Quinta maior capital do Brasil, Fortaleza vivenciou nas eleições municipais de 2020 uma reprodução em escala reduzida das disputas das forças políticas do cenário nacional. Reduto do ex-governador Ciro Gomes, os fortalezenses elegeram seu candidato a prefeito, o deputado estadual José Sarto Nogueira (PDT). Representante da continuidade do prefeito Roberto Cláudio (2013-2020), também pedetista e apoiado pelos irmãos Ferreira Gomes, Sarto venceu o segundo turno por uma margem bastante estreita – 51,69% a 48,31% dos votos – contra o Capitão Wagner (PROS).
Velho conhecido da política do Ceará após ter participado de um motim da Polícia Militar em 2011, Wagner foi o candidato de direita apoiado por Jair Bolsonaro, embora depois tenha tentado esconder o presidente de sua propaganda eleitoral. Por sua vez, pelo PT do governador cearense Camilo Santana, também concorreu Luizianne Lins, deputada federal e ex-prefeita da cidade que é abertamente desafeta da família Ferreira Gomes.
Sarto assume a Prefeitura em um contexto de agravamento da crise social no Ceará, em que a alta dos casos da Covid-19 se soma a uma espiral da violência urbana, que atinge, sobretudo, as populações periféricas de Fortaleza. Para analisar esse quadro conjuntural da capital cearense e seu impacto político no estado e no Brasil, a Revista Opera entrevistou o assistente social e professor da graduação de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e dos mestrados em Serviço Social e em Filosofia, Estenio Azevedo, que também foi vice-presidente do Conselho Regional de Serviço Social e hoje se dedica a estudar a retração do Estado frente às políticas sociais e sua expansão no campo punitivo-penal no Ceará.
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REVISTA OPERA: Em sua propaganda eleitoral televisiva, o prefeito eleito Sarto reforçou a imagem de continuidade do governo Roberto Cláudio, também do PDT. Entretanto, os irmãos Ferreira Gomes não apareceram na campanha. Por que houve a opção de não dar visibilidade à família Ferreira Gomes, considerando que o Ceará é historicamente seu reduto eleitoral?
ESTENIO AZEVEDO: A explicação do próprio Ciro para sua ausência na campanha eleitoral é que sua “fase cearense” estava chegando ao fim, mas é claro que o grupo político, cuja maior expressão pública é a do ex-ministro, busca renovar-se, com a construção e fortalecimento de novas lideranças e referências eleitorais. É preciso aqui observar duas coisas: esse grupo conta com a participação de muitos quadros, com formação técnica e intelectual, alguns deles provenientes da Universidade (como a vice-governadora e ex-secretária de Educação, Izolda Cela, o prefeito Roberto Cláudio, que tem formação acadêmica e é filho do ex-reitor da UFC, e o próprio vice do Sarto, o professor Élcio Batista) e outros tantos do serviço público (como o próprio Sarto, o prefeito eleito, médico do SUS; o deputado federal Idilvan Alencar, um dos pré-candidatos à prefeitura pelo PDT à época, é servidor público de carreira). Esse grupo, com essa conformação da universidade e do serviço público, é motivado pelo discurso desenvolvimentista e de eficiência da máquina estatal que seus líderes defendem. Desse modo, o próprio projeto nacional da candidatura do Ciro exige o fortalecimento local do grupo e de suas lideranças novas. Por fim, a relação de Roberto Cláudio, Sarto Nogueira e do próprio Camilo Santana com os Ferreira Gomes é pública. Penso ter sido considerada desnecessária sua reafirmação. A insistência na continuidade do governo Roberto Cláudio me parece, justamente, passar a ideia de uma gestão autônoma de um grupo que se ampliou para além dos Ferreira Gomes, que naturalmente fazem parte dele e o dirigem politicamente.
REVISTA OPERA: Uma narrativa fortemente presente na campanha do Sarto era a parceria com o governador Camilo Santana (PT). Isso desde o primeiro turno, quando o PT tinha candidata, a deputada federal e ex-prefeita Luizianne Lins. Sarto enfatizou tanto a dependência de Fortaleza de recursos estaduais como a importância das obras de infraestrutura feitas no município em conjunto com o governo do Ceará. Como essa aliança se constituiu e qual a sua força política hoje?
