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Tenório Jr., o homem que desapareceu duas vezes

Francisco Tenório, pianista de Vinicius de Moraes, tocou pela última vez num 17 de março, antes de descer ao inferno da ditadura argentina.
Francisco Tenório, pianista de Vinicius de Moraes, tocou pela última vez num 17 de março, antes de descer ao inferno da ditadura argentina. Por Bruno Ribeiro | Revista Opera

Na noite de 17 de março de 1976, o pianista Francisco Tenório Jr. faria, sem saber, a última apresentação de sua vida. Depois de acompanhar Vinicius de Moraes e Toquinho no Teatro Gran Rex, em Buenos Aires, o músico se dirigiu ao hotel Normandie, onde estava hospedado. Não quis sair para beber com os outros integrantes da banda, pois estava exausto e com uma insistente dor de cabeça. 

Às três horas da manhã do dia 18, sem conseguir pregar os olhos, Tenório decidiu dar uma volta e procurar uma farmácia aberta para comprar um comprimido. Antes de sair, porém, teve o cuidado de deixar um bilhete colado na porta do quarto de Vinicius: “Vou sair para comprar cigarros e um remédio para a dor de cabeça. Volto logo.” Foram as suas últimas palavras antes de descer ao inferno.

Havia um clima pesado no ar. O golpe militar na Argentina era iminente, mas o músico brasileiro não poderia imaginar que naquela madrugada os bate-paus do general Jorge Rafael Videla estivessem nas ruas caçando “comunistas”. Seis dias antes de os militares derrubarem a presidente Isabelita Perón, a polícia secreta portenha ocupou na surdina algumas das principais vias da capital e passou a prender todo aquele que lhe parecesse suspeito de envolvimento com grupos de esquerda. Tenório Jr. era o homem errado, na hora errada, no lugar errado.

Ao dobrar a rua Rodriguez Peña, na esquina com a avenida Corrientes, o pianista foi abordado por um grupo de milicos à paisana. Seus óculos de aros grossos, sua barba espessa e seu cabelo comprido o levaram a ser confundido com um militante de esquerda, conforme ditava o senso comum das casernas latino-americanas nas décadas de 1960-1970. 

Interrogado ali mesmo, disse que era “apenas um músico brasileiro” e que estava no país acompanhando o poeta Vinicius de Moraes. A informação, em vez de salvar-lhe a pele, piorou a situação: Vinicius era visto como um artista “subversivo” pela direita argentina e os agentes o fizeram entrar no carro — um Ford Falcon sem placas.

No dia 18 de março de 2021 se completarão 45 anos do desaparecimento de Tenório Jr. — e este ainda é um episódio pouco lembrado. Segundo o produtor cultural argentino Juan Trasmonte, que pretende rodar um filme sobre o caso, o músico desapareceu duas vezes: “A primeira na mão de seus algozes e a segunda no silêncio do Brasil.”

Para ele, causa espanto o fato de os brasileiros desconhecerem ou não se interessarem pela história de Tenório Jr., uma vez que não era somente um cidadão brasileiro que desapareceu num país estrangeiro, mas um pianista experiente que havia ido à Argentina para acompanhar ninguém menos que Vinicius de Moraes, poeta e compositor conhecido em toda a América Latina.

Frederico Mendonça de Oliveira, o guitarrista Fredera, defende a tese de que o desaparecimento do amigo foi resultado de uma operação muito bem articulada entre os órgãos de repressão brasileiros e argentinos. “Eles sabiam que Tenório era inocente, mas naquele momento era vital para a repressão arrancar nomes, identificar redes de apoio aos movimentos de esquerda, mostrar que poderia tirar leite de pedra”, diz.

A afirmação do guitarrista faz sentido: no início de 1976, a Operação Condor estava no auge. Espécie de cooperação firmada entre as ditaduras do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia e Paraguai, consistia no compartilhamento constante de informações e dados de inteligência. Eram permitidas, inclusive, operações extraterritoriais de sequestro, tortura, execução e desaparecimento forçado de opositores políticos que estivessem escondidos em um desses países. 

Fredera critica a omissão da classe artística no livro O Crime Contra Tenório Saga e Martírio de um Gênio do Piano Brasileiro (Atenas, 1997), hoje fora de catálogo. Nas palavras do guitarrista, “todos preferiram fingir que nada havia acontecido” e continuaram tocando a sua vida normalmente. Apenas Vinicius e Ferreira Gullar — que na época estava exilado em Buenos Aires — teriam empreendido uma busca desesperada e inútil por hospitais, necrotérios, delegacias e quartéis. Ninguém sabia de nada. 

