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Etnografia de uma resistência: crise, perseguição e eleições no Equador 

A eleição presidencial no Equador ocorre em um momento de profunda crise política, não só institucional.
A eleição presidencial no Equador ocorre em um momento de profunda crise política, não só institucional. | Por Jacques Ramírez Gallegos | CELAG – Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera
O candidato Yaku Pérez em seu ato de encerramenteo de campanha. (Foto: Juan Francisco Beltrán)

No fim de outubro de 2019, foram realizadas eleições no Estado Plurinacional da Bolívia para eleger o próximo presidente. Mais uma vez, a grande maioria de bolivianos e bolivianas escolheu o candidato Evo Morales. O resultado final daquela disputa eleitoral deu a vitória ao binômio do Movimento ao Socialismo (MAS) com 47,08% dos votos. A legislação do país estabelece que caso nenhum candidato chegue a 50% dos votos válidos, mas supere os 40% com uma diferença de 10 pontos sobre o segundo candidato, ele é declarado vencedor sem necessidade de ir para o segundo turno.

Isso aconteceu nessas eleições. No entanto, o candidato perdedor e a oposição não reconheceram os resultados e, com apoio da Organização dos Estados Americanos (OEA), instalaram um estranho golpe de Estado policial e militar que levou Evo ao exílio e a ditadora Jeanine Áñez ao Palácio Queimado, sede do governo. O mundo viu mais uma vez, em uma década, como se produzia um novo golpe na América Latina: o primeiro foi em Honduras contra o presidente Manuel Zelaya em 2009, depois no Paraguai contra o presidente Fernando Lugo em 2012, posteriormente o golpe institucional (impeachment) de Dilma Rousseff no Brasil em 2016 e, finalmente, na Bolívia.

Após a chegada ao poder de vários governos progressistas, alguns autores falaram apressadamente do “fim do ciclo” e da volta de governos conservadores. Embora não se possa negar que isso ocorreu em vários países (Macri na Argentina, Bolsonaro no Brasil, Lacalle Pou no Uruguai, por exemplo), também vimos que em outros lugares como México, Argentina e, novamente, Bolívia, partidos e movimentos de esquerda recuperaram o poder. Por isso, como aponta René Ramírez, “não devemos falar nem de uma longa noite neoliberal nem de um curto interregno de governos progressistas. Não se trata de pontos extremos, mas de um continuum de disputas” [1]. Qual é a disputa no Equador? O que estava em jogo nas eleições de 7 de fevereiro? Quais foram os obstáculos que a Revolução Cidadã (RC) teve que enfrentar para chegar às eleições?

A mudança de Moreno e a chegada do neoliberalismo de surpresa

Após uma década no poder (2007-2017), o movimento político Alianza PAÍS (AP) liderado por Rafael Correa, decidiu que o candidato a disputar as novas eleições presidenciais seria Lenín Moreno, que já havia ocupado o cargo de vice-presidente da República entre 2007 e 2013. Seu principal concorrente era o banqueiro Guillermo Lasso, representante dos grupos empresariais e da direita nacional. Depois de uma dura campanha, o segundo turno deu a vitória a Moreno, com 51,16% dos votos contra 48,84% obtidos por seu adversário. Lasso relatou uma fraude que nunca provou.

Embora o povo equatoriano tenha se pronunciado majoritariamente para dar continuidade aos dez anos da chamada “Revolução Cidadã”, Moreno, assim que tomou a posse, começou a se distanciar do governo anterior, tanto em termos de forma quanto de conteúdo. Esta ação culminou numa cisão no interior do movimento, entre os que permaneceram com o atual governo e os que defendiam as conquistas alcançadas na época de Correa, batizada como “Década Ganha”.

Quando a Alianza País se dividiu na Assembleia Nacional, e quando Moreno acirrou as críticas ao seu antecessor, o governo decidiu pactar com a direita nacional e internacional para governar durante os quatro anos do seu mandato. Dessa maneira, o presidente e o seu governo se distanciaram do plano de governo que deu-lhes a vitória eleitoral e passou-se a implementar a agenda neoliberal do candidato perdedor. Isso ficou evidente na lei orgânica para o fomento produtivo, atração de investimentos, geração de emprego e estabilidade e equilíbrio fiscal, de 2018, em que se viu a nova orientação do governo. Uma das primeiras ações foi a remissão tributária, onde perdoou-se mais de quatro bilhões de dólares aos grupos econômicos mais poderosos do país (ação análoga ao “Perdonazo” de Áñez na Bolívia).