ESTENIO AZEVEDO: O governo estadual do Ceará é uma composição desde o começo da primeira gestão de Cid Gomes. Lembremos que a primeira candidatura do Cid ao governo do Estado (2006) foi articulada e bancada pela então prefeita Luizianne Lins. O PT ocupou secretarias, diretorias, cargos de confiança. O ex-deputado Antonio Carlos Freitas, do grupo político da ex-prefeita, era o líder do governo na Assembleia Legislativa. Na reeleição (2010), soldou-se ainda mais essa relação, da qual, porém, a ex-prefeita perdeu o protagonismo, quando da primeira eleição de Dilma. Havia uma visão política que aproximava e afinava Dilma e os Gomes: uma visão desenvolvimentista, em que pese as diferenças teóricas e políticas que se apresentam nesse campo.
Dois anos depois, por um pequeno putsch, Roberto Cláudio assume a direção do PSB local, deslocando o grupo do ex-deputado Sérgio Novais, politicamente próximo de Luizianne. A partir daquele episódio, Ciro, Cid, Roberto Cláudio e o restante do grupo se afastam definitivamente do PT de Fortaleza, de modo mais particular do grupo de Luizianne Lins, mas em certo sentido reforçam sua relação com o PT do Ceará, que aqui não possui uma unidade. A candidatura de Camilo foi acertada, por telefonema, entre Cid e Dilma, em 2014, ano crucial para o PT nacional. A presença de Izolda Cela como vice, que ocupava antes a Secretaria da Educação do Estado do Ceará (SEDUC) e era uma das secretárias mais importantes do governo Cid Gomes, manifesta de modo muito significativo a continuidade da composição. Assim, há um grupo – que me parece estável, solidificado, cujos membros trocam de funções e cargos, mas permanecem relacionados e atuando juntos – composto por quadros do PT e quadros que trabalham juntos desde antes do governo Cid e que se afiliam à perspectiva política de Ciro Gomes.
Por isso, é provável que um setor inteiro do PT não tenha nem mesmo feito campanha para Luizianne no primeiro turno, seja por considerar que era uma candidatura mais facilmente isolável em segundo turno, seja por causa dessa composição governamental, quase estamental, eu diria, que expressa uma real proximidade política – costurada por muitos fios – e que gere o estado do Ceará há mais de uma década. Vários petistas e ex-petistas simplesmente passaram a integrar esse grupo governante, composto por PT e PDT, como o secretário de Meio Ambiente Arthur Bruno, o secretário de Desenvolvimento Agrário Francisco de Assis Diniz, o ex-líder do governo e atual secretário de Relações Institucionais Nelson Martins, dentre muitos outros. Cabe destacar que, além dessas questões indicadas, sendo Sarto representante do legislativo, ocupando a presidência da Assembleia Legislativa do Ceará, tendo sido líder do governo na época de Cid Gomes e vice-líder do governo de Camilo Santana, não me parece assim espantosa a manifestação dessa parceria na campanha municipal.
REVISTA OPERA: Ciro Gomes foi prefeito de Fortaleza entre 1989 e 1990 e governador do estado do Ceará entre 1991 e 1994. Mesmo sendo um personagem político de dimensão nacional, ele constituiu no Ceará seu reduto político-eleitoral a ponto de Fortaleza ser a única capital onde ele venceu Bolsonaro e Haddad no primeiro turno em 2018. O que explica a capilaridade política perdurar por tantas décadas em Fortaleza?
ESTENIO AZEVEDO: É preciso dizer com todas as letras: Ciro Gomes é o maior nome de um grupo político que tem, em sentido rigoroso, um projeto político. Por projeto político, eu nomeio uma visão de país, no caso, de perfil desenvolvimentista. No Ceará, que é o estado em que essa visão tem sido efetivada, desde o primeiro governo Tasso Jereissati – e Ciro, nas vezes em que foi candidato à presidente, reivindicou a política econômica, fiscal e social dos governos Tasso –, esse projeto se caracteriza por uma clara visão de desenvolvimento econômico, de certo papel do Estado nesse desenvolvimento, por um significativo diálogo com setores da iniciativa privada, que, nessa visão desenvolvimentista, também tem um importante papel, por uma visão de serviços públicos – fundamentalmente, Educação e Saúde – nesse desenvolvimento e assim por diante. Isso se articula com a composição social desse grupo como eu caracterizei acima (setores médios, de origem universitária e de serviços públicos).
