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Haiti: o avanço autoritário de Jovenel Moïse

Às margens da atenção midiática, Jovenel Moïse segue governando o Haiti com seu mandato expirado, através de decretos e repressão paramilitar.
Às margens da atenção midiática, Jovenel Moïse segue governando o Haiti com seu mandato expirado, através de decretos e repressão paramilitar. Por Bárbara Ester | CELAG – Tradução de Rebeca Ávila para a Revista Opera
(Foto: UN Photo/Logan Abassi)

Após anos de instabilidade, crise e violência generalizada, algo parece estar mudando no Haiti. O mandato de Jovenel Moïse (PHTK – Parti Haitian Tèt Kale) foi controverso desde o início: sua posse foi adiada por um ano devido aos distúrbios causados pelas denúncias de fraude eleitoral. Foi um ano que o PHTK roubou da democracia haitiana, e pelo qual a Suprema Corte considerou que o mandato deveria ter terminado em fevereiro. No entanto, os magistrados foram presos, acusados de perpetrar um golpe de Estado contra um governo que não realiza eleições livres desde 2016. Em janeiro de 2020, terminaram os mandatos de todos os deputados, dois terços dos senadores e da maioria dos prefeitos. Por sua vez, cinco primeiros-ministros ocuparam o cargo, figura constitucional que opera como articulador entre o Parlamento e o Executivo em um desenho institucional híbrido. Não só é a maior rotação já registrada, como os dois últimos, Joseph Jouthe e Claude Joseph, foram nomeados por decreto.

Também no último ano, um novo flagelo abalou o país caribenho: a crise de segurança, encarnada em uma violência generalizada perpetrada por grupos armados que realizam sequestros e assassinatos, em muitos casos com a suspeita de que as gangues criminosas contam com o consentimento do governo para desbaratar os protestos através do assassinato de líderes sociais e da oposição. Em outras palavras, pelo menos desde 2020 os paladinos da democracia internacional tinham sinais claros de que o governo do Haiti havia tomado um caminho ditatorial. A gangsterização ou “neoduvalismo” de Moïse trouxe consigo as características que durante quase 30 anos foram o manual da ditadura dos Duvalier: corrupção, repressão, insensibilidade às demandas populares e abertura ao imperialismo do livre mercado.

Se Deus está conosco, quem está com eles?

O Centro de Análise de Investigação em Direitos Humanos (CARDH) foi o primeiro a denunciar a cumplicidade do governo com distintas gangues que “recebem dinheiro, armas e funcionários do governo; nomeiam e destituem na administração pública; sequestram, matam e violam como bem entendem”. Em 2020 foram registrados 796 sequestros, enquanto nos primeiros dois meses de 2021 já se registravam 110. Em abril, a onda de sequestros alcançou membros da Igreja Católica (cinco padres, duas religiosas e três leigos, dois deles de nacionalidade francesa), o que precipitou a renúncia do primeiro-ministro Joseph Jouthe e o pronunciamento do presidente do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), no qual expressou sua solidariedade em nome dos bispos do continente perante a escalada de sequestros.

Leia também – Jovenel Moïse e o paramilitarismo: um casamento no Haiti

O novo primeiro-ministro interino nomeado pelo Executivo, Claude Joseph, foi até abril o responsável pelas Relações Exteriores e ex-embaixador na Espanha. Em 14 de abril, dia da posse do cargo, agradeceu o apoio mostrado pelos Estados Unidos, especialmente à subsecretária adjunta do Escritório de Assuntos para o Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado dos EUA, Julie Chung, pelo seu “apoio”. Vale destacar que a Embaixada dos Estados Unidos e Julie Chung foram as primeiras vozes de Washington a condenar Moïse pela primeira vez, em fevereiro deste ano. A funcionária do Departamento de Estado disse que os Estados Unidos “não ficarão calados quando as instituições democráticas e a sociedade civil são atacadas”. Pelo Twitter, a subsecretária afirmou: “os Estados Unidos esperam continuar a cooperação com o primeiro-ministro interino @claudejoseph03, e trabalhar com o governo do Haiti e todos os atores haitianos e sócios internacionais para organizar eleições legislativas e presidenciais justas e livres em 2021”. A omissão do referendo que Moïse busca impulsionar foi significativa, e alerta para as diferenças entre o Executivo e o premiê.

