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“O pensamento de Bolívar é baseado na necessidade de progresso humano”

A magnitude política de Bolívar, protagonista da Libertação da América Latina, continua a inspirar os movimentos de esquerda no continente.
A magnitude política de Bolívar, protagonista da Libertação da América Latina, continua a inspirar os movimentos de esquerda no continente. Por Alex Anfruns | Tradução de Julia Goudard para a Revista Opera
Estátua de Simón Bolívar em Mérida, na Venezuela. (Foto: Eleazar Rojas)

A magnitude política e humanitária de Simón Bolívar, protagonista da Libertação da América Latina, continua a inspirar fortemente os movimentos de esquerda no continente. Simón Bolívar, um estadista venezuelano do século 19, encarnou os ideais progressistas da independência da América do Sul contra o poder colonial espanhol. Ele defendia o fim da monarquia e insistia em uma revolução social baseada na educação para garantir a plena independência. Ainda hoje, seu pensamento universalista continua a permear movimentos de esquerda no continente. Christine Pic-Gillard, autora do novo estudo biográfico e histórico do Libertador, vai além dos mitos sobre Bolívar para examinar as razões do por que ele permanece tão influente. 

Alex Anfruns: Você argumenta que O Libertador Simón Bolívar “não surgiu do nada”. Quem inspirou a ação política dele? 

Christine Pic-Gillard: Bolívar foi, com certeza, produto de sua história pessoal e da história de seu tempo. Sua educação foi marcada pela influência de Simón Rodríguez, seu professor na escola, que transmitiu os valores universalistas da Revolução Francesa para ele. Suas duas visitas a Paris permitiram que ele conhecesse grandes figuras intelectuais francesas nos salões parisienses, onde ideais liberais circulavam. As narrativas de viagens para a América do Sul descritas pelos naturalistas Humboldt e Bonpland, que ele conheceu em Paris, formaram sua consciência da identidade americana. Por outro lado, em sua cidade natal, atos esporádicos de rebelião desafiavam a ordem colonial; seu próprio pai havia participado deles. 

A atmosfera do seu tempo era, portanto, uma de desafio à ordem estabelecida: revolução na América do Norte, revolução na França, Juntas na Espanha, obstáculos para o papel da Espanha na América do Sul e particularmente na Venezuela. Nós não podemos esquecer as tentativas frustradas de Francisco de Miranda pela independência da Venezuela, Bolívar chegou a conhecê-lo quando visitou a Inglaterra em 1810 durante sua primeira missão diplomática para a Junta de Caracas. Francisco de Miranda foi a primeira figura revolucionária na guerra pela independência. Devemos reconhecer também José de San Martín, que libertou a Argentina antes de participar do exército bolivariano na libertação do Peru. 

Alex Anfruns: Simón Bolívar tinha uma determinação e fé inabaláveis no sucesso de seus ideais emancipatórios. Em que ponto os limites das suas atividades emancipatórias foram revelados?

Christine Pic-Gillard: De fato, Bolívar tinha uma fé inabalável no sucesso da guerra de independência, mesmo com a derrota da primeira tentativa de libertação, devido às ações tanto do exército espanhol quanto da oposição interna. A primeira república falhou, e Bolívar teve que ir ao exílio. Mas ele montou uma expedição e estabeleceu uma segunda república. A segunda república também falhou e Bolívar teve que ser exilado de novo. Mas ele organiza uma nova expedição e consegue reunir os patriotas. Seu exército liberta a Venezuela, mas a vitória será total somente quando todos os territórios forem independentes. 

Ele viajou por toda América do Sul, da costa caribenha até o sul andino, atravessando o continente em condições terríveis, fundando repúblicas, escrevendo uma constituição, e criando escolas. O fim da guerra de independência em 1824 e o fracasso do Congresso do Panamá em criar a Confederação dos Estados Sul Americanos marcaram o limite da ação emancipatória de Bolívar. Ele encarou a ambição política de generais, as estruturas sociais coloniais sobreviventes, a dificuldade em desenvolver uma economia liberal, o enorme débito das novas repúblicas, e o apetite de poderes externos, particularmente da Grã Bretanha e dos Estados Unidos. 

Alex Anfruns: No seu livro, você aponta que Bolívar aboliu a propriedade coletiva de povos indígenas e estabeleceu propriedades privadas de terras. Historiadores apontam as consequências negativas dessa medida para os modos de vida tradicionais e a organização de povos indígenas.

