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Sobre a independência do Banco Central do Equador

A independência nos anos 90 foi um veículo para a captura do Estado. Hoje o Equador vê o mesmo na suposta lei de defesa da dolarização.
A independência nos anos 90 foi um veículo para a captura do Estado. Hoje o Equador vê o mesmo na suposta lei de defesa da dolarização. Por CELAG | Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera 
(Foto: Micaela Ayala V./ANDES)

A 80 dias de concluir o seu mandato, Lenín Moreno apressa a marcha para aprovar in extremis uma reforma [1] que, sob o eufemismo da “independência”, entregaria o Banco Central do Equador (BCE) ao private banking. Com esta jogada de xadrez, não só anularia qualquer política de recuperação econômica do próximo governo, como também deixaria o país em um cenário parecido ao de 1994, quando foi aprovada a Lei Geral de Instituições do Sistema Financeiro (LGISF), que detonou o chamado “feriado bancário” e a crise mais dolorosa da história moderna do Equador.

O presente relatório busca estabelecer alguns paralelismos entre a política monetária dos anos 90 e o novo projeto de lei, para demonstrar que o espírito que germinou a crise de 1999 voltou com a lei que Moreno enviou pela terceira vez em menos de dois anos, e que a Assembleia, pouco antes da publicação deste texto, acaba de rejeitar novamente.

O germe da crise de 1999: independência do interesse geral, dependência dos bancos privados 

Como em grande parte da América Latina, a desregularização do sistema financeiro no Equador começou com força no final dos anos 80. As taxas de juros reguladas com o sistema de alocação dirigida entre os anos 70 e 80 para apoiar especialmente o crédito no agro (por exemplo, o Fundo de Desenvolvimento Rural Marginal – FODERUMA) foram desaparecendo em nome da eficiência, do gasto estatal mal alocado e da virtude do mercado. Em 1993, as taxas eram completamente definidas pelo “mercado”, um eufemismo para denotar quatro homens ricos donos de grande parte do sistema financeiro, que possuíam vínculos comerciais e familiares com o poder político. Em maio de 1992, a Lei de Regime Monetário e Banco do Estado incorporava a “autonomia” do BCE e permitia, entre outras coisas: 1) a criação de bancos múltiplos, onde poderiam ter outros negócios além do financeiro, facilitando o auto empréstimo; 2) a possibilidade de holdings bancários e a estrangeirização das relações societárias com a legalização dos bancos e fundos de investimento extraterritorial (offshore); e 3) a criação de instituições de intermediação de tamanhos diversos, que poderiam fazer o mesmo que um banco, com exceção da captação de depósitos à vista, aumentando perigosamente o número de jogadores no sistema. 

A atividade bancária offshore desempenhou um papel importante na instabilidade. Esta modalidade cresceu nos anos 80 no Equador, no calor da busca para evadir impostos por parte dos residentes equatorianos ricos, e em meados dos anos 90 representava cerca de 70% do sistema doméstico. Essa ligação direta com o exterior e a possibilidade da abertura de contas em dólares facilitou a fuga de divisas. Quando um equatoriano se assustava pela desvalorização, ia trocar seus sucres por dólares e isso fazia com que o depósito nos bancos domésticos fosse creditado a um depósito em dólares em um banco no exterior, participante do mesmo conglomerado. Isso permitia, por um lado, que o banco continuasse fornecendo crédito sem paralisar a operação e, ao mesmo tempo, gerava uma fuga indiscriminada de divisas, deteriorando as reservas e a estabilidade macroeconômica. Na prática, criou-se uma rota, uma base de lançamento de foguetes, para que os dólares fossem ejetados da economia doméstica para o Caribe, residência fiscal dos bancos offshore. Vale a pena dizer que em 1994 o lobby bancário impediu que a LGISF proibisse esse tipo de atividade bancária, com o argumento de defender os depositantes ao minimizar o risco cambial. Parte dos serviços que ofereciam eram a evasão fiscal, o sigilo e cobertura frente a riscos justificados, como sempre, sob o velho e confiável argumento da insegurança jurídica de que eles padeciam e desfrutavam ao mesmo tempo. Com pouca vergonha, como agora com o ISD, alegavam que a proibição dos bancos offshore estimularia a fuga de divisas.