A partir de então, amparado em reformas legais como a Lei de Simplificação Tributária em 2019 (de regressividade fiscal), a Lei de Apoio Humanitário em 2020 (de precarização laboral, flexibilização e despedimentos no setor público) ou o projeto de lei de proteção da dolarização em 2021 (de privatização do Banco Central), houve uma contínua implementação da agenda neoliberal em seu período de governo. Dessa forma, se instalou no Equador, com Moreno, o “neoliberalismo de surpresa”, parafraseando Stokes [2], como alguns autores já indicaram.

A nível político, falou-se de “descorreizar o Estado”, para o que foi convocada em 2018 uma consulta popular apoiada por todo o arco de partidos políticos, de esquerda a direita (além de organizações indígenas e vários movimentos sociais). A consulta, que não contou com o parecer da Corte Constitucional, conduziu à formação de um Conselho Transitório de Participação e Controle Cidadão que se encarregou de “avaliar” as diferentes funções do aparato estatal e destituir arbitrariamente as autoridades de controle consideradas próximas ao ex-presidente Rafael Correa. O Conselho (conhecido como “trujillato”) mudou tudo, incluindo a Corte Constitucional, menos o Controlador-Geral, que, como veremos adiante, tornou-se um dos pilares da perseguição política do regime aos seus adversários.

Com os resultados da consulta, Rafael Correa foi proibido de se candidatar novamente à presidência (golpe preventivo) e, assim, teve início uma judicialização da política, prendendo várias autoridades que colaboraram no governo anterior, acusadas de corrupção. O lawfare no caso equatoriano veio sobrecarregado, porque não apenas a função judicial, mas também a controladoria e os grandes meios de comunicação, se encarregaram de perseguir e estigmatizar o correísmo. Com o enfraquecimento dos apoiadores de Rafael Correa, com o líder histórico fora do país e com vários julgamentos iniciados, além da prisão do ex-vice-presidente Jorge Glas meses antes, o palácio de governo converteu-se em um ninho acolhedor para os “representantes da elite, dos patrões e da direita” [3]. A face mais visível dos novos chefões foi Richard Martínez, antigo presidente do Comitê Empresarial Equatorial, designado em maio de 2018 como ministro de Economia e Finanças [4].

Em resumo, desde maio de 2017 se observa no Equador uma recomposição neoliberal conduzida por Moreno e sua aliança governamental com as velhas elites oligárquicas, os grêmios empresariais do país, os oligopólios da comunicação e os partidos de direita, orientados pelas pautas marcadas pelo capital financeiro transnacional dos Estados Unidos (banco multilateral e banco privado de investimentos).

Contexto pré-eleitoral

Um dos elementos centrais da operação para “aniquilar” qualquer tentativa de retorno ao poder do movimento da Revolução Cidadã foi bloquear a inscrição desse grupo no Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Assim, durante três ocasiões o grupo político foi impedido de se inscrever [5], razão pela qual a única forma de sobrevivência foi que outro partido abrigasse o correísmo para poder participar eleitoralmente. 

O precedente das eleições presidenciais foram as eleições seccionais de 2019, em que a Revolução Cidadã conseguiu participar com a lista 5 do movimento Compromisso Social. Porém, devido aos bloqueios apontados anteriormente, não conseguiu inscrever candidatos em todo o território nacional [6]. Apesar disso, foram obtidas importantes vitórias nas três províncias com maior peso eleitoral. Ganharam as prefeituras de Pichincha e Manabí e o segundo lugar em Guayas. Conseguiram ainda 65 vereadores em 34 cantões [divisões administrativas do país] e 60 membros em 51 juntas paroquiais [equivalentes ao nível municipal no Brasil]. Esses resultados foram soaram uma sirene para o governo, que pensou que o correísmo já não teria apoio popular ao retirar Rafael Correa das urnas e do país. A estratégia de enquadrar a “corrupção estrutural da década passada” tampouco pareceu funcionar. Como é de conhecimento geral, Moreno e os grandes meios de comunicação públicos e privados com os quais se aliou introduziram no imaginário social a questão da corrupção.