No Ceará, portanto, a força política do grupo é inseparável dessa trajetória que vem desde os governos mudancistas dos anos 1980 e do que a experiência de gestão governamental realizou nessas últimas três décadas – por consequência, dos setores sociais que ele mobiliza e representa: camadas médias urbanas mais tradicionais, com forte vínculo com a máquina estatal e a academia, e setores da burguesia local, economicamente engajadas nessa política desenvolvimentista, ainda que seja – eu diria – um desenvolvimentismo a varejo, pois não faz parte de nenhum grande projeto desenvolvimentista nacional, que considero impossível na crise em que o capitalismo vive, com baixíssimos resultados na distribuição de renda e na diminuição da desigualdade social, bem como destrutivo do ponto de vista ambiental. Mais ou menos, o que já se verificou nos governos federais do PT entre 2004 e 2016.
REVISTA OPERA: Capitão Wagner, candidato apoiado por Bolsonaro em Fortaleza, se projetou politicamente após participar de um motim da Polícia Militar em 2011, em que ele foi apontado como líder da paralisação. Em sua trajetória como parlamentar, posicionou-se como um defensor dos servidores da segurança pública. Quais setores da sociedade fortalezense Wagner mobiliza e se valendo de que tipo de discurso político?
ESTENIO AZEVEDO: Há, sem dúvida, um setor cearense, sobretudo na capital, que se identifica com esse discurso punitivista-penal como alternativa à violência (os pequenos crimes cotidianos), que é pensada como um fenômeno dissociado da desigualdade social. É esse setor que defende que a segurança pública seja o foco principal da atuação do Estado, até mesmo em detrimento de outras políticas públicas. Parece-me que Capitão Wagner vem ocupar aqui certo lugar deixado vago pelo atual vice de Roberto Cláudio, o ex-deputado Moroni Torgan, que, em outras eleições, aparecia como esse “baluarte” da segurança pública. Não é estranha essa aproximação de Roberto com Moroni.
Aliás, apesar de, no discurso, isso ser mais enfático nas aparições públicas de Capitão Wagner, que, deve-se destacar, aponta para um uso mais ostensivo e militarizado das forças policiais, essa tem sido uma prática comum dos atuais governos nesses tempos de exceção. Lembremos que o próprio Roberto Cláudio atuou de modo muito duro ao convocar a Polícia Militar para expulsar da Assembleia Legislativa, com muita violência, professores da rede estadual em 2011, quando ocupava a presidência da casa; no mesmo ano, a mesma atitude teve o presidente da Câmara Municipal, Acrísio Sena, do grupo de Luizianne Lins, que inclusive trouxe como uma marca de sua gestão a “militarização” da Guarda Municipal – na época, veja que ironia, era dirigida por um ex-representante da Anistia Internacional no Ceará. Ambas as ações se apresentam em contextos em que se destaca a ausência de diálogo com trabalhadores da educação na discussão de seus planos de cargos e carreiras e em que a força policial foi usada como forma desse “diálogo”. De novo, luta social como caso de polícia!
O próprio governo de Camilo Santana tem assumido uma postura complicada com as mudanças trazidas para o campo da política judiciária, que tem motivado denúncias sérias, por órgãos respeitados, de práticas de torturas nos presídios cearenses. Poderíamos ainda citar outras tantas experiências das mais diversas correntes políticas que seguem essa mesma postura. Contudo, claro que, no caso aqui do Capitão Wagner, além de acompanhar seus concorrentes nessa perspectiva, mobiliza outros elementos e daí um setor muito particular da sociedade, o mesmo que elegeu Bolsonaro. Trata-se de um grupo com feições fascistas, de intolerância às camadas mais pobres, de ódio às conquistas mais amplas das classes trabalhadoras e de manifestações racistas, homofóbicas, misóginas etc. Parte deste setor tem sido mobilizada pelas igrejas neopentecostais cujos líderes têm assumindo protagonismo político, seja ocupando cargos no legislativo, seja por meio de campanhas abertas em seus redutos doutrinários, na defesa de um modelo exclusivo de fé, de família e de sociedade, do qual o Estado deve ser guardião.
REVISTA OPERA: No mapa dos resultados do primeiro turno, o Capitão Wagner venceu não só no Centro, Aldeota e Meireles, áreas nobres de Fortaleza, mas no extremo oeste do município, onde se concentram bairros pobres. No segundo turno, ele manteve essa votação. Como explicar a penetração dele nesse recorte do eleitorado, que abrange tanto uma região mais rica da cidade, como um segmento bem específico dos fortalezenses mais pobres?
