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A vitória de Biden: os ventos do norte não movem moinhos

Eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, serve para que analistas, políticos e jornais busquem dar lições tortas para o Brasil.
Eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, serve para que analistas, políticos e jornais busquem dar lições tortas para o Brasil. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Foto: Gage Skidmore)

Na história, nas sociedades e na política, o axioma matemático segundo o qual “a ordem dos fatores de uma soma ou multiplicação não altera o produto” é falso. Compreender que os fenômenos são desdobramentos históricos de outros, se eles têm precedentes históricos, e que tipo de correlação há entre eles nas esferas econômica, cultural, política e psicológica são elementos básicos de uma análise competente, sem os quais a queda nas armadilhas da ideologia costuma ser certa.

Na última semana o democrata Joe Biden venceu seu concorrente republicano Donald Trump em uma eleição apertada que, no Brasil, mobilizou analistas, jornais e políticos com suas álgebras tortas. No geral, os cálculos partem de uma primeira grande falsificação: a prédica de que a chegada de Donald Trump ao governo norte-americano foi uma espécie de raio em céu azul, uma excentricidade desconectada da realidade, uma distopia momentânea sem precedentes que, a partir de seu governo, iniciou um grande processo de ruptura histórica nas esferas das liberdades civis e dos direitos democráticos.

Os dedos midiáticos no Brasil que apontam à decadência do império como se ela fosse produto de Trump (e não este produto dela) tem três apontados para cá; não se trata de lição moral que dou a eles, mas lição política que tentam dar a nós.

A reprimenda segue a seguinte lógica: Trump, O Excepcional, chegou ao governo norte-americano sabe-se-lá-porquê, com apoio tirado sabe-se-lá-de-onde e, manipulando as massas manipuláveis-por-razão-nenhuma, inaugurou tempos novos de racismo, ódio a imigrantes, organização de milícias a nível interno, e de agressividade e apoio a “populistas” de direita.

Esta é a primeira lição que nos quer ser dada: fenômenos como Trump seriam exceções perigosas, que surgem de tempos em tempos detrás das moitas, prontos a destruir tudo o que existia, como uma espécie de síntese de nada senão de si mesmo. Da “lição” é colhido um fruto importante: a falsificação e a deslembrança sobre a história recente, pela qual um público que há pouco passou a se interessar por política pode se tornar mais moderado, imaginando que o mundo era antes menos violento, enquanto uma outra fração de pessoas, especialmente aflitas com a velocidade da destruição capitalista em sua crise corrente, pode olhar ao passado como horizonte. É irônico que um campo de discurso tão capaz em apontar “novos normais” num mundo pós-pandêmico falhe conscientemente em, primeiramente, descrever o antigo normal.

Este fruto, no entanto, germina em nossa terra, onde se busca explicar Bolsonaro igualmente como um fenômeno excepcional em si – esta visão prega que o homem faz a história, a desencaminha, e não que ela, em seus descaminhos, faz homens como o presidente. Assim se apagam 500 anos de racismo férrico, de autoritarismo de fato, de domínio das oligarquias e elites à força, de projetos de espoliação e privatizações, de insuficiências de governos ditos de esquerda, de liberais bem dispostos a apoiar ditaduras ou indecisos com “escolhas muito difíceis”, de operações jurídico-policiais-midiáticas que, reordenando o sistema político, criaram um grande vazio no qual a “máscara estranha em busca de tempos estranhos” pôde encontrar um rosto para vesti-la. No caso norte-americano, igualmente, apaga-se mais de um século de política externa policialesca e plenamente ditatorial, um segregacionismo doentio que permeia toda a sociabilidade do país, uma política histórica de restrição à imigração (cuja raiz está precisamente na espoliação dos povos a nível global, que sustenta a posição do império), e o apoio a ditadores das mais variadas estirpes – não eram chamados de “populistas” antes, e, de fato,  por vezes sequer eram mencionados. 

Germe na terra, a lição busca se arvorar: frente a um candidato excepcional, dizem, destruidor dos mundos e dos homens, a fórmula mágica da vitória é um candidato  absolutamente convencional, “centrista” e “moderado”, capaz de convergir forças de diferentes espectros políticos. Para que nada mude sob a sensação da mudança, é preciso que o que pouco mudou antes pareça uma metamorfose profunda; é preciso configurar o que havia antes de Trump ou Bolsonaro como “civilização” (“civilização assassina!”, como diria Ho Chi Minh) contra um projeto de barbárie que, agora, graças à eleição de nosso moderado de sorriso prateado, foi encerrado.

Não há dúvidas de que Trump, como Bolsonaro, seja uma figura especialmente detestável, e que sua comunicação siga, como a de Bolsonaro, uma lógica de tensionamento contínuo, que, tanto lá como cá, pesando todas as diferenças, serve para mobilizar e dar sustentação a líderes e projetos com pouco apoio político-institucional.