Eleições, elefantes e burros

O apoio mais importante a Moïse veio da comunidade internacional, principalmente dos Estados Unidos (embora seu aliado Donald Trump tenha descrito publicamente o Haiti como um “país de merda”). O que faltou esclarecer, talvez, é que a nação do continente que teve mais governos em menos tempo desde o fim do século XX – desde a queda da ditadura de Duvalier, em 1986, até a atualidade, o país teve quase vinte governos – não poderia alcançar este recorde sem a aquiescência estadunidense por trás. Sem ir muito longe, em novembro de 2020 Moïse reintegrou Léon Charles, que em 29 de fevereiro de 2004 assumiu a chefia da Polícia Nacional do Haiti, logo após o golpe de Estado contra Jean-Bertrand Aristide – sacerdote católico eleito presidente duas vezes e duas vezes derrubado pelos EUA. O golpe foi realizado sob a gestão de outro membro do partido do elefante, o republicano George Bush.

Mas nem todos são elefantes: o primeiro governo de Martelly (PHTK), antecessor de Moïse, foi promovido por Washington pela então Secretária de Estado Hillary Clinton. Cabe destacar que enquanto os resultados oficiais atribuíam a vitória à professora e ex-primeira-dama Mirlande Manigat (31,37%), o segundo lugar a Jude Celestin (22,48%) e o terceiro a Michel Martelly (21,84%), um relatório da OEA detectou “fraudes” e recomendou que “o candidato que ficou em terceiro lugar (Martelly) passe ao segundo, e o que ficou no segundo lugar (Celestin) passe a ocupar o terceiro”. Com a exclusão do genro do presidente em exercício – sutilezas democratas -, Martelly, que havia ficado em terceiro lugar, entrou no segundo turno e ganhou as eleições.

2021 é um ano eleitoral, com eleições gerais previstas para setembro e eleições locais em novembro. Talvez por isso, logo após a vitória dos democratas nos EUA, Moïse idealizou a convocação de um referendo para a redação de uma nova constituição em sintonia com a nova gestão. No entanto, a oposição haitiana se negou a participar dessa iniciativa, assim como a maioria da sociedade civil, que protagoniza protestos massivos desde 2018. A data para o referendo, inicialmente 25 de abril, foi postergada para 27 de junho como produto dos distúrbios, e até o seu próprio partido (PHTK) deixou de promovê-lo. O último a se juntar às críticas foi o escritório da ONU no Haiti, que alertou recentemente que o processo de consultas em torno do esboço da nova constituição manipulado exclusivamente pelo Executivo não é “suficientemente inclusivo, participativo ou transparente”.

A mudança só viria com a petição de mais de sessenta congressistas democratas demandando “uma revisão significativa da política dos EUA no Haiti” por parte da administração Biden. A carta lançou a advertência de que “a insistência dos EUA nas eleições no Haiti no fim do ano e a qualquer custo corre o risco de exacerbar o ciclo de instabilidade política e violência do país”. Assim, a visibilidade fez o que o sentido comum não havia conseguido fazer: o referendo foi finalmente descartado. Na carta enviada ao secretário de Estado, Anthony Blinken, os legisladores solicitaram que Biden use sua “voz e voto” com as Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (OEA) – que recebem financiamento estadunidense – para garantir que os dólares dos contribuintes não sejam utilizados para apoiar o referendo constitucional. Até o momento, tanto a OEA como o escritório político da ONU no Haiti haviam oferecido seu apoio ao processo, e a ONU controlava um fundo comum de arrecadação para as votações, entre eles o referendo.

Recapitulando com alguns exemplos: os Estados Unidos apoiaram a dinastia Duvalier (1957 e 1986), realizaram dois golpes de estado diferentes contra o presidente Jean-Bertrand Aristide e interferiram nas eleições de 2010, celebrada menos de um ano depois do devastador terremoto. Ou seja, o respaldo inicial de Biden ao golpe de Moïse é totalmente coerente com a política dos EUA sobre o Haiti há muito tempo, uma política que contrasta radicalmente com os ideais democráticos que afirma defender. Os motivos são simples: “o Haiti está aberto aos negócios” (lema de Jean-Claude Baby Doc Duvalier no começo da década de 1980) e apoia os interesses comerciais dos EUA. Um documento do Departamento de Estado de 2020 elogia Moïse por ter “articulado um compromisso para melhorar o ambiente empresarial e atrair investidores estrangeiros” e parabeniza ele e seu predecessor por “fomentar o investimento estrangeiro e desenvolver um crescimento econômico baseado no mercado e liderado pelo setor privado”.

No entanto, após a invasão do Capitólio e o julgamento político do ex-presidente Donald Trump, o fantasma do “golpe” forma parte da própria legitimidade republicana e o apoio a medidas antidemocráticas em outras geografias volta de maneira muito mais controversa. A recente reinvenção de Biden e sua tentativa de mostrar a sua gestão com um rosto mais humano tem sua contraparte no Haiti. Porém, como afirma Kim Ives, “os protestos no Haiti são um repúdio ao autoritarismo e à intervenção estadunidense”. O resultado ainda está em disputa.

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