ESTENIO AZEVEDO: A crise capitalista produz falta de perspectiva, por isso, insegurança, medo, que vêm reforçados pelo aumento dos pequenos crimes cotidianos, mas também pela atração que as organizações de comércio ilegal de entorpecentes exercem sobre jovens e adultos marginalizados dos processos econômicos. A crise capitalista significa, do ponto de vista das pessoas comuns, uma crise da reprodução social, especificamente, da reprodução da força de trabalho. Nada, absolutamente nada está garantido: nem a conclusão da escola pelo filho, nem o término do mês pelos pais no emprego. Não há segurança do café da manhã, nem do pagamento do aluguel. Nesse contexto, discursos de esperança, de segurança, acompanhados algumas vezes por redes de solidariedade material, prática, acolhem as pessoas. Como disse recentemente o Preto Zezé (CUFA), as igrejas muitas vezes se instituem como um “pseudo-Estado de bem-estar social”, que o Estado nunca conseguiu garantir em nosso país. Veja, não é de pouco significado material, como lembrou também o professor John Aquino (IFCE), que uma família que vive de salário mínimo economize no álcool, no fumo, na droga. Isso traz à família segurança aos filhos, economia aos pais.
Pelos próprios termos que estou usando, não é difícil perceber que esses sentimentos ganham acolhimento nas versões conservadoras das denominações religiosas, que muitas vezes os encaminham para um comportamento de intolerância para o liberalismo comportamental e político. O discurso liberal da esquerda da “criação de oportunidade” tem pouca força diante da experiência fática das pessoas, interpretadas como graça divina na mudança de vida de seus amigos e parentes. Tudo isso é muito frágil, sabemos; por isso mesmo, precisa ser protegido psiquicamente por um continuado temor de perda, de queda. O formato psíquico dessa insegurança é vocacionado ao conservadorismo e à intolerância; e a explicação é, naturalmente, econômica, social, cultural. O materialismo histórico ajuda a entender o que se passa…
Justamente por isso, o discurso de ódio e intolerância alcança esses setores da sociedade. Grande parte dessas regiões mais pobres da cidade tem sido há tempos alvo da ação doutrinária de igrejas neopentecostais que alimentam esse discurso. As pesquisas apontaram que Wagner teve preferência entre evangélicos, obtendo cerca de 53% dos votos contra 35% dados pelos evangélicos a Sarto. Evidentemente, não se trata apenas desse elemento, mas de um contexto mais geral. De todo modo, é importante repetir que o atual contexto de crise capitalista tem ampliado sobremaneira as desigualdades sociais. O cotidiano de um segmento cada vez mais amplo da sociedade tem sido empurrado para uma situação de miséria sem igual. As expressões de violência se manifestam nesse cotidiano, e as alternativas que se apresentam para os indivíduos miseráveis são atravessadas por essas formas de segurança, antes de tudo psíquica, mas também práticas.
Aliada a isso, a lógica do capitalismo se conduz pelo ideal da liberdade individual, de cada um por si, distanciando os indivíduos um dos outros e negando a hipótese de que essas situações são geradas pela própria lógica do capitalismo. Quero dizer com isso que parte da classe trabalhadora, ao individualizar essas questões, vê nas formas de trato ostensivo do Estado, contra os indivíduos que são considerados a causa do problema, uma alternativa, outra forma de segurança, de proteção diante de uma realidade de incertezas. Alimentam esses discursos os programas policiais que fazem parte de modo curioso de uma rotina de muitos fortalezenses. Esses programas reforçam cotidianamente o discurso do ódio e vendem a segurança por meio da violência institucional do Estado – na forma das forças policiais. Vemos aí outro fenômeno interessante: assim como os líderes religiosos neopentecostais, os apresentadores desses programas igualmente têm ocupado espaço no legislativo e caminham agora inclusive para o executivo.
REVISTA OPERA: Bolsonaro é desaprovado por 48% dos fortalezenses, segundo pesquisa do Ibope. Em um dado momento da campanha, Capitão Wagner tentou se descolar da imagem do presidente, além de não tê-lo usado em sua propaganda eleitoral. O quanto o apoio foi decisivo para impedir sua vitória no segundo turno?