A LGISF também não estabelecia um marco estruturado e ágil para gerenciar falências bancárias que impedissem a propagação de um pânico bancário. Tudo isso porque a lei foi feita pelos regulados, e não por um poder independente dos interesses dos bancos privados. No fundo, a lei abria caminho para a autorregulação, esperando que os agentes minimizassem o risco pela exposição do patrimônio dos acionistas. Em vez disso, estabeleceram válvulas de escape: o artigo 147 da Lei de 1994 instituiu o mecanismo de empréstimo subordinado de forma genérica, dando uma grande tábua de salvação caso os meninos tivessem problemas.

O tempo passava e o marco de baixa regulação e crescente fragilidade aumentava as tensões por opções de liquidez do Estado para os atores privados. Evidentemente, a lei foi operacionalizada no âmbito do Conselho Monetário, que era um apêndice da Associação de Bancos Privados e suas competências. Em setembro de 1995, por exemplo, se reduziram as exigências para conceder títulos de liquidez ao simplificar o sistema de acesso para aquelas instituições financeiras que cumprissem os requisitos sobre o patrimônio técnico. Em novembro do mesmo ano, o sistema de Linha de Crédito de Liquidez foi substituído pelo de Operações de Tesouraria, facilitando o acesso aos recursos do BCE através da flexibilização da prestação de garantias e da redução do piso de taxas de juros para esses créditos. As operações da Tesouraria outorgaram recursos de até 50% do capital técnico de cada instituição. No entanto, a figura que talvez tenha se destacado como ator desse processo de cláusulas de escape ou intervenção foi o famoso crédito subordinado. Após o pedido de uma grande holding bancária, em 1996 o BCE concedeu ao Banco Continental um empréstimo subordinado equivalente a 0,7% do PIB para evitar sua falência, amparado pelo artigo 147 da LGISF. Atualmente, seria como se o Estado desse 700 milhões de dólares a dois irmãos sem grandes condições; apelando apenas à boa vontade. Obviamente, foi um assalto ao país. 

Um dos membros desse Conselho Monetário “independente” que aprovou o empréstimo subordinado ao Continental é o atual candidato à presidência da República, Guillermo Lasso, que justificou a ação como uma medida para proteger os depositantes. O então gerente do BCE e vogal do Conselho, que também aprovou o empréstimo, foi Augusto de la Torre, atual assessor de Lenín Moreno que garantiu em 2020 que “a realidade superou a legalidade” para legitimar o “vale tudo” na crise da Covid-19. Assim, torna-se difusa a definição de “independência” estipulada em um quadro de relações bancárias imbricadas com o poder político.

A queda do Continental, o quarto maior banco na época, mostrou os danos do mercado como regulador. A crise bancária de 1995-96 esteve a ponto de arrastar todo o sistema. Durante os dois anos seguintes, as taxas de juros bancárias foram tão altas que nada foi feito para corrigir a Lei de 1994 e sua subsequente regulamentação. Muito pelo contrário: eles buscaram se salvar. No final de 1998, quando os bancos sabiam que a situação era insustentável, a Lei de Reordenamento dos Assuntos Econômicos criou a Agência de Garantia de Depósitos (AGD), uma entidade que garantia tanto os depósitos locais como os dos bancos offshore e uma série de passivos bancários adquiridos, em muitos casos, poucos dias antes da aprovação da lei. No fundo, a AGD foi criada pelos bancos para que eles se salvassem com dinheiro público. A Lei de 1998 foi o maior roubo da história do Equador. 

