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A Doutrina Biden na América Central

Com a Doutrina Biden, não se aproximam mudanças estruturais na política externa dos EUA em relação à América Central
Com a Doutrina Biden, não se aproximam mudanças estruturais na política externa dos EUA em relação à América Central. Por Nery Chaves García, Tamara Lajtman e Mariela Pinza | Celag – Tradução de Gideão Gabriel para a Revista Opera
(Foto: Chatham House)

A região centro-americana é uma das principais áreas de influência política dos Estados Unidos da América (EUA). Suas relações estão marcadas por serem interdependentes, porém profundamente assimétricas. Para os Estados Unidos, é fundamental garantir o controle político na América Central enquanto assegura rotas estratégicas para o comércio e a segurança.[1] Esta condição é comum a qualquer governo estadunidense, e torna a América Central uma região sensível às alterações nos EUA.

Este artigo revisa as estratégias centrais às quais o presidente Joe Biden dará impulso na América Central, para onde estão algumas mudanças de tática, mas não de objetivo, e as distâncias para Trump poderiam ser interpretadas como aspectos discursivos fundamentais, porém parecem ser restritas nas ações concretas. Prova disso são as medidas tomadas por Biden com menos de um mês na Casa Branca: revogação do decreto de Trump de 2017 que criminalizava a presença de pessoas sem documentos, memorando para preservar e fortalecer a Ação Diferida para Chegadas na Infância (Deferred Action for Childhood Arrivals, DACA),  a eliminação dos Acordos do Terceiro País Seguro, [2] ao mesmo tempo que enfatiza a segurança fronteiriça e os “desafios humanitários” da fronteira sul como fundamentais em sua gestão.

A segurança como ponto de partida

A prosperidade da América Latina e a segurança nacional dos EUA são consideradas de comum interesse pelo governo estadunidense. [3] Isso implica que toda sua política exterior para a região parta do objetivo e/ou interesse de garantir a segurança estadunidense por meio de estratégias de soft power ou hard power, sempre com a segurança como ponto de partida.

Para a América Central, Biden sinaliza sua prioridade no Triângulo Norte: Guatemala, El Salvador e Honduras; identificando o fluxo migratório como um dos principais desafios a neutralizar e colocando o fortalecimento do Estado de Direito e a luta contra a corrupção como as armas fundamentais para atacar as raízes da migração forçada.  Assim, identifica-se a corrupção como um ”câncer” que “impede o progresso significativo em quaisquer outros desafios” ao Triângulo Norte [4],  por qual é necessário pôr “o combate à corrupção no centro da política dos EUA na América Central”.[5]

Será fundamental a assistência para o desenvolvimento – vinculada à segurança nacional – em função da melhora da “governança” e a assistência técnica nos aparelhos judiciais, o qual se instrumentalizará através de reformas nas  forças de segurança, do Poder Judiciário e a assistência técnica a juízes e fiscais para o combate a delitos financeiros. Espera-se a criação de uma nova agência como parte da Oficina de Controle de Ativos Estrangeiros (OFAC)  para investigar a corrupção no Triângulo Norte e uma maior presença dos agentes do departamento de Justiça e Tesouro nas embaixadas centro-americanas. [6]

Dessa forma, esta espécie de “lawfare às avessas” poderia constituir-se em ponta de lança da política estadunidense para a América Central.[7] Essa questão não é novidade para Biden, que como vice-presidente da Gestão Obama impulsionou a criação da Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG).  A CICIG investigou, junto à Procuradoria Geral da República, o caso sobre o sistema de corrupção encabeçado pelo ex-presidente Otto Pérez Molina, que posteriormente foi obrigado a renunciar e, terminou preso junto à vice-presidenta Baldetti. Contudo, essas destituições não resultaram numa mudança política para Guatemala e, em seu lugar, provocaram o fortalecimento do Pacto de Corruptos. Isso dá conta da dinâmica do “lawfare às avessas”, ou seja, a intromissão estadunidense em diferentes países com o objetivo de fortalecer governos neoliberais. 

Hoje a CICIG segue expulsa do território guatemalteco, enquanto Nayib Bukele criou a Comissão Internacional Contra a Impunidade em El Salvador (CICIES) em conjunto com a OEA – um órgão internacional com alta ingerência estadunidense. É de conhecimento público as declarações bipartidárias do Congresso contra as distintas ações autoritárias levadas a cabo por Bukele, além do que o irmão de Juan Orlando Hernández, presidente de Honduras, está sendo julgado nos EUA [8]. Assim, é provável que as ferramentas do lawfare se proliferam na região ou que os governantes centro-americanos decidam alinhar-se – novamente – às políticas hegemônicas dos EUA. O lawfare estaria na extensão da jurisdição estadunidense através das reformas do Poder Judiciário e da cooperação em termos judiciais.