Assim, depois das eleições seccionais (em que o movimento indigenista Pachakutik ganhou cinco prefeituras e 19 alcaldías), o morenato radicalizou sua ofensiva a nível político e econômico. A nível político, continuou com a sua estratégia de “aniquilar” Rafael Correa. Com Jorge Glas preso e Correa na Bélgica com uma ordem de prisão contra si, foram atrás de Ricardo Patiño [que ocupou três ministérios durante a presidência de Correa], a quem um juiz ordenou prisão preventiva acusando-o de instigação por um discurso proferido à militância há muito tempo. O ex-chanceler teve que partir para o México, país que lhe reconheceu o estatuto de asilado político. Com esta ação, o governo terminou de desmantelar a primeira linha de condução da Revolução Cidadã. 

No entanto, o pior ainda estava por vir. No dia 1 de outubro de 2019, Moreno anunciou o Decreto 883, vigente no país há 40 anos e que eliminava o subsídio aos combustíveis, como parte das medidas econômicas acordadas com o FMI. A essa altura, era mais que evidente a virada que Moreno tinha dado, distanciando-se radicalmente do plano de governo votado pela maioria dos equatorianos. O acordo com o FMI não foi discutido na Assembleia Nacional, nem passou pelo filtro da Corte Constitucional, e foi visto pela população como um novo “pacote” que provocou o início de mobilizações massivas durante duas semanas.

Embora a mobilização popular tenha conseguido bloquear o avanço do Decreto 833, o governo raivoso (que em meio aos protestos se trasladou de Quito a Guayaquil) foi, mais uma vez, à caça dos líderes da Revolução Cidadã, que foram atores, mas não protagonistas das jornadas de outubro, lideradas por indígenas, pelo campesinato e trabalhadores do campo e da cidade, transportadores, homens e mulheres de distintas profissões, desempregados, estudantes, jovens, idosos etc. A prefeita de Pichincha, Paola Pabón, o secretário executivo do movimento, Virgilio Hernández, e o militante Christian González foram detidos e presos, acusados do delito de “rebelião”. Outros líderes do movimento e membros da assembleia, como Gabriela Rivadeneira, Soledad Buendía, Carlos Viteri e seus companheiros tiveram que se refugiar na Embaixada do México no Equador devido a ameaças de prisão. O México também lhes concederia asilo meses depois. Posteriormente, também foram acusados alguns líderes do movimento indígena, como Jaime Vargas (presidente da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador – CONAIE) e Leonidas Iza (presidente do Movimento Indígena e Camponês de Cotopaxi – MICC). 

No final de 2019 e às portas de uma nova disputa eleitoral, o governo de Moreno havia desmantelado a cúpula da Revolução Cidadã e o próprio movimento: havia condenado Rafael Correa a oito anos de prisão (acusado do inexistente tipo penal de “influência psíquica”, com a prova forjada de um caderno com anotações espúrias) e retirado seus direitos políticos por 25 anos; vários líderes foram presos, outros foram para o exílio, quase todos os ex-colaboradores do anterior governo (inclusive pessoas em níveis médios) foram envolvidos em julgamentos penais e administrativos no Ministério Público e na Controladoria, respectivamente; o movimento não pôde se inscrever no CNE e, a cinco meses para as eleições presidenciais, não tinha um veículo para disputá-las. Um movimento com identidade política sólida, militância mobilizada, mas sem instrumento eleitoral para participar formalmente na luta política, via reduzidas suas opções para sobreviver ao assédio político do regime.

A nova disputa eleitoral e o surgimento do “desconhecido perfeito”

Meses antes da abertura do calendário eleitoral, em 17 de setembro de 2020, a Controladoria Geral do Estado (CGE) realizou um exame especial ao processo de revisão de assinaturas para a inscrição de organizações políticas de 2017, realizado pelo CNE. No rascunho do relatório, de agosto de 2019, “foram detectadas irregularidades na validação do número de cédulas, assinaturas inválidas e repetidas” de acordo com a CGE, pelo que recomendou ao CNE (com cumprimento obrigatório) a eliminação dos registros aos seguintes movimentos políticos: Justicia Social, Podemos, Libertad es Pueblo e Fuerza Compromiso Social por não cumprirem, segundo eles, com o principal requisito – ou seja, as assinaturas correspondentes a 1,5% do padrão eleitoral.

Embora estes movimentos tenham participado nas eleições da consulta popular de 2018 e nas seccionais de 2019, preparava-se um novo ataque, desta vez perpetrado por uma das peças-chave do morenato em seu ataque ao correísmo: o espúrio controlador-geral Pablo Celi (o único que “sobreviveu” às mudanças de autoridades realizadas pelo Conselho Transitório de Participação Cidadã do trujillato).

