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A política no quartel, o quartel na política

O problema com o qual nos confrontamos hoje no País não é a política entrando no quartel. É o quartel entrando na política.
O problema com o qual nos confrontamos hoje no País não é a política entrando no quartel. É o quartel entrando na política. Por Pedro Marin | Revista Opera
(Guaratinguetá – SP, 27/11/2020) Cerimônia de Formatura do Curso de Formação de Sargentos de Aeronáutica. (Foto: Alan Santos/PR)

Quem passar os olhos sobre a vida e escritos do general Góes Monteiro eventualmente se achará num labirinto estranho. Nascido em São Luís do Quitunde, no Alagoas, um mês depois de um golpe militar rebentar a República no Brasil, Góes iniciou sua carreira militar no Rio Grande do Sul e cursou a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, dirigida pela Missão Militar Francesa (MMF), no Rio de Janeiro.

Manteve-se como um oficial legalista durante a Revolta dos 18 do Forte, em 1922, combate os rebelados do Rio Grande do Sul em 1923, o levante tenentista em São Paulo em 1924 e a Coluna Prestes (1925-27). Influenciado pelos Jovens Turcos – os oficiais brasileiros formados na Alemanha no começo do século 20 -, pelo positivismo e pela própria MFF, Góes se consagrará mais tarde como grande modernizador do Exército brasileiro, promovendo reformas que profissionalizaram e unificaram a tropa, expulsando as disputas políticas de dentro do quartel, e restabelecendo o controle hierárquico, admoestado por quase uma década de tenentes revoltosos.

Mas os traços labirínticos começam a aparecer já no fato de que Goés, o antigo legalista, só poderá fazer suas reformas “desideologizantes”, para limpar os quartéis da política, por tomar parte como comandante militar na Revolução de 1930. Com a vitória, o opositor dos jovens revolucionários se torna, ele mesmo, um tenente, integrando o “Gabinete Negro” de Getúlio. Três anos depois da Revolução, Monteiro já era responsável pela indicação de 36 dos 40 generais do Exército, um fato dentre tantos a gerar tensão entre o presidente e o general que, a partir de 1934, será ministro da Guerra. As razões são óbvias: Getúlio se vê fraco frente a um Exército dominado por Góes, e Góes, por sua vez, vê na ascensão de Getúlio mais investidas do Executivo no sentido de submeter o Exército.

Além da “submissão do Exército ao Executivo”, Góes testemunhará na metade dos anos 30 duas frentes mais uma vez introduzindo a “ideologização” no quartel: a Ação Integralista Brasileira (AIB), lançada em 1933, e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), fundada em 1935. Ambas terão enorme influência e circulação na tropa.

Góes se vê em meio a um paradoxo: sua ascensão ao poder permite consolidar seu projeto de autonomia do Exército, mas este pode mais uma vez ser subjugado por um presidente que alcançou o posto com seu apoio, ao mesmo tempo que seu projeto de unificação e profissionalização se vê ameaçado pela disputa de frações dentro da tropa, estimulada pela disputa entre integralistas e aliancistas. “Para manter os recursos e o controle sobre a organização, eles [grupo de Góes] deveriam se aproximar do governo, mas para combater a influência política, eles deveriam se afastar do governo. Para combater o faccionismo eles deveriam impedir a ideologização, mas ao impedir a ideologização eles abdicavam do poder mobilizador e aglutinador que uma ideologia pode exercer”, escreveu Roberto Martins Ferreira em seu Organização e Poder – Análise do discurso anticomunista do Exército Brasileiro. “Podemos dizer que a cúpula da organização teria de encontrar uma fórmula que permitisse ao Exército alcançar os três objetivos vitais para sua sobrevivência e crescimento como organização; uma fórmula ideológica que caracterizasse o Exército como apolítico e ao mesmo tempo o legitimasse como ator político mas que também, sendo uma ideologia, interditasse a entrada de outras ideologias dentro do Exército”, arremata.

É sob este jogo de dependência e tensionamento mútuo entre Exército e Executivo, não muito estranho aos sobreviventes deste 2020, que o Brasil passará pela Intentona Comunista, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, o golpe contra Getúlio e seu suicídio, em 1954.

O quartel em transição

No dia 30 de setembro de 1937 as casas brasileiras eram preenchidas pelo eco radiofônico da Voz do Brasil: uma conspiração judaico-comunista, que incluiria depredação de prédios públicos, incêndios, fuzilamentos, saques e greve geral, havia sido descoberta.

Era uma invencionice militar de nome sugestivo: Plano Cohen. Há discussão se fora plantada pelo capitão integralista Olímpio Mourão Filho, que mais tarde faria fama como o general que marchou de Minas ao Rio em 1964, ou pelo próprio Góes Monteiro, à época Chefe do Estado-Maior do Exército; mas o fato é que, muito bem acolhido por Góes, o relatório serviria como desculpa para o Congresso decretar Estado de Guerra no dia seguinte. Quarenta dias depois, estaria imposto o Estado Novo, com o fechamento deste mesmo Congresso.