ESTENIO AZEVEDO: Ocorre aqui no caso do Capitão Wagner o mesmo que ocorreu com Sarto, que comentamos no início desta entrevista. A vinculação estava dada. É justamente a parte desses 48% que a campanha dele de certo modo buscava. Evidentemente era sabido que uma significativa parte aparecia a ele como indisputável. Seu discurso inclusive se descolou do antipetismo, próprio das campanhas bolsonaristas e de bolsonaristas assumidos, como foi o caso de Heitor Freire, que se afirmava como o único que nunca esteve ao lado do PT (talvez em menção inclusive à presença de Wagner no palanque da campanha de Elmano Freitas, do PT, em 2012). A campanha se conduziu com críticas mais incisivas à gestão de Roberto Cláudio. Porém, penso aqui que devemos inverter a questão: menos estranho é o fato de essa vinculação de Wagner com Bolsonaro influenciar sua derrota e mais o fato de ele ainda ter tido uma expressiva porcentagem dos votos. Foram 624.892 votos de fortalezenses, os quais destacam que uma parcela da cidade compactua com aquele projeto ao qual nos referimos antes, marcado pela cultura do ódio, da violência institucional e uma tendência fascista e genocida. 48,31% das pessoas que votaram de algum modo afirmaram esse projeto com fortes manifestações racistas, misóginas, heterocentradas e de intolerância às diversidades sexuais. Assim como estava clara, para os que não votaram, a vinculação de Wagner com o projeto bolsonarista, também estava para os que votaram, mesmo para certas camadas ditas “progressistas” que inclusive declararam voto publicamente em suas redes sociais.
REVISTA OPERA: Apesar do PT ter declarado apoio a Sarto no segundo turno, o irmão de Luizianne Lins declarou apoio ao Capitão Wagner. O deputado José Guimarães disse que Wagner teve uma vitória política “extraordinária”. Essas posições são um reflexo dos atritos entre Ciro Gomes e o PT a nível local? Ou a disputa entre o grupo político dos Ferreira Gomes com o petismo é que se nacionalizou?
ESTENIO AZEVEDO: Esses acontecimentos são detalhes menores diante de um contexto mais amplo, como temos discutido nesta entrevista. Esse contexto mais geral é o da crise capitalista, com as dificuldades crescentes de reprodução e acumulação do capital, a desestruturação social dos trabalhadores e, em consequência, dos movimentos sociais, com a revolução científico-tecnológica, a desindustrialização e a forçada desconexão econômica de países e regiões inteiras. Na prática, em várias regiões do mundo e de cada país, as relações econômicas modernas estão recuando e sendo substituídas por relações econômicas não mais capitalistas, relações que não são assalariadas nem juridicamente livres, embora orientadas pela lógica da acumulação capitalista. São relações de dependência pessoal, garantidas pela violência, em si mesmas pré-capitalistas ou não mais capitalistas, como ocorre na produção e venda de drogas, nos controles de territórios por milícias (que não é uma experiência só brasileira, mas mundial), em trabalhos agrícolas, de pecuária e de mineração, além dos trabalhos escravos clássicos que submetem migrantes nos diversos países… a “venda” de africanos como escravos na Líbia, amplamente noticiada recentemente, é uma imagem de um fenômeno mais geral. As guerras, por exemplo, já não se fazem mais, como pensaram Rosa Luxemburgo e Lênin, para a expansão das relações capitalistas, para a exportação de capitais. E por quê? Porque a crise capitalista é uma crise de realização do valor, piorada com a crise da própria produção de valor nas condições da revolução industrial em curso. De que serviram as invasões do Afeganistão, do Iraque, da Líbia? Em termos clássicos, deveriam resultar em exportação de capitais, em industrialização local, em posse e usufruto de matérias-primas, como o petróleo. Que nada! São regiões que não foram reconstruídas, que não receberam investimentos. Serviram apenas para o consumo imediato da mercadoria-vedete nesses tempos de barbárie, que é a mercadoria bélica. Nesse contexto, projetos desenvolvimentistas – ainda que seja um desenvolvimentismo a varejo, socialmente conservador e ecologicamente destrutivo – como o do PT ou do PDT não encontram espaço. Nem mesmo a burguesia atuante no Brasil acredita neles. Por isso, continuam a cuidar da transformação de dinheiro em mais dinheiro investindo em títulos públicos, que, ao mesmo tempo que financiam o apoio que esses mesmos setores recebem do Estado, lhes garantem alta rentabilidade. A quebra de unidade entre PT e PDT, entre os diversos grupos do PT (Luizianne Lins e Guimarães, principalmente) e do PDT (em nível local, os Ferreira Gomes) têm como pano de fundo essa crise e a desorientação política a que ela conduz. O start do cisma foi a derrota comum no golpe de 2016.