No marco dos bons resultados das eleições seccionais de 2019, o regime e seus aliados estavam decididos a impedir que o correísmo participasse das eleições presidenciais, motivo pelo qual os canhões foram apontados desta vez para o movimento que os abrigou em 2019, o Compromisso Social (lista 5). Esses alertas obrigaram a buscar novas estratégias que deram como resultado a formação da União pela Esperança (UNES), uma plataforma política para impulsionar a participação eleitoral da Revolução Cidadã, que estava composta por várias organizações sociais e dois movimentos políticos registrados formalmente no Conselho Eleitoral: Compromisso Social (lista 5) e Centro Democrático (lista 1). Isso permitiu garantir outro movimento ante a eventual suspensão da lista 5.

Com essa frente coberta e com pelo menos uma reserva garantida, se debatia e se analisava internamente qual seria a melhor fórmula para disputar as eleições. Para isso, Lasso já havia anunciado sua candidatura à presidência e estava em campanha há meses, percorrendo o país. Igualmente, dentro do movimento indígena e seu braço político, Pachakutik – não sem tensões e conflitos internos -, optou-se por Yaku Pérez como candidato. E, como aconteceu nas eleições anteriores, surgiu uma série de candidatos, muitos vinculados diretamente ao morenato. Além do banqueiro Lasso, se candidatou o amigo pessoal do presidente, Gustavo Larre; Juan Fernando Velasco, seu ministro da Cultura; e Ximena Peña, candidata pela Alianza País, entre outros. 

Como Correa foi impedido de se candidatar, foi considerado como primeira opção que ocupasse a vice-presidência. E quando a imensa maioria do campo político esperava que o correísmo nomeasse um candidato entre os seus quadros com maior visibilidade, tomaram a decisão de lançar Andrés Arauz, que, embora tenha ocupado alguns cargos no governo anterior – chegando inclusive a ser nomeado ministro -, não tinha um perfil de destaque e não vinha de uma formação e participação política dentro do movimento. Andrés Arauz, economista de 35 anos, estava radicado no México fazendo o seu doutorado na UNAM quando foi selecionado como candidato à presidência.

Quando o binômio foi divulgado, com Andréz Arauz como candidato a presidente, a oposição o chamou de “desconhecido perfeito”, começando a cavar até o fundo do poço o seu passado. Não encontraram nada. No entanto, as luzes novamente apontaram para o seu binômio, Rafael Correa. O regime se apressou para pôr um novo requisito para impedir a sua participação: que a inscrição deveria ser feita de maneira pessoal, “pessoalíssima”, ante o CNE. E como se isso fosse pouco, um dia após a abertura do calendário eleitoral, em 18 de setembro, o Tribunal de Cassação da Corte Nacional de Justiça ratificou com uma velocidade sem precedentes a sentença definitiva contra Correa, retirando os seus direitos políticos, ou seja, impedindo que pudesse votar e ser eleito para ocupar um cargo público.

Com o bloqueio total do ex-presidente, Carlos Rabascall, jornalista de Guayaquil, foi nomeado como companheiro de chapa. Começou, porém, outra tentativa para afastar o correísmo das eleições, sendo apresentada uma impugnação sobre a legalidade da aliança UNES, conformada – como já foi dito – pelo Centro Democrático e o Compromisso Social, sob o argumento de que este último movimento tinha sido eliminado do registro de organizações políticas sob recomendação da Controladoria. O CNE e o TCE (Tribunal Contencioso Eleitoral) passaram a bola entre si para resolver o caso, estendendo-o para não tomar uma decisão. Finalmente, em dezembro, a poucos dias do início oficial da campanha, o ‘Binomio de la Esperanza’ foi confirmado tal como havia sido batizado. Começava formalmente a batalha eleitoral. 

A campanha “suja”

Desde o início da disputa (em que participaram 16 chapas), três candidatos tinham chances reais de ganhar a presidência, de acordo com todas as pesquisas: Andrés Arauz, Guillermo Lasso e Yaku Pérez.

O Equador começava o ano revestindo postes e paredes com campanhas, em meio a um contexto de profunda dor e tristeza pelas mortes provocadas pela Covid-19 e uma raiva generalizada pelos contínuos escândalos de corrupção do regime, que mais uma vez demonstrou sua ineficácia e apatia frente o sofrimento e a morte de milhares de equatorianos [10]. De acordo com o monitoramento do Observatório Social Equatoriano, entre 1 de janeiro e 14 de dezembro de 2020, 109.277 pessoas haviam falecido no país, ou seja, “o excesso de pessoas falecidas sobre a média dos três anos prévios é de 40.889 pessoas, o que significa uma taxa de mortalidade de 234 por cada 100.000 habitantes” [11]. Trata-se de um dos três países do mundo com maiores níveis de mortes excessivas pela pandemia.