Nos anos 90, o poder dos bancos foi dirigido pelo jovem banqueiro Guillermo Lasso. Era um porta-voz jovem e eficaz. Representava o que os banqueiros antigos já não queriam fazer: ser a cara visível do poder. Precisavam de um herdeiro. Em 1994, Lasso pediu publicamente ao presidente da República a aprovação da LGISF. Nesse mesmo ano, foi empossado como vogal do Conselho Monetário. Em 1996, já como vogal, resgatou o Banco Continental. Em 1998, no governo de Jamil Mahuad, foi governador e superministro de economia. 

25 anos depois: os mesmos interesses

Com o governo de Lenín Moreno e sua reviravolta, os bancos estiveram desde o primeiro dia no Palácio de Carondelet, sede presidencial. Capturaram a Superintendência de Bancos e o Conselho de Política e Regulação Monetária e Financeira, a partir dos quais liberaram taxas de juros e atuaram livremente nos últimos quatro anos. Hoje, como anos 90, enviaram novamente o projeto de lei para reformar o Código Orgânico Monetário e Financeiro, que chamam de “defesa da dolarização”. Os pontos mais destacados do projeto rejeitado são:

  1. De acordo com o artigo 21 do projeto, o BCE seria autônomo e o Executivo não poderia impôr nenhuma política econômica; o BCE responderia ao seu Diretório e ao Conselho de Política e Regulação Financeira (JPRF, no acrônimo em espanhol), ambos autônomos. Esta proposta é inconstitucional de acordo com os artigos 261 e 303, que apontam que o Estado central é o encarregado da política monetária e da política econômica em geral. O BCE é parte da função executiva e sua política deve se alinhar ao plano de desenvolvimento. 
  2. A JPRF e o Diretório do BCE estariam formados, cada um, por cinco membros com plenos poderes durante cinco anos, sem capacidade de destituição e sem responsabilidade subsequente. Eles seriam nomeados pela Assembleia em um prazo não maior a 15 dias após proposição feita pelo presidente da República. Evidentemente, adiantaram os prazos para blindar o Diretório, pouco antes de que a nova Assembleia tomasse posse, em maio de 2021. Repetiram as mesmas práticas do século XX: uma captura do Estado. 
  3. A reforma forneceria um cheque em branco para o Conselho administrar a reserva internacional, sem nenhuma diretriz expressa sobre seu uso nem responsabilidades por ela. Até agora, o Conselho respondia à Controladoria Geral do Estado, que podia fazer uma avaliação anual da administração da reserva. Com a reforma, isso seria eliminado. A ausência de sanções e de um marco de regulamentação adequado fariam com que o Conselho não tivesse um órgão para fiscalizar se as coisas estavam sendo bem feitas. Se a reserva fosse perdida devido a más decisões, o Conselho não teria nenhuma responsabilidade. 
  4. Dividiriam o balanço patrimonial do BCE em quatro compartimentos (quatro balanços), diferenciando as prioridades sobre a reserva internacional. O primeiro balanço seria criado para garantir os depósitos dos bancos privados no BCE, e deveria estar 100% coberto por reservas. Se sobrassem reservas depois do pagamentos desse primeiro balanço, os seguintes balanços poderiam ser usados para a previdência social e para os depósitos do governo. Os bancos sabem que é impossível cobrir os quatro balanços com reservas e, sob esta figura, tacitamente criariam um salva-vidas para si caso algo lhes ocorresse. Na prática, seria o mesmo que a AGD de 1998 ou os empréstimos subordinados aprovados no artigo 147 da LGISF de 1994. Novamente, como antes, o argumento que apresentaram foi a defesa do depositante. A outra consequência que emergeria desse mecanismo é que todo petrodólar, dívida externa ou remessas de migrantes que entrasse no país seria propriedade dos bancos até que seus depósitos fossem cobertos. Após tal cobertura, os dólares restantes serviriam para qualquer outro fim. No entanto, se o Estado precisasse pagar dívidas ou importar derivados de petróleo, só poderia usar dólares excedentes, nunca os do primeiro balanço. Na prática, seriam privatizadas as reservas (os ativos) e socializados os passivos. É absurdo e ilegítimo que, com a dívida externa, a sociedade deva proteger os dólares dos bancos privados e a fuga de capitais da elite. O nível de dificuldade dessa estrutura que a lei estabeleceria é tão alto que ela só seria totalmente cumprida a partir de 2026. 
  5. Eliminariam os investimentos que o sistema financeiro deveria ter no país. Em outras palavras, voltariam a articular uma rota para que os dólares fossem ejetados aos bancos offshore. Dado que o BCE deveria respaldar 100% dos depósitos dos bancos privados com reservas, o que aconteceria é que qualquer riqueza nacional fruto das divisas do petróleo, da mineração, remessas dos migrantes ou dívida externa serviriam para financiar a fuga dos bancos privados. Parafraseando a canção de Atahualpa Yupanqui, “as penalidades são nossas, os dólares são estrangeiros”. 
  6. Novamente, um resgate por lei. Se a reserva fosse muito baixa devido a más decisões do Conselho ou pela liberalização da economia, o Conselho e o Diretório do BCE “recomendariam” ao Ministério de Finanças que resolvesse a situação. Como em um bom romance, o governo central deveria se endividar para garantir a cobertura da reserva e de 100% dos depósitos dos bancos privados. Os resgates e empréstimos de liquidez que causaram tantos danos estariam de volta. 
  7. A reforma terminaria de anular qualquer mínima possibilidade de o BCE financiar o governo central. Ao mesmo tempo, autorizaria o financiamento dos bancos privados. O lobby bancário atacou o investimento do Estado por mais de uma década, porque supostamente afetava a reserva. Se isso é verdade, essa crítica se aplica igualmente aos empréstimos aos bancos privados. Esta lei evidenciou que não defendem uma ideia, mas interesses particulares. 
  8. Seria liberada qualquer regulamentação sobre taxas de juros e de comissões bancárias. Além disso, haveria a possibilidade de que o Conselho, apêndice dos bancos, alterasse a forma como quantifica ou contabiliza o patrimônio que hoje sustenta a intermediação das cooperativas. Desta forma, mais da metade das cooperativas, que precisam cada vez mais de ativos para participar, seriam retiradas do mercado. Seria uma grande notícia para o oligopólio bancário: atores pequenos sairiam do caminho para que pudessem seguir subindo taxas de juros e capturar esse nicho de mercado. Na lei do mês passado, essa era a intenção. Agora decidiram fazê-lo aos poucos, por regulamentações secundárias do Conselho e sem gerar tanto ruído. 