Ainda assim, embora momentaneamente a Gestão Biden não tenha externado como atuará nas políticas de segurança marcadas com o hard power (bélico-militar), há de se levar em conta que as estratégias de médio a longo prazo e o modus operandi do Pentágono (articulado com complexo industrial militar) transcendem a “cor” da gestão (republicanas ou democratas).[9] Decerto, haverá uma continuidade da presença militar do EUA (exercícios conjuntos, capacitação, bases militares, etc.) na América Central para combater ao narcotráfico, reagir aos desastres naturais e deter a influência chinesa e russa.[10]

Questão migratória: assistência para o desenvolvimento e a segurança

No seu primeiro dia na Casa Branca, Biden revogou o decreto [11] emitido por Trump no dia 25 de janeiro de 2017 que, entre outras medidas, criminalizava a permanência de pessoas sem documentação, considerando-as como uma ameaça à segurança pública e nacional.  Por meio de uma Ordem Executiva [12] projeta-se que os imigrantes têm ajudado a fortalecer as famílias, as comunidades, as empresas, a mão de obra e a economia dos EUA; e reitera que a política da gestão entrante focará em proteger a segurança nacional e fronteiriça, abordar os desafios humanitários na fronteira sul e garantir a saúde e a segurança pública. Biden também emitiu um memorando para preservar e fortalecer o DACA (Deferred Action for Childhood Arrivals, que concede autorização temporária para morar, trabalhar e dirigir nos EUA aos que entraram no país de forma ilegal quando eram crianças) [13] e proclamou a interrupção dos fundos de emergência para a construção do muro fronteiriço com México.[14]

As políticas migratórias são um claro exemplo da articulação entre a assistência para o desenvolvimento e a segurança. Supõe-se que  Biden apostará em uma política migratória integral, porém que não será necessariamente menos securitizada. A Estratégia Integral para América Central de Biden tem um orçamento prévio de quatro bilhões de dólares, obtidos por meio de fundos da Segurança Nacional e investimentos do setor privado, além de maior participação do Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) no desenvolvimento da infraestrutura e IED na região.

No dia 2 de fevereiro, o novo presidente ratificou através de três ordens executivas 1) as medidas migratórias vinculadas à reunificação familiar, 2) a criação de um marco regional integral para abordar as causas e melhorar a gestão dos fluxos migratórios desde a América do Norte e a América Central, e 3) a possibilidade de proporcionar um processamento seguro e ordenado das solicitações de asilo dos que migram pela fronteira sul dos EUA. [15]  Nesse mesmo dia, a Presidência comunicou o fim dos Acordos do Terceiro País Seguro com o Triângulo Norte. Ainda assim, no comunicado oficial está estabelecido que essas ações não significam que as fronteiras estejam abertas, senão que são mais um passo da estratégia que pretende deter a migração forçada por meio da cooperação no combate à corrupção e à impunidade.[16]

No decorrer da campanha, Biden se posicionou nas antípodas da gestão desenvolvida por Trump, particularmente no que se refere à questão migratória. Contudo, é fundamental sinalizar que a política migratória “linha dura” não é exclusividade da gestão republicana. Com a desculpa de solucionar a “crise humanitária” que emergiu pelo incremento da migração, Obama propôs a criação da Aliança para a Prosperidade do Triângulo Norte da América Central e Biden foi um de seus principais articuladores, reunindo-se frequentemente com os líderes do Triângulo Norte para redigir as diretrizes da Aliança. Mesmo assim, a nomeação do cubano-estadunidense Alejandro Mayorkas como secretário para a Segurança Nacional, traz de volta as ações mais sombrias da gestão Obama-Biden, como o início do uso de instalações para detenção de migrantes semelhantes a prisões, política que foi seguida pela gestão Trump.

Assistência para o desenvolvimento recarregada

A gestão democrata porá novamente a assistência para o desenvolvimento como peça  fundamental da política externa estadunidense, dando à Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) um papel de maior protagonismo. [17] É esperado, inclusive, a incorporação da USAID ao Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, algo nunca antes feito. [18]

Especialistas de think tanks e assessores de Biden afirmam que a assistência aos países subdesenvolvidos significará mais segurança para os EUA, e que, enquanto Trump reduziu os fundos para a América Central durante a crise migratória, Biden planeja aumentar significativamente o orçamento destinado à região, que iria de 750 milhões de dólares a 4 bilhões de dólares. [19]

Diversos setores comungam da ideia que essa é a via mais efetiva de reduzir a chegada de migrantes à fronteira dos EUA e reduzir as atividades criminais. Nesse ponto, a assistência para o desenvolvimento e a questão migratória “são uma coisa só”.  Essa é a visão dos principais think tanks estadunidenses, que tinham levantado o mesmo durante a gestão Trump. [20] Parte-se do ponto comum de que é preciso que os EUA sejam o “provedor” de assistência, ainda que concretamente a assistência não tenha demonstrado mudanças substanciais nas condições estruturais  dos países centro-americanos. Esta situação se deve, em parte, ao fato de que os interesses concretos de organismos como a USAID são orientados a garantir a expansão das empresas e do complexo industrial-militar estadunidense. O resultado é a dependência das economias centro-americanas e um papel de protagonismo aos EUA na tomada de decisão de assuntos internos desses países, desde o âmbito da organização jurídica, até os aspectos de segurança, saúde, educação, etc., em um esquema assimétrico no qual os EUA condicionam toda a ajuda.

Não se aproximam mudanças estruturais na política externa dos EUA em relação à América Central. Além do uso político e midiático que o Governo de Biden faça com uma assistência para o desenvolvimento mais corpulenta e de uma política migratória “mais humana”, é claro que estas estarão ainda mais articuladas as políticas de segurança, principalmente em relação às políticas anticorrupção (lawfare) e antidrogas. A política externa, por conseguinte, seria uma extensão da política de segurança nos EUA, estratégias que não têm demonstrado efeitos positivos, senão o contrário. De igual modo, o incremento de esquemas de cooperação na região resultam numa maior incidência política (sobretudo no que diz respeito ao Triângulo Norte) com organismos multilaterais e de empréstimos que fazem da região uma região endividada e dependente.

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