REVISTA OPERA: De acordo com a última pesquisa Datafolha antes da votação (28/11), Sarto se saiu melhor entre os desempregados (76% a 24%), donas de casa (64% a 36%) e pessoas que não integram a população economicamente ativa (61% a 39%), enquanto Capitão Wagner vencia entre os empresários (59% a 41%). O que esses números dizem acerca das estratificações de classes na sociedade fortalezense?
ESTENIO AZEVEDO: Veja, antes de tudo, acho que as parcelas da população de Fortaleza que recebem o auxílio emergencial, que se impôs apesar de e contra Bolsonaro, souberam bem interpretar, em sentido “progressista”, o chamado corona-voucher. Quem são seus beneficiários? Justamente esses setores que você citou: desempregados, donas de casa e pessoas excluídas da atividade econômica regular (que tem crescido cada vez mais na crise já histórica do capitalismo). Essas parcelas da população souberam bem entender e recusar o que significa, em termos econômicos e sociais, o bolsonarismo, como corrente e prática política de submissão selvagem dos mais pobres e realização alucinatória dos interesses dos ricos (alucinatória, não para os ricos, bem entendido, mas para os pobres que o apoiam). Contudo, há também outros aspectos, quando se fala em “empresários”. Quem são esses empresários, com exceção de algumas poucas dezenas de efetivos empresários capitalistas? Segundo a Junta Comercial do Estado do Ceará (JUCEC), havia 80 mil empresas em Fortaleza em 2019. São de fato empresários capitalistas? Não, são micro e pequenos negócios individuais e familiares, pequenas oficinas de artesanato e serviços, como restaurantes, mercearias etc. cujos proprietários jurídicos, mas não de fato, são funcionários informais das grandes empresas capitalistas (essas sim, empresas capitalistas).
Então, embora juridicamente esses proprietários sejam empresários, economicamente não passam de funcionários informais das grandes empresas, pagam aluguel, impostos e direitos trabalhistas (quando pagam) a seus empregados para viabilizarem, de modo capilar, em cada rua e esquina dos diversos bairros, a venda das mercadorias produzidas pelas empresas capitalistas. Economicamente, são a mesma coisa dos vendedores de ruas, no centro da cidade, com uma diferença: são regulamentados, pagam impostos, às vezes assinam carteiras de trabalho. Esse setor, que é enorme, aglutina celularmente cerca de 400 mil pessoas, se considerarmos cinco pessoas em média por família. A família extensa, a vizinhança, a igreja etc., com mais um tanto, é o lugar social de uma ambiguidade: são proprietários jurídicos, mas proletários de fato, em termos econômicos. Mas quem quer ser e se sentir proletário se pode se dizer proprietário? Esse é um setor social mais inseguro do que aquele sobre o qual eu falava antes, que é igualmente proletário, mas sem propriedade, sem emprego, sem garantia jurídica alguma. Esse setor referido agora é mais sensível ao discurso da “ameaça” constante que o liberalismo comportamental e político representa – que, na linguagem dele, se apelida por “comunismo”, “pedofilia”, “destruição da família” – isto é, da pobre propriedade familiar. Em 2003, quando ganhou a eleição, a esquerda representava a esperança desses setores, mas, justamente o grande instrumento de inclusão social no consumo, que foi o crédito facilitado, levou esse setor à mais penosa dependência aos bancos, que nunca perdem. Por isso cabe perguntar, criticamente: quem são esses supostos empresários que as pesquisas apontam como eleitores do Capitão Wagner? Em grande maioria, são pobres, que, como proprietários, receberam o auxílio emergencial, mas devido à diminuição do consumo, muitas vezes tiveram sua renda abaixo do que recebiam donas de casa solteiras, separadas ou viúvas (que era de 1.200 reais). Então um ressentimento contra direitos sociais, contra direitos econômicos, em defesa dos “direitos do trabalho e do sacrifício” deles ganha voz no discurso da direita; sem saberem, pobres proletários, qual sua função econômica e quem, de fato, os submete à exploração do trabalho.
