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Burkina Faso: 33 anos depois, haverá justiça para Sankara?

Investigações sobre morte de Thomas Sankara e discussão sobre reparações avançam em Burkina Faso.
Investigações sobre morte de Thomas Sankara e discussão sobre reparações avançam em Burkina Faso. Por Rebeca Ávila | Revista Opera
Sede do partido sankarista UNIR/PS em Ouagadougou. (Foto: Sputniktilt)

Quando Thomas Sankara foi morto na sede do Conselho Nacional Revolucionário em Ouagadougou, no dia 15 de outubro de 1987, as balas quiseram impor o silêncio em Burkina Faso. No entanto, trinta e três anos após o seu assassinato, se aproxima o estrondo que deverá romper este hiato: o coletivo de advogados da família anunciou que o dossiê sobre o caso foi finalmente encaminhado à Câmara de Controle do Tribunal Militar da capital, indicando que o julgamento sobre a morte do revolucionário deverá ocorrer em 2021. 

Thomas Isidore Noël Sankara nasceu em 1949, em Yako, sob a sombra do colonialismo francês. O projeto de dominação na África Ocidental era uma ambição desde o final do século XIX, mas a resistência dos Mossi, maioria étnica naquela zona, fez com que a França só conseguisse impor formalmente o domínio colonial em 1919, criando a colônia de Alto Volta e fragmentando o território para exercer o poder. A luta anticolonial seguiu respondendo à violência imperialista até a crise do sistema, visível com a descolonização de oito países da África Ocidental em 1960. 

A descolonização, no entanto, não significou soberania nacional em relação à França a permanência do Franco CFA, moeda criada em 1945, é uma evidência disso. A relação de dependência foi o que motivou Thomas Sankara a buscar a emancipação do país pela via revolucionária. Ao ingressar na carreira militar, teve contato com o marxismo, a sociologia e a ciência política. Estudou na Academia Militar de Antsirabe, em Madagascar, onde acompanhou o período conhecido como “Rotaka” e viu os protestos estudantis e camponeses que derrubaram o regime neocolonialista de Philibert Tsiranana. Regressou ao Alto Volta para combater na fronteira com o Mali, ganhando projeção nacional, e em 1976 treinou com Blaise Compaoré no Marrocos, com quem fundou, junto a outros companheiros, o Reagrupamento de Oficiais Comunistas (ROC). 

Sankara alcançou a presidência em 1983, aos 33 anos, em um golpe apoiado pela população que destituiu Jean-Baptiste Ouédraogo. O processo de construção de um Estado revolucionário, com orientação anti-imperialista e pan-africanista, promoveu importantes transformações sociais e políticas: o nome “Alto Volta”, estabelecido durante o colonialismo francês, foi substituído por “Burkina Faso” (terra dos homens íntegros, numa junção de palavras das línguas mooré e dyula); foi promovida uma reforma agrária em busca da soberania alimentar, em um projeto sem precedentes no continente; campanhas nacionais de alfabetização e vacinação foram lançadas; no campo dos direitos das mulheres, proibiu-se a mutilação genital, os casamentos forçados e a poligamia, além da participação de mulheres em altos cargos do governo ser incentivada; e no campo da política externa destacou-se uma linha terceiro-mundista, com ênfase na soberania nacional e críticas à dívida externa como mecanismo de dominação gestado no colonialismo.

A morte de Sankara, um divisor de águas 

O assassinato de Sankara, junto a outros doze companheiros, foi a pedra fundamental de um golpe de Estado que mudaria os rumos de Burkina Faso. Na época, o New York Times escreveu que uma amizade morria em um golpe sangrento:  Blaise Compaoré, que tinha grande proximidade com Sankara e havia acompanhado a marcha revolucionária, liderou o processo e reverteu bruscamente as principais políticas de Sankara. Na época, as circunstâncias da morte do líder foram mascaradas. Durante os 27 anos em que Compaoré esteve no poder, as investigações sobre o caso não avançaram.

A possibilidade de encontrar respostas surgiu em 2014, com a onda de revoltas populares que tomou conta do país e levou à renúncia de Compaoré, após a tentativa de apresentar uma emenda constitucional que permitiria suspender o limite do mandato presidencial. Sob estado de emergência e com o incêndio de vários prédios do governo (incluindo a Assembleia Nacional), o ex-presidente dissolveu o parlamento e fugiu para a Costa do Marfim – com apoio do então presidente desse país –, conseguindo obter a nacionalidade marfinense.

Em 2015, com condução do general Gilbert Diendéré (Chefe do Estado Maior durante o governo de Compaoré) e do Regimento de Segurança Presidencial, uma outra tentativa de golpe buscou dissolver o processo de transição. Sem apoio da população e do exército, o golpe foi frustrado em poucos dias. 

As revoltas foram apoiadas pela União pelo Renascimento/Partido Sankarista (UNIR/MS) e pelo movimento Le Balai Citoyen, entre outras organizações de inspiração sankarista.  

