pacto de Unidad (que une ao menos cinco confederações diferentes) foram presos sob acusações que incluem “terrorismo”; observadores internacionais têm relatado perseguições e até um deputado argentino, enviado oficialmente como observador ao país, foi detido

Assim, a despeito da complexidade e tensão ímpar desse processo eleitoral, seria uma ingenuidade crer que ele seja capaz de encerrar o dito interregno autoritário ou, ainda, de “salvar a democracia”. Carlos Mesa, o segundo colocado nas pesquisas de opinião hoje, foi copartícipe do golpe de 2019 – ainda que não tenha cumprido a função vanguardista das tropas de choque de Fernando Camacho, e que tenha sido um tanto escanteado nesse processo. O que está em jogo nas eleições não é a “normalidade democrática”, mas a legitimidade para estabelecer uma nova normalidade (fruto do golpismo de 2019) ou para combatê-la de frente. Ou a Bolívia verá um novo tempo de “autoritarismo soberano” (no qual o processo golpista de novembro passado dá seus frutos em um novo governo legitimado pelo processo eleitoral, tendo a frente Carlos Mesa, derrotado nas últimas eleições) ou um novo processo de disputa sangrenta (no caso de Luis Arce, atual candidato do MAS, sair vitorioso). Neste caso, parece que o processo eleitoral mais serve para conferir legitimidade a um governo Mesa do que para uma resistência de Arce, que a propósito tenta se aproximar de uma posição mais moderada dentro do MAS.

O vice-ministro do Regime Interior e da Polícia, Javier Issa, declarou na sexta-feira em uma entrevista na televisão que “no caso de haver qualquer ativação, de qualquer grupo irregular que queira romper a ordem pública, vamos atuar, vamos atuar de acordo com a lei. Caso essas pessoas não queiram se retirar, usaremos agentes químicos como dissuasão [referindo-se a bombas de gás lacrimogêneo], caso usem armas, também estamos prontos para usar armas”.

Disse também que “os dirigentes do Movimento Ao Socialismo (MAS) indicaram que vão pegar em armas e para essa situação também estamos preparados, o Exército está preparado”. O Ministério também colocou a polícia em estado de alerta nas regiões de El Alto (onde o MAS tem uma combativa base de apoio), Chapare e Potosí, citando que a “inteligência do Estado detectou que nesses três locais haveria certos movimentos de vínculos, que em determinado momento poderiam se tornar movimentos sediciosos.” São também afirmações curiosas, tendo em vista que o aquartelamento das polícias durante a realização de “movimentos sediciosos” em novembro passado foi um dos elementos-chave para a realização do golpe contra Evo. Está claro, portanto, que ao menos um dos lados em disputa tem consciência da natureza sangrenta do futuro próximo, e que pode repetir os feitos de 2019 se lhe convir.

Um outro elemento a se tomar em conta será a atuação de Fernando “macho” Camacho, advogado, empresário e presidente do semifascista Comitê Cívico de Santa Cruz. A atuação do Comitê foi outra peça fundamental no golpe de 2019, e hoje Camacho é o terceiro colocado nas pesquisas de opinião. Sua base de apoio se concentra em Santa Cruz e em Sucre, onde as sensibilidades separatistas e racistas são bastante agudas. Um cenário de vitória de Arce no primeiro turno – um cenário bastante incerto – lançaria as bases para o irascível Camacho pôr em marcha mais uma aventura selvagem, possivelmente deixando Mesa para trás.

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