Na política, o medo é uma ferramenta útil. Se imposto por uma liderança contra seus inimigos, pode aturdi-los, confundi-los, imobilizá-los e forçar concessões. Articulado para as próprias bases, pode pô-las em movimento, por vezes alavancando seu moral e ousadia. Mas quando o medo é aceito para si, admitido, costuma levar ao imobilismo, à rapina e à humilhação.
A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência trouxe um turbilhão de medo, não injustificado, à cena política brasileira. Como reflexo, alguns tomaram-no como alavanca para ação, razão para a organização, e se mobilizaram dentro de suas possibilidades. Outros muitos deixaram o país. Houve quem casasse, antes do planejado, por medo, e até quem fizesse planos mirabolantes no caso das piores previsões se confirmarem.
Em cerca de um mês o Congresso definirá quem serão os novos presidentes da Câmara e do Senado. É uma das ocasiões em que o medo é usado como ferramenta, em que se erguem argumentos de adequação segundo os quais os partidos de esquerda com representação parlamentar deveriam compor com um “menos pior”, não ligado umbilicalmente a Bolsonaro.
Na Câmara, Baleia Rossi (MDB) é esse candidato. Herdeiro do atual presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM), Baleia conseguiu o apoio do Partido dos Trabalhadores, segunda maior bancada da Câmara, com 52 deputados. Tem também o apoio do PDT, com 26 deputados, e do PCdoB, com 8. Além disso, conta com DEM, MDB, PSDB, PSL, Cidadania, PV, PSB e Rede, que, somados aos anteriores, têm 281 parlamentares – mais que os 256 necessários para a eleição.
O PT, em uma primeira reunião, colocou ressalvas sobre o nome de Baleia. Acabou deliberando o apoio ao candidato “em defesa da democracia, da independência do Poder Legislativo e de uma agenda legislativa que contemple direitos essenciais da população.” Disse em nota que os compromissos firmados “têm o sentido de enfrentar a agenda de retrocessos pautada pelo governo de extrema-direita no campo dos direitos humanos e dos direitos constitucionais, e em defesa do estado democrático de direito e da soberania nacional” e que “entende que esta aliança é necessária para derrotar as pretensões de Jair Bolsonaro de controlar a Câmara dos Deputados.”
Não seria absurdo que um partido de esquerda, mesmo um decididamente radical, estando incapaz de eleger um candidato próprio, compusesse por um “menos pior” em determinadas situações. O problema é conseguir conciliar um receio pavoroso, um temor diabólico, com a ideia – e a prática – segundo a qual seremos protegidos pelas instituições flutuantes.
Rodrigo Maia foi reeleito presidente da Câmara no começo do governo Bolsonaro. À época, a polêmica sobre a posição a ser seguida pelos partidos de esquerda também surgiu. Os principistas, como não poderia deixar de ser, argumentavam no campo moral, sem se perguntar se essa posição poderia ser revertida sequer em um ganho no campo da propaganda. Os ditos pragmáticos, por outro lado, argumentavam que apoiar Maia reverteria em benefícios estratégicos, como a obtenção de uma vaga na Mesa Diretora da Câmara.
Maia foi eleito, presidiu com relativa independência, fez alguns enfrentamentos simbólicos com Bolsonaro. E não muito mais. Em questões-chave como redução dos gastos públicos, privatização do saneamento ou reforma da Previdência, Maia deixou claríssimo seu alinhamento ao governo – no último caso até chorou ao ser homenageado por seus pares como o verdadeiro responsável pela aprovação da reforma. Maia também não quis mexer no vespeiro do impeachment do presidente. No pior dos casos, seria por um alinhamento relativo ao governo. No melhor, seria por medo. Medo de “não ter os votos necessários”. Medo de tê-los e ser confrontado por Bolsonaro. Medo de tê-los, não ser confrontado por Bolsonaro, e auxiliar Mourão a tomar seu lugar. De qualquer forma, o limite máximo da ação “institucional” seria pavoroso para o Brasil, e põe pavor na presidência da Câmara.
E chegamos ao problema. É só o medo, não injustificado, que explica o fato de que Bolsonaro e seu vice-general-presidente, em dois anos, não tenham sido confrontados fora do Parlamento pelas grandes agremiações de esquerda. Não é demais lembrar que nos três grandes eventos desse tipo – as manifestações dos estudantes, em maio de 2019, os movimentos “pela democracia” e antifascistas, durante a pandemia, e as greves de entregadores por aplicativo – os grandes partidos de esquerda não tiveram participação impetuosa. Fatos que, em comparação à nota do PT, que afirma que apesar do apoio a Baleia Rossi “o PT continuará lutando, dentro e fora do parlamento, pela soberania nacional, contra as privatizações de empresas estratégicas ao desenvolvimento, contra a agenda neoliberal que compromete o presente e o futuro do país”, ensejam riso.
Os “pragmáticos” diziam em 2019, sobre a reeleição de Maia, que aquilo não se tratava de uma aliança estratégica, mas de uma composição tática que não prejudicava a independência da linha dos partidos. Ou a independência dos partidos foi prejudicada, ou a “grande política” da qual falavam e falam é, em verdade, a menor possível: uma que mobiliza demônios apocalípticos (a fragilidade democrática, a ascensão fascista, um golpe miliciano-militar) para desmobilizar qualquer reação distante do parlamento. “Ação nenhuma nas ruas; ação nenhuma das bases, máxima ação parlamentar!” – assim poderíamos resumir a ordem seguida desde então.
“Demarcar posição seria justo [….] se houvesse, aliado a isso, um trabalho sério de organização. Afinal, se é um pecado tão grave abdicar da moral em nome dos acordos, não seria igualmente grave ignorar o fato de que se está em uma posição em que negar ou fazer acordos não fazem diferença alguma? […] Também seria justo conceder; mas quem concede só pode fazê-lo, igualmente, de uma posição de força, com bases fortes, para garantir em retorno um benefício que tenha alguma importância”, foi o que escrevi há dois anos sobre a reeleição de Maia. Dois anos depois, entre a prédica vazia do moralismo principista e o “pragmatismo” de imobilização, temos como plano de fundo das negociações para a Câmara 200 mil mortos. Sentir medo não é pecado. Mas abraçá-lo, em política, é morrer. E deixar que morram.