Desde então, a nação tem passado por uma tentativa de reformulação e estabilização no sistema político, e a figura de Thomas Sankara volta a estar no centro desta nova conjuntura. A apuração sobre o seu assassinato é uma peça-chave na reconstrução da memória sobre a história recente de Burkina Faso.

Justiça, enfim?

A denúncia foi reaberta em 2015, após uma longa luta encabeçada por Mariam Sankara, viúva do líder revolucionário, para evitar a prescrição do caso. Nesse mesmo ano, os advogados da família conseguiram um pedido para exumar e analisar os restos que acreditavam corresponder às vítimas.

A primeira análise de DNA foi inconclusiva. A família exigiu uma contra-análise em 2017, mas ambas investigações, realizadas respectivamente na França e na Espanha, concluíram que não era possível indicar perfis genéticos. 

Por outro lado, o relatório da autópsia e investigação balística confirmou que os corpos das vítimas foram crivados de balas. No que se acredita ser o corpo de Sankara, havia mais de uma dúzia de tiros. Identificaram também os tipos de armas utilizadas: pistolas automáticas, fuzis de assalto G3 e Kalashnikov e inclusive granadas – armas provenientes do Exército. 

A família também conseguiu transmitir uma demanda oficial ao então presidente François Hollande para pedir a abertura dos arquivos franceses sobre o caso. Em visita a Burkina Faso em novembro de 2017, durante a sua primeira viagem à África, Emmanuel Macron prometeu que a justiça do país africano teria acesso a todos os documentos. A promessa surgiu em meio a uma remodelação da política francesa, buscando melhorar a sua imagem no continente africano. Durante a mesma visita, Macron também declarou em um discurso na Universidade Ouaga I que “já não há uma política africana da França” – o que soa, ao menos, paradoxal.  

Em fevereiro deste ano foi realizada uma reconstituição do assassinato no lugar da sede do Conselho Nacional Revolucionário, em que participaram testemunhas que ainda estão vivas. 

Em entrevista ao jornal burquinabê Sidwaya no passado dia 14, o advogado Bénéwendé Sankara, que é também presidente do UNIR/MS, revelou que mais de dez pessoas serão processadas. Entre elas, estão o ex-presidente Blaise Compaoré, Hyancynthe Kafando (chefe de segurança de Compaoré na época do crime, que também fugiu para a Costa do Marfim), o médico coronel Diébré Alidou (que assinou a certidão de óbito falsificada de Sankara) e Gilbert Diendéré, que era então responsável pelo comando de segurança e que, para Bénéwendé, foi o pivô dos assassinatos. Eles serão julgados por atentado à segurança do Estado e cumplicidade no atentado, ocultação de cadáver, falsificação de documentos e subordinação de testemunhas. 

O advogado revelou também que na exumação foram descobertas caixas de cartuchos que permitiram analisar quais armas foram utilizadas naquele momento, além de ossos e objetos pertencentes às vítimas que foram identificados por algumas das famílias. 

Bénéwendé confirmou que a França enviou os arquivos sobre o caso, e espera que esses documentos possam ajudar a analisar se houve um complô. No entanto, no dia das homenagens à Sankara, jornalistas da RFI e France 24 revelaram em entrevista ao presidente burquinabê que o país europeu não teria enviado o terceiro lote dos arquivos prometidos. Roch Kaboré afirmou que a justiça de Burkina Faso decidiu prosseguir com a investigação mesmo assim, e que “a história dirá mais tarde se a França esteve envolvida ou não”. 

As partes implicadas já foram notificadas. No entanto, os mandados de prisão emitidos contra Compaoré e Kafando ainda não foram executados pela Costa do Marfim, que não costuma realizar extradições. 

Roch Kaboré, atual presidente de Burkina Faso eleito em 2015, tem incentivado ações para reabilitar a memória de Thomas Sankara. Em maio deste ano foi inaugurada uma estátua do revolucionário em Ouagadougou, e no passado dia 15 foi inaugurada a Universidade Thomas Sankara, substituindo a antiga Universidade Ouaga II. Kaboré, que foi primeiro ministro entre 1994 e 1996 e presidente da Assembleia Nacional entre 2000 e 2012, é signatário de um pacto pela renovação da Justiça.

A cinco semanas das eleições presidenciais no país, o assunto tem sido estratégico para a sua campanha de reeleição. Na entrevista à RFI e France 24, também comentou que não respondeu à carta enviada por Compaoré (em que o ex-presidente oferecia seus serviços) porque compreende que o país está em um processo de reconciliação. Pressionado pelos jornalistas sobre a extradição de Blaise Compaoré, Kaboré respondeu que aqueles que “querem regressar e têm problemas com a justiça devem se apresentar à instituição”.

De acordo com Bénéwendé Sankara, em entrevista no último dia 19, o programa de Kaboré para a reeleição propõe a criação de um ministério para a questão da “reconciliação”. As medidas tomadas sob a consigna de “verdade, justiça e reconciliação nacional”, assim como a possibilidade de movimentação por parte da Assembleia Nacional, dão a entender que existe a intenção de estabelecer um processo mais amplo de reparações pelos crimes ocorridos a partir do golpe de estado de 1987. Para o advogado, o tema deve ser uma preocupação essencial.

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