Christine Pic-Gillard: A colonização espanhola tinha preservado algumas estruturas pré-colombianas, como a propriedade coletiva e a exploração de terras de comunidades indígenas. A abolição dessas comunidades em 1824, para criar uma classe de pequenos proprietários, foi uma falha social e econômica. As terras foram compradas por aristocratas para formar estados nos quais os povos indígenas trabalhavam sobre contratos que os mantinham escravos por dívidas.  Os povos indígenas estão sob o controle de um capataz que tem ordens para prevenir qualquer fuga. Quando a terra é vendida para um novo dono, os povos indígenas são parte da venda. A hacienda é um modelo econômico péssimo: ela consome metade do que produz. Na verdade, o agricultor é obrigado a comprar na fazenda o que ele precisa: ferramentas, roupas, comida.  Para ficar rico, o dono da terra tem que expandir seu patrimônio. Não pode ser dito que a expropriação destruiu completamente a organização tradicional de povos indígenas. Ela favoreceu o sincretismo cultural e sem dúvidas acelerou a aculturação que já vinha sido estabelecida desde a colonização.

Alex Anfruns: Um dos projetos mais emblemáticos de Bolívar foi a confederação que uniria países da América Latina, o único jeito de se libertar em longo prazo do controle de poderes estrangeiros. Como você explica seu fracasso?

Christine Pic-Gillard: A ideia de uma confederação é a base do projeto político de Bolívar. Ele via os diferentes territórios da América espanhola como um todo cultural, e ele sabia que somente a união dessas novas repúblicas permitiria que elas resistissem à pressão estrangeira e se desenvolvessem, economicamente e socialmente, em paz, graças a um grande mercado com interesses em comum. Os independentistas não compartilham desse projeto político, primeiro por que eles não têm uma visão em longo prazo do futuro dessas novas repúblicas, segundo que eles pensam em termos de ambição individual. Líderes militares querem que seu poder político seja soberano no território, sem ter que compartilhar poderes com um governo central. Então eles puxaram o tapete dele.

O projeto também preocupou os Estados Unidos da América e a Grã Bretanha por razões políticas e econômicas. O congresso do Panamá, onde a confederação deveria se tornar uma realidade, foi esvaziado de seu objetivo antes de sequer acontecer pelas negociações dos EUA com líderes da América do Sul. Tanto que Bolívar desistiu de comparecer ao congresso. A porta foi então aberta para guerras internas e controle externo. 

Alex Anfruns: A explicação mais comum para as falhas da política latino-americana é a tendência ‘’caudilhista’’ dos líderes, que seria uma forma pessoal e autoritária de governo. Você acha que esse conceito é útil para entender a ação emancipatória de Bolívar?

Christine Pic-Gillard: Bolívar encarou o caudilhismo desde o começo de sua ação libertadora e emancipatória. Seu pensamento era extremamente progressista no sentido de que ele defendia valores universais. Seu projeto era não apenas libertar os territórios da América do Sul das garras da Espanha. Era também de uma revolução política: rejeitar a monarquia e construir repúblicas que seriam agrupadas em confederações de estados sul-americanos. Era também uma revolução social: através da educação, criando uma classe média capaz de desenvolver países através da ciência e tecnologia. Essa visão política não era acatada pelos independentistas que desacreditaram de Bolívar, como Miranda, ou traíram ele, como Manoel Piar e posteriormente Santander. Bolívar mesmo nunca sucumbiu ao caudilhismo. Sempre que ele era eleito líder de um país, ele entregava seus poderes às autoridades, que frequentemente não aceitavam!

Alex Anfruns: Os próprios livros didáticos da civilização hispano-americana se limitam em apresentar Bolívar como se ele fosse um produto de marketing importado do século 19. O que você pensa dos governos latino-americanos e movimentos políticos que ancoram sua identidade no pensamento bolivariano?

Christine Pic-Gillard: O pensamento bolivariano é complexo e sua referência nem sempre é compreendida por aqueles que o tomam como um modelo. Bolívar se inspirou em referências clássicas extraídas da história greco-romana. Por exemplo, quando ele se tornou um ‘’ditador’’, era com os atributos de um ditador romano, cuja vida política era curta: ele era chamado para exercer sua autoridade em um momento de crise e então rendia seu poder. Na base de uma interpretação errada, Bolívar foi reivindicado pela direita autoritária na Europa.

No entanto, os movimentos políticos latino-americanos têm um entendimento melhor do pensamento bolivariano, especialmente seu pensamento universalista, baseado na necessidade de progresso humano em geral, independente dos interesses individuais. Começando do local para alcançar o universal, tomando poder para colocá-lo nas mãos do povo. Por outro lado, Bolívar foi o criador da consciência da singularidade da identidade sul- americana, criou toda a contribuição cultural e étnica, fortemente associadas com os fenômenos naturais de sua terra. É nesse sentido que foi e continua sendo um modelo para revoluções nacionais, tanto em Cuba quanto na Venezuela. 

Originalmente publicado por Alex Anfruns em L’humanite dimanche, nº 23183, (12 de maio de 2021). Tradução em inglês por Aaron Kelly. 

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