A dor e a indignação cresceram entre a população (mais preocupada com a sua saúde, com a busca de emprego e a insegurança do que com a campanha eleitoral) quando o governo anunciou com grande alarde a chegada de apenas 8000 vacinas, porque várias delas foram parar em hospitais privados. A mãe do ministro da Saúde foi uma das beneficiárias, e a vacinação dos funcionários do Ministério Público foi priorizada.

Ignorando as críticas da população sobre a questão das vacinas, Moreno viajou aos Estados Unidos a poucos dias das eleições (foi a sua sexta viagem como presidente). Embora não tenha sido recebido por Joe Biden, teve duas reuniões de alto nível: uma com o diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional dos EUA e outra com o Secretário-Geral da OEA (por quem o governo de Moreno votou para a reeleição ao cargo, e não ao ex-chanceler equatoriano). Vale a pena relembrar o papel que esse organismo teve no golpe de Estado na Bolívia [12].

Já em matéria eleitoral, e à medida que o “desconhecido perfeito” liderava as pesquisas, todos os ataques se direcionaram a ele e proliferaram fake news, uma estratégia recorrente durante os últimos quatro anos para desacreditar os correístas. Entre os temas que ecoaram mais destacam-se a desdolarização – o candidato banqueiro e os grandes meios de comunicação começaram a posicionar no imaginário que, caso Arauz ganhasse, a economia do país seria desdolarizada – e o apoio do Exército de Libertação Nacional (ELN) na campanha – essa notícia veio da Colômbia, pelas mãos do uribismo, através da revista Semana. A essas duas notícias falsas deve-se adicionar o velho roteiro da direita regional de indicar que o Equador se tornará uma Venezuela. E não faltou um meio de comunicação informando que o candidato da Revolução Cidadã tinha se vacinado contra a Covid-19 na sua viagem à Argentina, quando foi justamente comprometer o apoio de dito governo para trazer vacinas ao país caso ganhe as eleições.

O desenlace (os resultados)

Na noite de domingo, 7 de fevereiro, o CNE deu os primeiros resultados da contagem rápida: Andrés Arauz foi proclamado vencedor do primeiro turno com 31,5% dos votos. Dentro do movimento os dados foram uma surpresa, já que as pesquisas preliminares e a boca de urna apontavam entre 36% e 38% para o candidato da UNES. Os mais otimistas inclusive pensavam que era viável chegar aos 40 pontos e, com isso, ganhar em “uma única rodada”, como se escutava fora da sede do movimento.

No entanto, os olhos da opinião pública não estavam concentrados no candidato vencedor, mas nos resultados do segundo lugar. No primeiro anúncio dos resultados oficiais, o CNE informou que o segundo posto era de Yaku Pérez, com 20,04%, e em terceiro lugar estava Guillermo Lasso, com 19,97%. A diferença era tão pequena que trinta minutos depois do primeiro anúncio o candidato banqueiro havia superado o candidato do movimento indígena. 

Vale lembrar que é a terceira vez que Lasso participa de uma disputa eleitoral presidencial, e desta vez foi o candidato da direita tradicional, após uma aliança realizada entre os partidos CREO e PSC (Partido Social Cristão). Pertencente ao Opus Dei e dono do Banco de Guayaquil, Lasso é a cara visível dos defensores do neoliberalismo. Por outro lado, Yaku Pérez, eleito pelo Pachakutik (braço político da CONAIE), ocupava antes o cargo de prefeito de Azuay e está vinculado a organizações camponesas de base e ONGs ambientalistas, tanto nacionais como internacionais. Uma de suas bandeiras de luta tem sido sua posição anti-mineração e sua defesa da pacha mama, sobretudo da água (daí o seu nome adotivo Yaku Sacha).