Todavia, aqui estamos diante de uma característica que marcou também as eleições presidenciais em 2018. Esses fenômenos eleitorais dizem muito sobre essa composição já comentada de um setor social sensível ao conservadorismo e, nesse caso específico, da baixa classe média e da burguesia, ainda que com suas nuances e particularidades. Destaca-se aqui aquela intolerância por parte de um setor diante de significativos avanços no campo dos direitos sociais e ódio aos setores das classes trabalhadoras. Aqueles setores do “micro-empresariado”, do empresariado capitalista e da burguesia em que muitos simpatizam com a destrutiva agenda ultraliberal à la Paulo Guedes. Expressam uma aversão a qualquer projeto, o mais limitado possível no campo dos direitos. Não que o outro grupo manifeste a intenção de seguir um caminho menos problemático do ponto de vista da garantia de direitos, que, como já disse, encontra limites no âmbito da sociedade capitalista e de seus contextos de crise. Mas assim como os governos Lula e Dilma mobilizaram esse setor intolerante, por exemplo, às cotas, aos benefícios socioassistenciais, aos concursos e estabilidades nos órgãos públicos etc., penso que, com todos os limites, as gestões municipais e estaduais dessa parceria PT-PSB e, posteriormente, PDT-PT, aqui no Ceará, fizeram o mesmo. Lembremos que Camilo trouxe para as universidades estaduais o sistema de cotas (mais avançado do que o nacional); a construção do hospital da mulher na gestão do PT e sua manutenção na gestão atual; os Centros de Cultura e Arte (CUCAS) localizados nas periferias; a areninhas; as policlínicas etc.
E são políticas minimalistas e muito fragmentadas, com investimentos escassos, mas que alcançam uma parte significativa justamente dessa população jovem, que ocupa a maior parcela da população desempregada, e mulheres “donas de casa”. Poderia arriscar ainda e dizer que parte dessa população que optou por Sarto vê no projeto do Capitão Wagner, em sua aproximação com o governo Bolsonaro, um maior risco no que se refere à destruição dos direitos. Certamente, seria preciso uma maior qualificação desses dados para uma avaliação mais cuidadosa. Entretanto, de modo mais imediato, trata-se aqui da escolha entre um projeto de viés levemente mudancista e includente (não chega a ser reformista, pois é conservador dos pilares fundamentais do desenvolvimento capitalista no Brasil), com pequenas garantias, e de outro lado um projeto de feições fascistas. Ambos os projetos se manifestam, de certo modo, no cotidiano de uma parcela dessas pessoas – que não são apenas números. O primeiro por meio das políticas focalizadas, minimalistas, fragmentadas e sucateadas; o segundo de modo mais intenso pela violência direta de grupos a ele vinculados e por ele defendido. Lembro-me aqui das mães do Curió, donas de casa, cujos filhos foram assassinados e que manifestaram apoio ao Sarto.
REVISTA OPERA: Segundo o Atlas da Violência de 2019, Fortaleza é a capital mais violenta do Brasil, com uma taxa de 87,9 homicídios a cada 100 mil habitantes. Nos primeiros meses de 2020, a cidade também teve a maior escalada de assassinatos do país. É possível mensurar o impacto social desse quadro aterrador de violência sobre o cenário político local?
ESTENIO AZEVEDO: Segundo o IPEA mostrou recentemente, Fortaleza é a nona cidade mais desigual em acesso ao emprego. Isso significa: os pobres têm menos possibilidade de serem empregados. Há, portanto, a manutenção, pela reprodução, da pobreza e da instabilidade social de amplos setores do proletariado. Segundo ainda o Observatório das Metrópoles e o Observatório da Dívida Social na América Latina (RedODSAL), da PUC-RS, Fortaleza é a quinta capital em desigualdade social do país, na qual, para piorar, os negros (pardos e pretos) recebem em média menos da metade do que em média recebem os trabalhadores brancos (que, veja, já recebem muito mal, conforme informa o índice de desigualdade social). Nós estamos falando em 40% da população, que constitui a faixa mais pobre, que vive com 96,60 reais mensais per capita. Imagina isso? 96,60 reais para cada indivíduo da família comer, vestir, higienizar-se, divertir-se, transportar-se… e isso ocorre em média com 40% da população! O extrato populacional intermediário tem a média de rendimento individual 8-9 vezes maior do que esse, de 817,26 reais, o que também não é grande coisa, mas dá a imagem da violência que é, em si e por si, a desigualdade social nesta cidade, espelho do que ocorre em geral no restante do país.
