Com menos de uma semana para a eleição, as pesquisas mostram que o candidato democrata Joe Biden tem uma média de 7,1 pontos de vantagem sobre o presidente em exercício Donald Trump. Assim, pensamentos sobre como seria sua política externa vieram à tona. No último dia 27, o The New York Times publicou um longo artigo discutindo os planos do candidato de 77 anos para a América Latina. O Times estava otimista, observando que Biden buscaria “repudiar” a “abordagem rigorosa” de Trump para a região, que causou muitos danos, manifestando-se, também, no combate às mudanças climáticas.
No entanto, encoberta profundamente no artigo está talvez a frase mais reveladora: “Os conselheiros de Biden dizem que buscariam reviver a campanha anticorrupção que desencadeou terremotos políticos pelas Américas a partir de 2014, mas que, em grande parte, estagnou nos últimos anos”.
Os autores se referem a uma campanha continental para destituir líderes progressistas que culminou na prisão do presidente brasileiro Lula da Silva, no impeachment de sua sucessora Dilma Rousseff e na ascensão do autoritário de extrema-direita Jair Bolsonaro. A chamada Operação Lava Jato foi uma tentativa ostensiva de erradicar a corrupção em todos os níveis da sociedade. No entanto, documentos e gravações que vazaram mostraram que, desde o início, foi um claro esforço ofensivo por parte da elite rica do Brasil para reaver o controle da sociedade das administrações progressistas do Partido dos Trabalhadores através de meios legais.
Este suposto expurgo anticorrupção foi presidido pelo juiz Sérgio Moro, que se apresentou como um ator neutro trabalhando de acordo com os interesses populares. Mas uma investigação do The Intercept mostrou que Moro estava, de fato, em contato constante com a promotoria, instruindo-a sobre como proceder para impedir [a candidatura de] Lula. Depois que Lula foi preso e impedido de concorrer na eleição de 2018 (apesar de ser o grande favorito para ganhar), Moro assumiu o cargo de Ministro da Justiça no gabinete de Bolsonaro. O caso contra os dois presidentes do Partido dos Trabalhadores foi fraco, para dizer o mínimo, com muitos daqueles que lideravam as acusações estando sob investigação de casos de corrupção mais graves.
No início deste ano, o The Intercept também revelou o quão intimamente (e ilegalmente) envolvido os governos Obama e Trump estavam na operação Lava Jato. O Departamento de Justiça dos EUA estava operando em segredo do governo brasileiro, trabalhando em estreita colaboração com a promotoria, treinando, preparando e aconselhando-os sobre a melhor forma de proceder.
A Agência de Segurança Nacional (NSA) sob Obama-Biden também grampeou os telefones de 29 funcionários de alto escalão do governo brasileiro, incluindo a presidente Dilma e boa parte da sua equipe. Isso, apesar do Brasil ser um aliado oficial dos Estados Unidos.
No entanto, desde a eleição de Lula em 2002, o Brasil também foi uma pedra no sapato de Washington, agindo como uma barreira para as operações estadunidenses de mudança de regime contra os governos de esquerda na região. Lula, que se autodenomina socialista e anti-imperialista*, estabeleceu laços estreitos com líderes como o venezuelano Hugo Chávez e os irmãos Castro de Cuba, ao mesmo tempo que se recusou a apoiar um movimento secessionista de direita apoiado pelos EUA no leste da Bolívia que visava minar o presidente Evo Morales.
Mais tarde, Lula atraiu a ira de Washington ao negociar de forma independente um acordo nuclear com o Irã que minou as alegações de Obama de que Teerã jamais concordaria com tal tratado, daí a necessidade de sanções.
E assim, embora a reportagem do Times apresente Bolsonaro como um adversário de Biden, sua ascensão foi diretamente facilitada pelas políticas do governo Obama na América Latina.
Os assessores de Biden também traçaram seus planos para a América Central, que incluem um pacote de 750 milhões de dólares vinculado a iniciativas de privatização e medidas de austeridade que podem perpetuar as mesmas condições econômicas e políticas que levaram os migrantes a fugir em primeiro lugar. Sua equipe também dobrou a aposta com relação à mudança de regime na Venezuela, embora, como Trump, ele pareça estar ficando cansado da figura apoiada pelos EUA, Juan Guaidó.
Figuras à direita e à esquerda apresentam Biden como um campeão progressista. O comentarista conservador Ben Shapiro descreveu os democratas como “o partido de Bernie Sanders”, afirmando que Biden é uma “fachada para o radicalismo [de esquerda]”. De forma igualmente questionável, a deputada Ilhan Omar também afirmou que espera uma mudança de Biden à esquerda após a eleição. Biden, no entanto, está atualmente considerando vários republicanos para cargos de alto escalão em seu governo, enquanto marginaliza Sanders e até mesmo Elizabeth Warren, apesar do amplo apoio popular de ambos entre as bases do partido. Na verdade, Biden sempre representou a direita do Partido Democrata, e sua política para a América Latina é parcamente diferente, tendo mais semelhanças do que divergências com a do governo Trump.
*Nota do editor: evidentemente trata-se de um exagero, para dizer o mínimo, tratar Lula ou seu governo como “socialista e anti-imperialista”, quer este se autodenomine ou não. Mantivemos o original em respeito ao autor.