Um Exército profissionalizado, unificado sob uma legitimidade própria (no sentido de ter a tropa convencida de que ocupa um papel “especial” no Estado e de naturalizar isso frente aos civis) e com hierarquia redefinida agora participava de um novo golpe, centralizando o poder em torno de si e do Executivo. Com a proibição dos partidos políticos e a repressão a integralistas e comunistas, limpava-se do campo também os elementos “ideologizantes” e desagregadores em meio à tropa. Eram as raízes da visão de Góes se consolidando: o gérmen do Partido Fardado avançava, crescia e se desenvolvia; em 1945, com o golpe contra Getúlio; em 1954, com seu suicídio sob pressão militar; e por fim em 1964, ano de estreia da grande noite militar. A grande confusão é desfeita: política do exército, não no exército, era o que promulgava Góes. 

Não se tratava de uma visão “legalista” no sentido de submissão ao Soberano civil – o Executivo -, mas de afirmação de direito da soberania militar sobre toda outra, senão como única. A “profissionalização” tampouco dizia respeito a uma “neutralidade política” de um Exército “puramente técnico”, mas à capacidade desse Exército de formular sua própria política por meios técnicos e de aplicá-la com efetividade.

Observar com acuidade a trajetória de Góes é importante em um momento em que os militares não só voltam à cena política, mas o fazem sob um jogo duplo que por um lado dá a eles a guarida da legalidade (afirmam que o Exército é neutro, que não está no governo apesar da presença militar, que militar no governo é uma coisa e Exército é outra), ao mesmo tempo em que se legitimam como atores políticos aceitáveis (legitimação para a tropa e para fora dela, como Góes bem soube fazer).

Quando são pressionados pelo papel político que passaram a cumprir, respondem queixando-se de um suposto “preconceito” contra os militares. E frente a um governo bestial como o de Bolsonaro, são por vezes convocados como uma alternativa por analistas e figuras políticas: há quem implore para que Mourão vingue-se de Bolsonaro e há os que se decepcionem com os fardados por ainda não o terem contido.

A aparente contradição não é aparente; é uma contradição de fato, que no entanto serve de alavanca ao poder militar. Talvez quem melhor tenha descrito a situação das Forças Armadas latino-americanas neste aspecto tenha sido Mario Esteban Carranza: “em uma primeira aproximação, as Forças Armadas são o aparato repressivo do Estado (e portanto uma categoria social: a burocracia). Mas, por outro lado, se constituem em partido atuando como força social na cena política”. É necessário agregar: sendo excepcionais como órgão burocrático estatal – se organizam para a guerra, têm armas, são ordenadas de maneira que seu corpo-base é continuamente renovado por meio de alistamento obrigatório, contam com uma base própria de desenvolvimento tecnológico-científico, acesso à inteligência de nível restrito e uma presença geográfica inigualável, sob um comando único e hierarquizado – tornam-se excepcionais também como partido. O curioso é que precisamente por sua excepcionalidade como órgão burocrático estatal é que deveriam ser impedidas de atuar como partido – e no entanto o fazem, aparentemente sem muita resistência.

Olhar à história de Góes Monteiro nos permite afastar a ingenuidade de editoriais que veem na declaração do Comandante do Exército Edson Pujol, segundo quem as tropas “não querem fazer parte da política” e “muito menos deixar que ela entre nos quartéis”, um compromisso com o legalismo e a neutralidade. Mourão acrescentou: “não se admite política nos quartéis porque isso acaba com os pilares básicos das Forças Armadas, a disciplina e a hierarquia”. Ora, não eram essas as declarações de ontem do “eterno candidato a presidente” e golpista obstinado que moldou as Forças Armadas como são hoje? Não foi a “política nos quartéis” um dos elementos enfrentados por Monteiro em sua ascensão ao poder? Não eram frases como essas que, a exemplo de Góes, Villas Bôas disparava há poucos anos, angariando a ovação de patetas que acreditavam no democratismo do general? O problema que testemunhamos não é a política entrando no quartel. É o quartel entrando na política. 

“Este é um livro que trata de um período determinado, durante o qual não soava estranha a ideia de que a organização militar almejasse e controlasse o poder. A formação de tal conjuntura dependeu de uma série de fatores: uma liderança disposta a reforçar a organização; eventos que pudessem ser trabalhados retoricamente; percepção, por parte da liderança, da necessidade de participar mais ativamente do jogo político; e grupos políticos que viam nas Forças Armadas um grande aliado. Se hoje nos parece absurda a ideia de controle do poder pelas Forças Armadas, é porque nenhum destes elementos está presente”, escreveu Martins Ferreira em seu livro. Se hoje tal ideia não nos parece absurda, é porque alguns elementos já estão.

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