A miséria é já uma violência que gera outras e, para usar um termo tão em moda, é uma violência estrutural. Como argumentou Caio Prado Júnior, a lógica do desenvolvimento capitalista no Brasil é a da manutenção não só da desigualdade (que se verifica nas diferenças de rendimentos), mas também da pobreza e da miséria (que se verifica pelos mais baixos patamares de rendimento). No Brasil, o desenvolvimento capitalista não distribui riqueza, não diminui a desigualdade. Chico de Oliveira, por sua vez, mostrou que a acumulação capitalista no Brasil ocorre historicamente – e foi esse todo o segredo do boom de industrialização entre 1930 e 1980 – com base no barateamento da força de trabalho dos trabalhadores, expresso em salários baixíssimos (em torno do salário mínimo), na informalidade (com ausência de relações jurídicas de trabalho e de direitos trabalhistas que advêm delas), o trabalho gratuito, principalmente de mulheres nos chamados serviços, às quais podemos perfeitamente acrescentar o de negros e de negras etc. Não é, portanto, um caso local, cearense. A violência física, dos pequenos crimes, é extensão direta das condições de pobreza e miséria, se e quando os liames sociais comunitários são ausentes, seja porque nunca existiram (nossas populações urbanas são relativamente recentes, sem laços comunitários), seja porque foram quebrados, por exemplo, dada a atuação desses processos econômicos, demográficos etc., que estamos ainda a conhecer.
REVISTA OPERA: Recentemente, a sede do diretório estadual do PDT foi ocupada por famílias e movimentos sociais de luta por moradia reivindicando uma audiência com o prefeito Roberto Cláudio. As famílias cobravam soluções de moradia digna para as 85 famílias que residem em um terreno ocupado no bairro Mondubim. Em que medida a precariedade nas condições de habitação e a falta de serviços básicos continuam sendo um direito negado aos fortalezenses e um desafio real para o novo governo Sarto?
ESTENIO AZEVEDO: Engels, cujo bicentenário de nascimento estamos comemorando nesses dias, mostra como a questão da habitação é um dos aspectos mais importantes das contradições sociais capitalistas. Ele conheceu isso de perto, desde a pesquisa da qual resultou A situação da classe operária na Inglaterra (1845), e continuamente, dada a condição proletária da esposa e seus familiares. Na reprodução da força de trabalho, o custo com a moradia é um dos itens mais caros a compor o salário. Assim, em toda luta salarial, esse custo está presente, porque o gasto com aluguel compõe o salário. Toda luta salarial é luta por moradia, pelo direito a morar mediante o pagamento do aluguel. Por isso que, em conjunturas em que possa gastar, o Estado financia a construção de moradias populares em vista tanto de financiar o barateamento da força de trabalho, baixando o aluguel, quanto de investir diretamente (sim, porque o barateamento da força de trabalho é uma maneira indireta da mesma coisa) na reprodução do capital, particularmente o da indústria da construção civil. No Brasil, o déficit habitacional nas cidades aumentou e continua a aumentar com o contínuo êxodo de populações do campo para as cidades, o que expressa a dificuldade do Estado em suprir essa necessidade vital. Historicamente, e mais uma vez lembro do Chico de Oliveira, as carências habitacionais foram resolvidas pelo próprio proletariado, com ocupações de terreno, construções de casa em mutirão e, mais recentemente, desde o governo Lula, com reivindicações ao Estado de construções de conjuntos habitacionais. O atendimento dessas reivindicações esbarra, contudo, em contradições típicas do capitalismo: as possibilidades econômicas do Estado, estrangulado pelas dívidas públicas, a especulação imobiliária dos terrenos, que majoram muito seus preços etc.
Além disso, conforme ouço de alunos que militam no MTST em Fortaleza, muitos desses conjuntos são construídos em regiões da cidade sem posto de saúde, sem escola, sem transporte público etc. São agravantes a mais. O fundamental, me parece, é que a questão habitacional compõe a questão do salário; portanto, compõe a própria sujeição do trabalhador ao regime de escravidão assalariada e não tem resolução enquanto ela se mantiver. E enquanto ela se mantiver, a gente precisa desenvolver as lutas comuns por moradia, estabelecendo laços comunitários e resistência de classe. É o que o proletariado brasileiro continua a fazer, como as famílias da Ocupação Carlos Marighella, que continuam sob ameaça de reintegração de posse* pelo Poder Judiciário e precisam, portanto, de nosso apoio e solidariedade.
* A ordem de despejo foi suspendida por despacho do desembargador Mauro Liberato no último dia 11.