Concluindo

A crise de 1999 eliminou o sistema bancário corrupto e inescrupuloso. Os bancos que sobreviveram são, certamente, diferentes daqueles de 1999. No entanto, é um erro pensar que os escrúpulos são construídos em um ambiente de bons versus maus, ou são imutáveis no tempo. Correr riscos excessivos, ter um resgate de liquidez à mão e usar o poder político para conseguir favores comerciais que permitam superar a tempestade são elementos que deformaram os escrúpulos e estão sempre latentes; não podem ser descartados da discussão por meio de um exercício binário de bons contra maus. Os banqueiros que sobreviveram à crise estão aposentados, e uma nova geração de banqueiros está surgindo. Serão estes últimos capazes de resistir à tentação dos lucros rápidos e do uso da lei para seu benefício, como nos anos 90, sabendo que hoje a Superintendência, o Conselho e o Diretório do BCE pertencem a eles? A sociedade não merece que o país esteja nas mãos de cinco bancos que, como antes, têm posse de todas as cartas. A independência nos anos 90 foi um veículo para a captura do Estado. Hoje vemos os mesmos elementos na suposta lei de defesa da dolarização: uma dolarização sob a medida dos bancos privados e capturando todas as instâncias de controle. 

Notas:
[1] – A Constituição permite enviar um projeto econômico urgente que obriga a Assembleia a resolver em 30 dias e, se não houver acordo para arquivar o projeto nesse período, a lei é aprovada pelo Ministério da Lei. 

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