Justiça seja feita: dias depois do desaparecimento, em ofício enviado ao Ministério das Relações Exteriores, os compositores Hermínio Bello de Carvalho, Sérgio Ricardo, Gonzaguinha, Ronaldo Bastos, Aldir Blanc e Jards Macalé manifestaram preocupação com o destino do colega e cobraram esclarecimentos. Nunca obtiveram resposta.

Com base em diversos depoimentos, Fredera faz uma afirmação polêmica, nunca comprovada: a de que o governo brasileiro não apenas sabia do paradeiro de Tenório Jr., como teria enviado um representante para presenciar as sessões de tortura. “Começavam os preparativos para libertá-lo quando o Serviço Nacional de Informações (SNI) manifestou interesse pelo preso. No dia 21 de março, Tenorinho foi visitado por um alto funcionário da embaixada brasileira e intimado a delatar artistas comunistas enquanto o torturavam com a técnica submarino: pendurado de ponta-cabeça. Com os tornozelos amarrados e as mãos algemadas para trás, era mergulhado num tonel de água, entre uma pergunta e outra. Como permanecesse em silêncio, resolveram matá-lo.”

Em 1986, quando as esperanças da família e dos amigos estavam quase esgotadas, um ex-integrante do serviço secreto argentino entrou em contato com a revista Senhor, do Brasil. Seu nome era Claudio Vallejos e dizia ter sido testemunha ocular da morte de Tenório Jr. As informações fornecidas comprovavam tratar-se de um dos homens que sequestraram o músico naquela madrugada de março. 

Segundo os documentos secretos vendidos à imprensa, o músico brasileiro foi levado à Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA), que funcionaria mais tarde como um tipo de campo de concentração para prisioneiros políticos. Suspeito de manter ligações com grupos “terroristas”, Tenório passou por sessões de afogamento e pela “churrasqueira” (cama com estrado de molas, sem colchão, usada para aplicar choques elétricos). 

Após nove dias sob tortura, Tenório Jr. era um “morto-vivo”, conforme a descrição de Vallejos. Como a repressão não poderia soltá-lo naquelas condições, decidiu matá-lo com um tiro na cabeça e enterrá-lo em uma vala comum. O pianista iria completar 35 anos de idade e sua companheira estava grávida de oito meses. 

Somente em 2006, durante o mandato do então presidente Lula, o Estado brasileiro reconheceu “ter feito muito pouco” para localizar e devolver ao país os restos mortais de Francisco Tenório Jr. e compensou a sua família: trinta anos depois, sua mulher Carmen Cerqueira e seus cinco filhos foram, finalmente, indenizados por danos morais e materiais. 

Claudio Vallejos entrou clandestinamente no Brasil logo após revelar o que sabia sobre Tenório. Viveu incógnito por 26 anos no interior de Santa Catarina, até ser preso em 2012 tentando aplicar um golpe de estelionato na cidade de Lages. Reconhecido na delegacia como um dos torturadores de Tenório, voltou a ser notícia na imprensa e chamou a atenção da Justiça argentina, que pediu a sua extradição. 

Vallejos foi entregue pelo governo brasileiro à polícia do país vizinho em março de 2013. No mês passado, mais especificamente no dia 19 de fevereiro de 2021, o agente foi condenado a seis anos de prisão pela participação no sequestro e desaparecimento do pianista. Atualmente cumpre a pena em regime fechado. 

Se estivesse vivo, Tenório Jr. teria completado 81 anos. Apesar de citado pelos amigos como um dos mais talentosos instrumentistas da bossa nova, suas gravações estão praticamente esquecidas e seu primeiro e único álbum solo, gravado em 1964, nunca foi relançado. Com o título de Embalo, o disco é uma obra seminal do samba-jazz e conta com a participação do saxofonista Paulo Moura, do trombonista Raul de Souza e do baterista Milton Banana, no auge da juventude. 

Em sua última apresentação, no Teatro Gran Rex, o público argentino o aplaudiu de pé e pediu bis na música Tamanduá, de sua autoria. Na frente do hotel Normandie há uma placa com os seguintes dizeres: “Aqui se hospedou o brilhante músico brasileiro Tenório Jr., vítima da ditadura argentina”. Também no Parque da Memória, em Buenos Aires, seu nome está inscrito no monumento dedicado aos mortos e desaparecidos pelo regime militar. Não consta que tenha sido homenageado no Brasil.

Ouça o álbum Embalo na íntegra:

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