No entanto, o discurso de que representam em si um perigo excepcional, sem precedentes, é um engodo que serve somente para que a vitória de figuras com penachos de moderação pareça uma conquista.

Fala-se numa “democracia recuperada”. Convém voltar a citar Ho Chi Minh: “Enquanto isso, no chão, fedendo a gordura e fumaça, uma cabeça negra mutilada, queimada, deformada, ri sarcasticamente e aparenta se perguntar ao sol se pondo: ‘é isto a civilização?’” – assim o vietnamita descreveu linchamentos na terra da liberdade no século passado. Quantos milhões não perguntariam, lá ou aqui: “Era aquilo a democracia?”

Era aquilo a democracia nos estampidos das balas que mataram 111? Era aquilo a democracia o que trazia o ceifador de vestes negras em Corumbiara e Eldorado do Carajás? Era aquilo a democracia nos manuais das UPPs? Era ela democracia em Pinheirinho e Pau D’Arco? Era aquilo a democracia, carregando madeira porque para o gás não dá? Era ela em 2013? Em 2016?

Perguntariam também em inglês: foi a democracia quem salvou os bancos em 2008-2009? Era a democracia da “América pós-racial” a que derrubou à bala Travyon Martin e Michael Brown? Era aquilo a democracia, nos telhados de Ferguson, ao lado da Guarda Nacional? Era ela o vulto sinistro na Líbia, Síria, Ucrânia, Iêmen, Somália e Paquistão? A bisbilhoteira que espionou o Brasil e perseguiu Chelsea Manning, Assange e Snowden?

A branca fumaça da democracia em Ferguson, em 2014, depois do assassinato de Michael Brown. Estado de emergência também foi decretado. (Foto: Loavesofbread)

Trump, Biden e o imperialismo

Em termos geopolíticos, o governo Donald Trump se caracterizou por um deslocamento das tensões com a Rússia, direcionando-se para a China e consolidando o “pivô para a Ásia” que seu antecessor, Barack Obama, ensaiou nos últimos anos de seu governo. Como reflexo dessa política, reforçou a linha da infame Doutrina Monroe, de 1823, segundo a qual a América Latina constitui um protetorado norte-americano a ser defendido, de todas as formas, da influência estrangeira por ser espaço de interesse vital dos Estados Unidos, inclusive em termos de “segurança nacional”. 

Essa política teve como desdobramentos a tensão contínua contra a Venezuela (via Brasil e Colômbia), o golpe de estado na Bolívia, além de uma política de endurecimento com Cuba em relação à gestão Obama. Eventos importantes foram as manifestações na Colômbia, Equador e Chile, respondidas, via de regra, pela militarização, o que demonstra que a repetição do mote “falar com um porrete em mãos” na América Latina tem razão de ser para os norte-americanos.

A nível interno, Biden, tendo mais apoio de Wall Street, do chamado “estado profundo” e da institucionalidade bipartidária, contará com um nível consideravelmente maior de estabilidade, o que deve lhe permitir promover uma política externa mais coordenada que a de Trump.

Biden considera que há um “vácuo de liderança” na região, o que permite que a China seja “a maior ou segunda maior parceira comercial de virtualmente todo país no Cone Sul da América do Sul”. É improvável, portanto, que Biden faça um novo giro, retomando a intensidade da agressividade contra a Rússia que marcou os governos Obama e se afastando da questão chinesa.

Até o momento tudo aponta que, na América Latina, Biden irá privilegiar o “lawfare”, a perseguição judicial com fins políticos, no lugar da ameaça aberta do uso da força e golpes “tradicionais”, ao estilo boliviano. Se isto se confirmar, será um erro estratégico – as iniciativas de perseguição judicial até o momento só têm gerado instabilidade e corrosão dos sistemas políticos, precisamente o contrário do que os Estados Unidos precisam da América Latina em sua luta contra a influência chinesa.

É possível também que Biden formule uma nova “Aliança pelo Progresso”, aumentando investimentos na América Latina via Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento (o primeiro passo já foi dado, com investimentos privados pela Iniciativa América Cresce), mas com foco no combate à criminalidade,  reforçando os laços de “cooperação” com governos da região e possíveis acordos de livre comércio enquanto, na Ásia, escala a presença militar. Para tanto, deve tentar recompor as relações com o bloco europeu, fortificando a OTAN e a OCDE.

As diferenças entre Trump e Biden, a nível interno e externo, não são em objetivos, nem em estratégia, mas no terreno tático. Mas a vitória de Biden terá um papel pedagógico: uma nova geração ingenuamente esperançosa, e uma velha geração desiludida (e disposta a concessões) serão lembradas que com Trump ou Biden os ventos do norte não movem moinhos.

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