Ambos candidatos compartilham ideias políticas estratégicas: um fervoroso anticorreísmo, crítica aos governos progressistas da região, apoio ao golpe de Estado na Bolívia, postura de não investigar – caso cheguem à presidência – o governo de Moreno pelos mortos durante os protestos de outubro, inclinação para continuar as receitas do FMI em relação ao ajuste do Estado, intenção de firmar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos (ou ao menos o fato de não negarem essa possibilidade, de não verem o acordo como um “disparate”, como apontou Pérez), rechaço ao uso do dinheiro eletrônico, entre outros [13]. Por isso, alguns autores os descreveram como defensores do neoliberalismo ortodoxo (Lasso) e do neoliberalismo pachamâmico ou etnicismo neoliberal (Pérez) [14]. Vale ressaltar que a postura de Pérez não é representativa do conjunto do movimento indígena e várias lideranças se distanciaram da sua candidatura e da sua aproximação junto à direita nacional.

Finalmente, uma vez contabilizadas todas as atas, os resultados finais apontaram que Arauz obteve 32,71%, correspondente a mais de três milhões dos votos totais a seu favor. O segundo lugar foi para Lasso, com 19,74%, e Pérez, com 19,38%. A Revolução Cidadã triunfou com 13 pontos de diferença sobre seus opositores e, além disso, obteve a maioria das cadeiras na Assembleia Nacional (49 de 137) e no Parlamento Andino (2 de 5). Assim, o correísmo se converte – apesar dos quatro anos de perseguição e tentativa de aniquilamento – na principal força política do país.

Ainda assim, os holofotes da mídia apontaram para outras direções. Por um lado, continua a disputa pelo segundo lugar. Após um “diálogo” entre Lasso e Pérez patrocinado pelo CNE e tendo a OEA como observadora, foi acordada a abertura das urnas para fazer uma recontagem de 100% dos votos na província de Guayas e 50% de votos em outras 16 províncias. O candidato do movimento indígena destacou que houve fraude e que “estão lhe roubando” o segundo lugar. Manifestou que o artífice dessa farsa era Correa no exterior e que, inclusive, na nova recontagem “pode ser que o segundo turno seja entre Lasso e Pérez”. Paralelamente, enviou um pedido à Corte Constitucional para anular as eleições e propôs ações perante o Ministério Público e a Controladoria.

O Equador inteiro viu ao vivo como se pactuava uma recontagem de votos totalmente à margem da lei e das normas eleitorais, mas que foi aplaudida entre elogios pelo suposto “espírito democrático” e a “transparência” de ambos candidatos (que não perderam a oportunidade para se criticar mutuamente). No entanto, em menos de 48 horas, Lasso enviou uma carta pública dirigida à presidência do CNE retratando-se do acordo e pedindo, entre outras coisas, que se proclamem os vencedores (Arauz e ele). Yaku Pérez, por sua vez, voltou a colocar a questão da “fraude atrás de fraude” e anunciou mobilizações para defender seu voto, advertindo que podem haver infiltrados do correísmo através de migrantes venezuelanos – o mesmo discurso que o governo utilizou nas manifestações de outubro. 

Enquanto se desenrolava essa “novela eleitoral” pelo segundo lugar, voltou à tona a questão do suposto financiamento por parte do ELN à campanha de Arauz. Embora a notícia tenha sido desmentida tanto pelo candidato como pelo próprio ELN, se insiste ante a opinião pública que há informações comprometedoras nos arquivos encontrados no computador do líder guerrilheiro Uriel. A notícia disparou quando, após as eleições e o triunfo evidente de Arauz, o procurador-geral da Colômbia, Francisco Barbosa, chegou a Quito para entregar informações à procuradora-geral equatoriana. Alguns juristas e jornalistas opositores do correísmo já propuseram a hipótese da desqualificação de Arauz caso se comprovasse tal apoio do grupo guerrilheiro. 

Essa manobra é um dos últimos recursos – patadas de ahogado, como se diria na gíria popular (“pernadas do afogado” em português; algo semelhante à expressão “tábua de salvação”) – para impedir o regresso da Revolução Cidadã ao poder público. Se não houver grandes surpresas extra-eleitorais, como as que vimos na Bolívia, o segundo turno acontecerá em abril, com Andrés Arauz à frente, com 13 pontos de vantagem sobre Guillermo Lasso, candidato do CREO que, junto com o PSC, perdeu 22 pontos de apoio entre 2017 e 2021.

Não resta dúvida de que além do triunfo da Revolução Cidadã e da grande derrota do neoliberalismo nas urnas, esse movimento político tem demonstrado sua capacidade de resistência durante quatro anos de ataques permanentes. Sua militância e sua estrutura organizativa robusta o colocam como a primeira força política do Equador. 

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